Paulo Narigão Reis 8 de Agosto de 2022
Num mundo em que as disputas fronteiriças se transformam amiúde em guerras, o caso de Bir Tawil aparece como uma bizarria mas, na realidade, apenas esconde um outro conflito territorial. Adjacente a Bir Tawil está outro triângulo de terra. Hala’ib é maior e tem ligação ao mar Vermelho, o que o torna mais valioso, sendo assim reclamado quer pelo Egipto quer pelo Sudão. Só que, graças a uma fronteira desenhada a regra e esquadro no final do século XIX pelo Império Britânico, cada um dos países pode reclamar como seu Bir Tawil ou Hala’ib, mas não os dois.
O conflito pela soberania de Hala’ib é uma pedra no sapato recorrente nas relações entre egípcios e sudaneses mas, nos últimos meses, as duas nações puseram as diferenças de lado e uniram-se para enfrentar o que consideram uma ameaça comum: a Grande Barragem Etíope da Renascença (GERD, na sigla em inglês). Na semana passada, o Governo de Addis-Abeba resolveu encher pelo terceiro ano consecutivo a enorme albufeira no Nilo Azul sem o acordo do Cairo e de Cartum que, temendo ver comprometido o acesso ao maior rio de África, apresentaram um protesto no Conselho de Segurança da ONU.
O alinhamento de interesses em relação ao Nilo não porá certamente fim à disputa territorial sobre Hala’ib, uma história que nasceu há mais de um século. Foi em 1899 que o Reino Unido assinou um acordo com o Egipto que determinou que os territórios a sul do paralelo 22 fossem administrados em conjunto, criando o Sudão Anglo-Egípcio. Três anos depois, os britânicos concluíram que o limite acordado anteriormente não reflectia o real uso do território pelas tribos da região, pelo que traçaram uma nova fronteira. Bir Tawil, uma terra de pastagem perto de Aswan usada pela tribo ababda, foi colocada sob administração do Cairo. Da mesma forma, o triângulo de Hala’ib, a nordeste, passou a ser administrado pelo governador britânico em Cartum.
E assim ficou durante meio século, até à independência do Sudão, em 1956. O novo Governo de Cartum declarou como fronteiras nacionais as estipuladas em 1902, tornando Hala’ib parte do Sudão. O Egipto, por outro lado, alegou que a soberania tinha ficado definida pelo tratado de 1899, que estabeleceu a fronteira no paralelo 22, reclamando para si o triângulo de Hala’ib.
No início da década de 1990, quando uma petrolífera canadiana mostrou interesse em explorar as águas ao largo de Hala’ib, a disputa deixou de ser apenas académica. O Egipto enviou uma força militar para recuperar o território que, apesar dos protestos sudaneses, permaneceu desde então sob o controlo efectivo do Cairo, embora Cartum nunca tivesse deixado de reclamar o triângulo de 20 mil km quadrados como seu. O conflito reacendeu-se em 2016, quando o Egipto entregou à Arábia Saudita duas ilhas estrategicamente importantes no mar Vermelho, Tiran e Sanafir. Em contrapartida, Riad reconheceu a soberania do Cairo sobre Hala’ib, motivando um protesto do Sudão nas Nações Unidas.
Perdido no meio de uma disputa sem fim, ficou então Bir Tawil. Nem o Egipto nem o Sudão querem reclamar o território como seu já que, ao fazê-lo, estariam tacitamente a renunciar ao imensamente mais apetecível Hala’ib.
Bir Tawil tornou-se, assim, uma espécie de “patinho feio” geopolítico. “A anomalia de Bir Tawil abre uma nova perspectiva sobre a história mundial. É a história da luta para não ocupar um território”, escreve o geógrafo britânico Alastair Bonnett no livro Unruly Places: Lost Spaces, Secret Cities, and Other Inscrutable Geographies.
Renegado pelas nações reais, Bir Tawil transformou-se, como refere Bonnett, numa “fantasia favorita entre os aspirantes a construtores de nações da Internet”.
Foi o que fez, por exemplo, Jeremiah Heaton, um agricultor norte-americano da Virgínia que, em 2014, depois de uma viagem de 14 horas através de desfiladeiros e montanhas, plantou na terra de ninguém a bandeira da nação que baptizou com o nome de Reino do Sudão do Sul. A sua motivação? A filha, então com seis anos, perguntou-lhe se poderia, algum dia, ser uma princesa de verdade.
Nesse mesmo ano, dois cidadãos russos, Dmitry Zhikharev e Mikhail Ronkainen, aventuraram-se também até ao território desértico entre o Egipto e o Sudão e, sem resistência, colocaram a bandeira da Rússia em Bir Tawil.
Para quem tenha ambição semelhante ou queira, pelo menos, conhecer o último território por reclamar do planeta, a Young Pioneer Tours, uma agência de viagens da China, está a promover para Novembro uma visita a Bir Tawil.
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