domingo, 14 de agosto de 2022

Adolf Eichmann, um palhaço do diabo

  

    Adolf Eichmann

Nos 60 anos da morte por enforcamento de um dos principais arquitectos do Holocausto, um novo documentário traz-nos Adolf Eichmann de viva voz, em gravações até hoje inéditas. Um burocrata banal, a encarnação do demónio, ou nem uma coisa nem outra?

António Araújo 14 de Agosto de 2022


Em 2017, o Museum of Jewish Heritage de Nova Iorque exibiu na Baixa de Manhattan a cela de vidro à prova de bala em que Adolf Eichmann foi julgado e condenado à morte em Jerusalém, a 15 de Dezembro de 1961, naquela que foi uma das maiores causes célèbres do século XX, ainda hoje alvo de um sem-fim de notícias e recordações. Após o Supremo Tribunal de Israel ter rejeitado o seu recurso, e depois de o Governo de Ben-Gurion ter recusado os pedidos de clemência feitos pelo seu advogado, pela mulher e pelos irmãos, e por personalidades como o filósofo Martin Buber ou a escritora Pearl S. Buck, Eichmann seria enforcado na prisão de Ramlah passavam poucos minutos da meia-noite do dia 1 de Junho de 1962. As escassas testemunhas do acto – alguns funcionários israelitas, quatro jornalistas e o pastor canadiano William Lovell Hull, que recordaria a sua experiência de conselheiro espiritual do criminoso nazi num livro expressivamente intitulado The Struggle for a Soul – disseram que as suas últimas palavras tinham sido “morro acreditando em Deus”.

Em 2014, contudo, um dos presentes na morte de Eichmann assegurou tê-lo ouvido murmurar entre dentes, no derradeiro instante, “espero que vocês sejam os próximos”, um adeus bem menos piedoso, e bem mais raivoso, do que aquele que a História regista. Quem garantiu terem sido essas as últimas frases terrenas do antigo Obersturmbahnführer das SS foi Rafi Eitan, o lendário agente da Mossad que, sob direcção de Isser Harel, coordenou no terreno a equipa de oito homens que capturara Eichmann em Buenos Aires, em Maio de 1960.

Causou perplexidade e espanto que, em 2018, um ano antes de morrer, Eitan tenha vindo a apoiar publicamente o partido de extrema-direita alemão AfD, mas essa foi apenas uma das muitas singularidades de um homem que, entre tantas outras coisas, foi conselheiro para assuntos de terrorismo do controverso primeiro-ministro Menachem Begin, consultor do MI6 e de Margaret Thatcher nas operações contra o IRA, alvo de um mandado de captura do FBI por envolvimento no caso Jonathan Pollard, um espião americano que passava segredos aos israelitas, dono da empresa que construiu um memorial do Holocausto em Havana, onde tinha importantes interesses no sector agrícola, presidente da associação dos reformados de Israel, candidato e deputado ao Knesset pelo partido dos pensionistas, ministro da terceira idade entre 2006 e 2009, currículo que não seria possível sem a fama alcançada pelo êxito do sequestro de Adolf Eichmann e a sua transferência clandestina para Israel, semidrogado e a bordo de um avião da El-Al, proeza que gerou um tremendo conflito diplomático com a Argentina, que, entre outros protestos ruidosos, solicitou uma reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o qual, não atendendo às esfarrapadas explicações da então embaixadora Golda Meir, segundo as quais os raptores não eram agentes do Estado de Israel mas simples cidadãos privados (!), reconheceu que a soberania da Argentina tinha sido violada, devendo Telavive prestar reparações.

A disputa acabaria saldada através de negociações bilaterais, em que Israel admitiu ter violado a soberania argentina, mas escusou-se a reparar o que quer que fosse.


A persistência da memória

A sala onde decorreu o julgamento (um teatro adaptado às pressas para o efeito), a cela de vidro mostrada em Nova Iorque e noutros lugares, centenas de objectos e artefactos, filmes, fotografias encontram-se hoje musealizados e fazem parte de um intenso e contínuo trabalho de memória levado a cabo por Israel, pelas vítimas do Holocausto e seus descendentes, pelas comunidades judaicas espalhadas pelo mundo, mas também pela Alemanha, sobretudo nos últimos anos: actualmente, em Berlim, numa paragem de autocarro situada em frente do antigo edifício do Gabinete IV-B4, o departamento encarregado dos assuntos judaicos, onde Eichmann trabalhava no seu sinistro ofício, ergue-se um memorial com as inevitáveis fotografias do julgamento de Jerusalém.

Este esforço recordatório, plenamente justificado e cada vez mais necessário devido ao aumento daquilo a que Pierre Vidal-Naquet chamou os “assassinos da memória” (forças neonazis e de extrema-direita, grupos anti-semitas ou negacionistas dos crimes do III Reich) não é isento de excessos e, por vezes, torna-se impossível não concordar com a ideia, defendida por Norman Finkelstein num livro famoso e polémico, de que se encontra hoje enraizada uma verdadeira “indústria do Holocausto”, patente, desde logo, no aproveitamento dos horrores de Auschwitz por parte de livros, filmes ou outras intervenções artísticas escandalosamente comerciais. O sucesso delas é indício de que existe um público vasto e expectante, nuns casos genuinamente interessado no conhecimento de um passado que não quer passar, noutros avidamente sedento de factos nigérrimos, mas que despertam emoções fortes e trepidantes, muito ao gosto do nosso tempo.

Nem sempre é fácil delimitar a fronteira entre a curiosidade histórica e a morbidez doentia, até porque ambas muitas vezes se confundem ou, mais grave ainda, são mobilizadas em conjunto para despertar comoção e até apoio político a causas que ultrapassam, e em muito, aquilo que foi o extermínio em massa dos judeus da Europa. O processo de Jerusalém, desde logo, foi milimetricamente encenado para revestir com uma aura de juridicidade um acto intrinsecamente contrário às leis internacionais, o rapto de um cidadão no território de um Estado estrangeiro e soberano; e, por outro lado, serviu como elemento agregador da identidade nacional israelita, difusa e heteróclita, e como momento de afirmação, quase seminal e fundacional, do recém-criado Estado de Israel, seja perante o seu próprio povo, seja também, e sobretudo, perante as demais nações do mundo.

Ben-Gurion apercebeu-se como ninguém do potencial político e diplomático, mas também simbólico e identitário, da exposição mundial das atrocidades do Holocausto e do juízo de Jerusalém, o qual, não por acaso, seria aberto à imprensa, tendo sido o primeiro julgamento televisionado da História, difundido por várias cadeias norte-americanas, e também o primeiro — e único — caso de condenação à morte na história do Estado de Israel.

O mal, banal

Se as mil e uma peripécias da captura de Eichmann em Buenos Aires têm o frisson próprio dos thrillers e dos filmes de espionagem, e como tal já foram alvo de dezenas de obras cinematográficas e televisivas, o subsequente julgamento de Jerusalém suscitou paixões de outro tipo, mais filosóficas, mais intelectuais, sobretudo após Hannah Arendt ter publicado nas páginas da The New Yorker, e depois em livro, a reportagem em que avançou o famoso e muito sedutor conceito de “banalidade do mal” como forma de explicar aquilo que ainda hoje desafia o nosso entendimento: o problema de saber como é que uma personalidade tão baça e tão ridícula como a de Otto Adolf Eichmann fora capaz de orquestrar, ou ao menos organizar, a chacina de milhões de seres humanos, fazendo-o, ademais, no seio de uma Europa que sempre se vangloriou da grandeza da sua civilização e da pulcritude da sua cultura.

"Quando Arendt se referiu a Eichmann como um clown, não estava a menosprezar a envergadura ou a crueldade dos seus feitos nem, menos ainda, a diminuir-lhe a culpa"


De facto, se a operação de Rafi Eitan fascina pelo sangue-frio e pelo arrojo, pela coragem daquele punhado de oito homens, pela precisão infalível do plano e dos gestos, pelo sucesso final, a acção de Adolf Eichmann também não deixa de surpreender, a seu modo, pela dimensão colossal da escala, pela exigência da logística e dos meios envolvidos e ainda, claro está, pelo absoluto e absurdo desprezo com que lidou com as vidas e o sofrimento de milhões de seres humanos.

Assim, quando Arendt se referiu a Eichmann como um clown, não estava a menosprezar a envergadura ou a crueldade dos seus feitos nem, menos ainda, a diminuir-lhe a culpa. Tratou-se, ao invés, e um pouco à semelhança da expressão “banalidade do mal” (uma “frase feita”, no dizer Gershom Scholem), de um qualificativo de belo efeito estilístico e retórico, típico de uma reportagem para uma revista com o perfil da The New Yorker, e aliás em linha com a tendência, desde sempre veiculada na propaganda de guerra dos Aliados, para explorar os traços mais caricaturais dos próceres do III Reich, de Hitler a Hermann Goering, passando por Himmler ou Josef Goebbels, os quais eram figurados, antes de tudo mais, como indivíduos medularmente ridículos.

Contudo, ao caracterizar Eichmann como um palhaço, um homem desprovido da capacidade kantiana de julgar os outros e as situações da vida (e, por isso, de discernir o bem e o mal), Arendt terá sido vítima das elevadas expectativas com que se dirigiu a Israel para assistir ao julgamento, após ter tomado a iniciativa de oferecer os seus préstimos a William Shirer, redactor-chefe da The New Yorker. Fê-lo com sofreguidão de voyeur, tendo dito à Fundação Rockfeller, quando lhe pediu uma bolsa, que, após ter falhado Nuremberga, aquela seria a sua última oportunidade para presenciar um grande processo do nazismo — e também, note-se, para enfrentar face a face um dos maiores monstros do século (“nunca vi esta gente em carne e osso e será provavelmente a única ocasião que terei para o fazer”). Simplesmente, em lugar do Grande Inquisidor de Dostoiévski ou do demónio em forma de gente, deparou-se com um contabilista franzino e calvo, com óculos de aros de massa, de ar tímido e ausente, que ora parecia estar alheado e nem perceber o que à sua volta se passava, ora abalava os juízes e a audiência com tiradas desconcertantes, quase lunáticas.

Mesmo que Arendt não se tenha apercebido disso, a tese da “banalidade do mal” é, ou é também, produto da decepção que sentiu ao confrontar-se com um SS in vivo, que só na sua imaginação seria — e teria de ser — alguém “diferente” do resto dos comuns mortais, como se não fossem também “banais”, na sua larga maioria, os “assassinos de secretária” (Screibtischmörders) que em Berlim decidiam da sorte de milhões de judeus ou os guardas dos campos e até os seus directores. Houve Mengele, é certo, mas este, curiosamente, não possuía para Israel importância comparável à de Eichmann, o qual, podendo ser um clown e não tendo o porte pérfido e altivo do sinistro médico de Auschwitz, desempenhara um papel muito mais relevante na engrenagem de morte do hitlerismo. Rafi Eitan, aliás, revelaria ao Haaretz, em 2008, que a equipa destacada para Buenos Aires deliberadamente não seguiu as pistas que poderiam tê-la levado no encalço de Mengele justamente para não afugentar a presa maior: Adolf Eichmann.

Mas se Hannah Arendt foi vítima da expectativa demoníaca com que fantasiou o inimigo antes de o ver ao vivo, dentro de uma cela de vidro, a tendência para a diabolização persiste até hoje, mesmo que ela seja pouco ou nada frutífera para a compreensão do papel que Eichmann teve como um dos principais artífices da Solução Final, quer como organizador da famigerada conferência de Wannsee, quer, depois, como executor das medidas nela aprovadas. Mesmo do ponto de vista da caracterização psicológica, a demonização nada adianta e esclarece, impondo-se reconhecer que traçar um perfil psíquico de Adolf Eichmann é hoje tarefa impossível e perigosa e, pior, moral e deontologicamente ilegítima perante a ausência do visado (lembre-se a “Goldwater rule”, aprovada em 1973 pela Associação Americana de Psiquiatria).

O réu tira notas durante o seu julgamento, no interior da cabine de vidro onde foi mantido DR
 
 
Juízes do julgamento de Eichmann: Benjamin Halevy, Moshe Landau e Yitzhak Raveh DR

Retratá-lo como “palhaço”, ou acentuar a sua vulgaridade, acaba por evidenciar ainda mais a nossa incapacidade de o compreendermos como caso humano, desde logo porque a Solução Final e os seus fautores não desafiam apenas os limites do entendimento, mas também da própria linguagem que usamos para imaginar e pensar. A nossa dificuldade em conceber o Holocausto resulta da ausência de palavras capazes de o definir. Assim, seja sob a fórmula de Wittgenstein (“sobre aquilo que não se pode falar, deve calar-se”), seja segundo o aforismo famoso de Theodor Adorno (“Depois de Auschwitz não há poesia”), o silêncio parece ser a atitude mais prudente e honesta ante uma realidade que, por transcender os limites da palavra, ultrapassa as fronteiras do entendimento. “Mal radical”, “mal elemental”, entre outras tentativas de aproximação, são e não passam disso mesmo, tentativas de aproximação, esforços verbais ante aquilo que, sendo indizível, nunca será concebível na plenitude do seu horror.

Neste contexto, é justamente por sermos incapazes de perceber Adolf Eichmann, e até de o conhecer na integralidade do seu íntimo, que recorremos a expressões que oscilam entre o máximo da caricatura (“clown”) e o cúmulo da maldade (“diabo”), mas que, em ambos os casos, são elas próprias vulgares e banais e, sobretudo, com escasso ou nenhum poder explicativo daquele pretérito mais que imperfeito.
O diabo confessa-se

Um documentário recente, da autoria de Kobi Sitt e Yariv Moser, transmitido há semanas pela televisão israelita por ocasião do 60.º aniversário do enforcamento de Ramlah, não só não foge à hipérbole satânica como a eleva a tópico-chave da caracterização de Adolf Eichmann. A escolha do título — A Confissão do Diabo: as gravações perdidas de Eichmann — poderá ter sido ditada por razões comerciais e publicitárias, mas tem também o propósito, ao menos implícito, de contrariar a tese arendtiana da “banalidade do mal”, que provocou enorme celeuma logo que foi divulgada.


Ainda que a controvérsia haja sido motivada, acima de tudo, por outras considerações de Hannah Arendt, nomeadamente as que salientavam o papel dos “conselhos judaicos” na logística da Shoah, desde então a filósofa passou a ser vista como uma bête noire em muitos círculos israelitas e norte-americanos, para não falar das rupturas de amizades que teve de enfrentar (com Gershom Scholem e Hans Jonas, por exemplo). Agora, com base em gravações ditas “inéditas”, que demonstram a sua ausência de qualquer arrependimento pelo destino de milhões de judeus, os autores do documentário (e, bem assim, diversos jornalistas que o têm analisado, como Isabel Kershner, no NYTimes de 4/7/2022) pretendem fazer valer a tese do Eichmann-demónio à custa do esmagamento daquilo que julgam ser uma versão mais edulcorada e complacente do criminoso nazi, a do palhaço vulgar e banal.

Não é muito comum, para dizer o mínimo, termos acesso a um depoimento em que um dos principais arquitectos do Holocausto confessa de forma tão franca e tão despreocupada, tão loquaz, o que sabia e o que fez para a liquidação em massa de seis milhões de judeus. Daí que estas gravações constituam, sem dúvida, um documento histórico de indiscutível interesse e valor, não tanto pelos factos que aí se revelam, mas pela singularidade das circunstâncias em que elas foram feitas e pela desarmante honestidade, e até pela imbecil jactância, com que Eichmann dialoga com o seu entrevistador, Willem Sassen, um jornalista holandês de simpatias nazis, veterano de guerra, que conseguira fugir por volta de 1947 para a Argentina, onde, segundo se diz, traficou armas para os serviços secretos alemães através de uma extensa rede que envolvia o seu próprio irmão, Alfons Sassen, no Equador, Klaus Barbie, na Bolívia, e Otto Skorzeny, em Espanha. Mais tarde, trabalhou como consultor de relações públicas de Augusto Pinochet e de Alfredo Stroessener, tendo chegado, em 1978, a dar uma entrevista a um canal britânico sobre as suas ligações perigosas a Josef Mengele.

A nossa dificuldade em conceber o Holocausto resulta da ausência de palavras capazes de o definir

Em finais de 1956, Eichmann contactou-o, dispondo-se a ser entrevistado por ele, e estas fitas são o produto de quatro meses de conversas, das quais restam cerca de 15 horas de gravação (foram registadas 70 horas, mas, como as fitas eram caras, Sassen regravou muitas delas, depois de as transcrever para o papel).

Poderá parecer surpreendente que um foragido à justiça tenha decidido confessar os seus crimes e deixar registo disso, mas, na altura, Eichmann não só decidira escrever ao chanceler Adenauer, usando o seu nome verdadeiro e dispondo-se a regressar ao país na expectativa de uma sentença leve, como começara a redigir as memórias, por um lado para combater o ennui do exílio e enaltecer vaidosamente o papel que tinha tido no nazismo, e, por outro lado, para deixar à família um rendimento seguro após a publicação post mortem desse depoimento. Os tempos do III Reich foram, sem dúvida, os melhores e os mais grandiosos da vida de Adolf Eichmann, que não só jamais se arrependeu do que fez como sempre se orgulhou do contributo que dera para a “limpeza” dos judeus da Europa.

Na sua esmagadora maioria, as gravações de Eichmann eram até hoje inéditas quanto ao conteúdo, mas não desconhecidas no que se refere à sua existência (a expressão “gravações perdidas”, constante da publicidade, é francamente enganosa). Em finais dos anos 1960, as revistas Stern e Life já haviam publicado amplos trechos das memórias e, por seu turno, a historiadora Bettina Strangneth já tinha baseado partes do seu livro Eichmann vor Jerusalem: Das unbehelligte Leben eines Massenmörders [“Eichmann antes de Jersusalém: a vida secreta de um assassino de massa”], de 2011, nas fitas que uma empresa alemã adquirira e depositara nos arquivos federais de Coblença, que agora autorizaram os produtores do documentário israelita a utilizarem-nas na íntegra.

No julgamento de Eichmann, de resto, já se sabia das gravações, mas, ao que parece, as autoridades israelitas, com Ben-Gurion à cabeça e a conivência da Mossad, não as quiseram usar, seja porque tinham outros e abundantes meios de prova incriminatória, seja porque receavam divulgar alguns dos trechos do áudio, nomeadamente aqueles que falam de Yisrael Kastner, um líder sionista da Hungria que negociou com Eichmann a saída de 1684 judeus para a Suíça, em troca de mil dólares por pessoa, mas que acabou acusado — e condenado em 1955 — por “ter vendido a alma ao diabo” (a metáfora satânica, sempre ela), pois não alertou milhares de judeus húngaros da sorte que lhe estava destinada e por ter evitado no pós-guerra a incriminação de um oficial das SS, Kurt Becher, atestando inclusivamente o seu bom carácter.

Por conseguinte, e como Kastner entrara na política israelita, tornando-se militante do Mapai, precursor dos Trabalhistas, e porta-voz do Ministério do Comércio e Indústria, era melindroso divulgar as gravações de Eichmann onde o seu nome era citado. Kastner, aliás, tinha sido assassinado em 1957 por um veterano do antigo grupo sionista Stern e, um ano depois, o Supremo ilibara-o das acusações de cumplicidade com o nazismo, uma ferida que as autoridades israelitas não queriam por certo reabrir.

Adolf Eichmann DR

Ainda assim, o procurador Gideon Hausner procurou que o tribunal escutasse as gravações, ciente do impacto que teria, sobre os juízes e sobre a audiência, o som da voz de Eichmann a confessar espontaneamente os seus crimes. Nas suas memórias, Hausner refere que chegou a tentar negociar a compra das fitas por 20 mil dólares, mas o vendedor impôs condições inaceitáveis. A defesa, naturalmente, opôs-se a que elas fossem ouvidas no julgamento, e o tribunal autorizou apenas que a acusação usasse uma transcrição em papel, ainda assim volumosa — mais de 700 páginas.

Note-se, todavia — e o ponto é decisivo —, que as gravações não contêm, do ponto de vista histórico, dados novos ou desconhecidos, nem “matéria de facto” que devesse ser usada no julgamento de Eichmann na ausência de outras fontes ou provas credíveis. Compreende-se, no entanto, que elas tenham um valor extraordinário, poderoso e arrebatador, no contexto de um documentário televisivo, pois é arrepiante ouvir a voz de um criminoso nazi deste calibre, como se vinda de além-túmulo ou das profundezas dos infernos.

O que Eichmann diz e a frieza com que o faz contribuem também, e muitíssimo, para esse sobressalto emocional, nomeadamente quando afirma “não se importar” se os judeus de Auschwitz iriam morrer ou viver, quando se gaba dos seus gestos (“se tivesse matado 10,3 milhões de judeus, teria dito com satisfação ‘Graças a Deus, destruímos um inimigo!’, e aí teríamos cumprido a nossa missão”) ou quando refere que “sabia exactamente o que estava a ser feito aos judeus. Os que eram capazes de trabalhar iam trabalhar. Os que não conseguiam deviam ir para a Solução Final, ponto”. Às tantas, Sasser pergunta-lhe pelo número de judeus exterminados e, sentindo-se o zumbido de uma mosca a riscar o ar da sala, segue-se o barulho de uma pancada esmagadora, desferida por Eichmann, naquele que é um momento não-verbal, e por isso mesmo ainda mais aterrador, de todo o documentário.

Contudo, por muito que nos impressionemos com essas palavras, as mesmas não surpreendem vindas da boca de alguém como Eichmann, bastando recordar que ele fugiu de um campo norte-americano de prisioneiros dois dias depois de o seu colaborador Dieter Wisliceny ter testemunhado em Nuremberga que o seu chefe, ao ponderar a hipótese de suicídio, lhe tinha dito que “se iria rir no túmulo porque a sensação de ter cinco milhões de mortos na consciência seria uma fonte de satisfação extraordinária”.

Estas e outras bazófias horrendas e desumanas não o faziam, porém, perder o sentido das coisas e a necessidade de prudência, sendo sintomático que, quando alguns trechos dos colóquios foram publicados na década de 1950, Adolf Eichmann terá entrado em pânico, com Robert Servatius, seu advogado, a acalmá-lo, dizendo-lhe que “o carvalho está bem” (“carvalho” era o nome de código para as gravações de Sassen). De igual modo, quando o diálogo entrou num momento mais comprometedor, com Sassen a perguntar-lhe “quando diz Solução Final, quer dizer exterminar os judeus?” e Eichmann a responder que sim, o primeiro afirmou que isso não devia ficar registado e a gravação foi subitamente interrompida.


Também não foi ao acaso que Eichmann fugiu, sob identidade falsa e com a ajuda de altos funcionários do Vaticano, e que viveu escondido num subúrbio pobre de Buenos Aires, tão pobre que o primeiro agente da Mossad que lá se deslocou regressou de mãos a abanar, dizendo ser impossível que um antigo oficial das SS morasse num bairro daqueles. E, por fim, na sua derradeira alocução em tribunal, Eichmann insistiu na sua escassa culpabilidade, dizendo ter tido “a infelicidade de me ver envolvido nestes horrores, o que não foi fruto da minha vontade, não tive a intenção de matar homens. São os próprios dirigentes políticos os únicos responsáveis deste assassínio colectivo”. Um argumentário já ouvido em Nuremberga e, de resto, sempre utilizado pelos funcionários de escalões mais intermédios ou menores na hierarquia do Reich e que, no fundo, corresponde às clássicas técnicas de neutralização da culpa descritas por criminologistas como David Sykes e Gresham Matza, muitas delas recorrentemente usadas por Eichmann, tais como o apelo a valores e a lealdades superiores, patente nas suas frequentes invocações do divino, ou a negação da culpa, plasmada na tese de que se limitou a cumprir ordens vindas de cima.

Acontece, porém, que Eichmann não só não era um funcionário de escalão inferior, ou sequer intermédio, como teve participação activa na barbárie: recomendou aos comandantes de Auschwitz o uso de Zyklon-B; assistiu a uma matança nos arredores de Minsk; sugeriu que oito mil judeus da Sérvia fossem abatidos a tiro; ordenou o envio para Auschwitz de quatro mil crianças internadas no campo de Drancy; presenciou extermínios em Treblinka; impediu a emigração para a Palestina de judeus romenos, etc., etc.

Também as “gravações do diabo” aniquilam aquela linha de defesa ou técnica de neutralização da culpa e comprometem em definitivo qualquer ideia de que Adolf Eichmann agira a mando alheio e apenas cumprira ordens. “Estou 100% convencido de que Eichmann não teve misericórdia de ninguém e que foi até ao fim um completo nazi”, disse o realizador do documentário, mas, em boa verdade, nunca houve grandes dúvidas sobre isso, pelo que a novidade destas gravações é bem mais reduzida do que se tem feito crer.

Dizer que elas contrariam a noção de “banalidade do mal”, mostrando um ser pérfido e radicalmente mau, em lugar de um burocrata medíocre, é não perceber o alcance da tese de Hannah Arendt, a qual nunca escondeu ou sequer relativizou a “maldade” de Eichmann (chegou a apoiar, inclusive, a sua condenação à morte), sustentando, isso sim, que ele era desprovido da capacidade de juízo, algo que as presentes gravações não só não confirmam como, num certo sentido, até atestam e comprovam.

De igual modo, e pretendendo intervir num velho debate historiográfico sobre o Holocausto, aquele que divide as teses “intencionalistas” das “funcionalistas”, o produtor Kobi Sitt veio afirmar ao Jerusalem Post que estas gravações confirmam plenamente a existência de uma intenção assassina. Ora, nunca os “funcionalistas” negaram a existência de um acto volitivo e de um propósito homicida por parte dos perpetradores da Shoah (pois, sem essa vontade ela nunca teria ocorrido…); o que defendem, em rigor, é que tudo isso deve ser enquadrado num todo mais vasto e que a liquidação em massa dos judeus não se encontrava ab initio nos planos do Führer, sendo antes o produto — não acidental, mas deliberado — de circunstâncias supervenientes, com destaque para a abertura da frente leste e a invasão da Rússia. As confissões gravadas de Adolf Eichmann, por mais “diabólicas” que sejam, não permitem confirmar ou infirmar nem o “intencionalismo”, nem o “funcionalismo” — e, de resto, não era suposto que o fizessem, sendo ademais extremamente arriscado basear toda uma teoria do Holocausto no testemunho isolado de um dos seus protagonistas.

As gravações de Adolf Eichmann valem, assim, pelo frémito que possam suscitar em quem as ouça, pelo suplemento de autenticidade que conferem ao depoimento do ex-SS, pelo contributo que dão para interpretar a personagem


As gravações de Adolf Eichmann valem, assim, pelo frémito que possam suscitar em quem as ouça, pelo suplemento de autenticidade que conferem ao depoimento do ex-SS, pelo contributo que dão para interpretar a personagem e, enfim, pelo efeito pedagógico que exercem sobre as gerações actuais e futuras (não por acaso, o documentário tem feito furor em Israel e tem sido exibido em sessões privadas para elementos das forças de segurança e quadros dos serviços de informações).
O som e o silêncio

No final, uma nota irónica: por duas vezes na vida, Adolf Eichmann foi traído pelos sons e pelo sentido auditivo. Da primeira, seria tramado por um cego, que ouviu pronunciar o seu nome e lhe escutou a voz: Lothar Hermann, um antigo prisioneiro de Dachau, onde sofreu torturas da Gestapo que mais tarde o fariam perder a visão, deslocou-se para Argentina, onde a sua filha fez amizade com os filhos de Eichmann. Um dia, escutou o seu nome nos relatos radiofónicos de um julgamento em curso em Frankfurt e escreveu a denunciá-lo ao procurador-geral do estado de Hesse, Fritz Bauer, o qual, vendo não ter possibilidades de requerer a sua extradição para a Alemanha, teve a coragem de informar secretamente as autoridades israelitas do paradeiro exacto do antigo colaborador de Himmler. Agora, com este documentário, o som e a voz interpõem-se de novo na trajectória biográfica de Adolf Eichmann, confirmando de pleno — como se dúvidas houvesse — o tremendo e incomensurável mal que fez e, pior ainda, a sua ausência de quaisquer remorsos e sentimentos de culpa.

O Holocausto, como atrás se disse, convoca o indizível e apela ao silêncio, na certeza de que, por muito que pensemos ou falemos sobre ele, jamais conseguiremos penetrar no seu coração de trevas e alcançar a plenitude do horror. Adolf Eichmann acabou enforcado por não ter sabido manter a prudência de silêncio que a Shoah sempre impõe. Até por isso, não merece pena alguma.

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