segunda-feira, 8 de agosto de 2022

A formação do Brasil

  No final do período colonial, a população de origem africana no Brasil constituía a vasta maioria num conjunto estimado entre três e quatro milhões de pessoas. Os preconceitos raciais a que foram submetidos, visando justificar a hierarquia social, deram lugar a uma discriminação de longa duração.

Francisco Bethencourt 8 de Agosto de 2022

A colonização portuguesa, o tráfico de escravos de África e a relação com a população ameríndia foram fatores de formação do Brasil. Entre 1415, data da conquista de Ceuta, e 1822, data da independência do Brasil, a emigração portuguesa foi estimada em 1,6 milhões por Vitorino Magalhães Godinho. A vasta maioria foi para o Brasil, devido a dois meses de viagem, tempo relativamente curto comparado com seis meses para a Índia, e baixa taxa de mortalidade.

Luiz Felipe de Alencastro tem vindo a insistir, com razão, no papel de África na formação do Brasil. Trata-se de mão de obra em parte especializada, que trouxe consigo capacidades de mineração, metalurgia, plantação e colheita. Os índios devem ser incluídos neste quadro, pois desempenharam um papel de informação geográfica e orientação no terreno, conhecimento da flora e fauna, capacidade agrícola e produção artesanal. Eram eles que mantinham os ecossistemas locais, como bem sublinhou Manuela Carneiro da Cunha.

Os portugueses beneficiaram do acolhimento inicial dos índios, embora o conflito decorrente da apropriação de terras tenha predominado.


Segundo a base de dados sobre o tráfico de escravos transatlântico, desembarcaram no Brasil, entre meados do século XVI e meados do século XIX, 4,9 milhões de africanos. A população ameríndia é calculada entre um e oito milhões, semissedentários que foram afastados da costa pela colonização, embora uma pequena parte tenha sido integrada no processo.

 "Episódios da vida de Diogo Álvares Correia, o Caramuru", anónimo (Mosteiro de São Bento da Bahia, Sacristia da igreja da Graça)/Wikimedia Commons


Entre os portugueses que mediaram entre os índios e os colonos, Diogo Álvares Correia, chamado “Caramuru” pelos tupinambá, é o caso mais conhecido. Sobrevivente de um naufrágio, casou-se com uma índia e constituiu família, batizada no meio europeu e elevada socialmente, contribuindo para o enraizamento da sociedade colonial.

A colonização é sempre um processo violento; neste caso levou ao declínio demográfico radical da população indígena devido às guerras e à falta de imunidade face às doenças europeias. A exclusão desta população resultou numa enorme perda ecológica e de diversidade humana.

Sistema económico e sistema político

O desenvolvimento do Brasil colonial não foi um processo linear. Iniciado pelo controlo de enclaves na costa, como bem mostrou Sérgio Buarque de Holanda, foi a descoberta de ouro no final do século XVII que estimulou a exploração e ocupação do interior, com o aproveitamento do sistema dos rios para o transporte e a comunicação, a expansão da pecuária e da produção agrícola para os mercados urbanos.

O sistema económico foi definido pelo regime de plantação da cana de açúcar, desde meados do século XVI, do tabaco, desde as primeiras décadas do século XVII, do ouro e diamantes no século XVIII. A exploração do pau-brasil, uma árvore aproveitada para a indústria têxtil, dadas as qualidades de pigmentação vermelha, deu o nome à colónia. Esta exploração e a expansão das plantações contribuíram para a desflorestação do Brasil, como mostrou Warren Dean.

O sistema político foi em parte transferido de Portugal, com capitanias e governo-geral criados nos anos de 1530 e 1540, mas o direito costumeiro local fez parte do sistema normativo plural e hierárquico. O confronto com os competidores europeus – franceses, holandeses e espanhóis – desempenhou um papel importante no alargamento sucessivo das áreas de colonização.

Os primeiros estabelecimentos na baía de Guanabara (1555-60) e em São Luís do Maranhão (1612-15) foram franceses, enquanto o período de ocupação holandesa da maior parte do Nordeste, de 1630 a 1654, deixou uma herança pictórica, com a representação de indígenas, da natureza e de engenhos de açúcar por Frans Post, Albert Eckhout e Zacharias Wagner. A utilização de navios comerciais holandeses pelo sistema de transporte marítimo brasileiro desde as últimas décadas do século XVI sobreviveu à derrota do projeto de conquista.

"Dança dos Tarairiú (Tapuias)", Museu Nacional da Dinamarca, Albert Eckhout (circa 1610-circa 1666)/Wikicommons

A competição com os espanhóis na América do Sul esteve sempre ligada ao comércio e contrabando, sobretudo de escravos, existindo comunidades portuguesas nas principais cidades da América espanhola até à Restauração da Independência em 1640.

A proteção do comércio é visível no Sul, com o estabelecimento da Colónia do Sacramento (1680) em pleno Rio da Prata, enquanto o forte Príncipe da Beira (1775), no interior oeste, testemunha o esforço de definição de fronteiras, estabelecidas pelo Tratado de San Ildefonso (1777). A extraordinária expansão territorial do Brasil era consagrada, bem para além dos limites estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas celebrado entre Portugal e Castela em 1494, que deixara de ter qualquer pertinência.

Elites atlânticas

A circulação das elites no espaço do Atlântico, estudada por Laura de Mello e Sousa, permitiu a coesão do sistema imperial, embora os conflitos internos se tenham multiplicado com o legado holandês de separação de interesses entre o Recife e Olinda (ver Evaldo Cabral de Mello), a luta entre paulistas e reinóis (e outros brasílicos) na disputa pelo controlo de Minas Gerais, a luta pela primazia entre Salvador da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. A Inconfidência Mineira de 1789 exprimiu o descontentamento da elite da região do ouro em período de aperto de impostos e declínio de produção.

Anita Novinski chamou a atenção para a importância dos cristãos novos de origem judaica, que encontraram desde cedo no Brasil refúgio da perseguição inquisitorial. Eles foram objeto de uma onda repressiva fatal nas primeiras décadas do século XVIII, mas durante dois séculos tiveram uma presença fundamental no comércio marítimo, com fortes ligações a Espanha e à América espanhola, investindo nas plantações de açúcar e de tabaco, e participando das elites locais como membros dos concelhos municipais. Alguns deles, como Ambrósio Fernandes Brandão, tiveram um papel importante na criação de uma identidade colonial, contribuindo para a historiografia do Brasil.

Os africanos contribuíram de forma decisiva para a estruturação do Brasil colonial, dado o seu papel nas plantações, na mineração, na construção, no transporte e na economia doméstica. Eles desempenharam um papel fundamental na guerra contra os holandeses, tendo sido utilizados na reconquista de Luanda em 1648 e nas guerras subsequentes pelo controlo do Ndongo e submissão do reino do Congo, dada a sua imunidade face às doenças tropicais.

Escravos em mina de diamantes (1872) GETTYIMAGES


No final do período colonial, a população de origem africana no Brasil constituía a vasta maioria num conjunto estimado entre três e quatro milhões de pessoas. Os preconceitos raciais a que foram submetidos, visando justificar a hierarquia social, deram lugar a uma discriminação de longa duração.

O Brasil era uma sociedade dual, baseada em plantações e mineração, mas também em importantes núcleos urbanos. A estrutura eclesiástica é outra característica, dada a importância das dioceses de Salvador, Olinda, Rio de Janeiro e São Paulo, criadas entre 1551 e 1745, bem como das ordens religiosas que se estabeleceram nos principais núcleos urbanos. Embora a elite brasílica tenha privilegiado a Universidade de Coimbra como veículo de educação, os colégios das ordens religiosas, sobretudo da Companhia de Jesus, garantiram um quadro de conhecimentos.

As ordens desempenharam um papel importante no estudo da natureza, dos índios e da emergente sociedade colonial. Diversos jesuítas escreveram importantes textos sobre a língua e a gramática tupi desde as primeiras missões de meados do século XVI. Entre 1583 e 1601, o jesuíta Fernão Cardim escreveu tratados sobre o clima, a flora e a fauna do Brasil, as origens e os costumes dos índios, para além de cartas de relação de visitas à província do Brasil.

Vicente do Salvador e Padre António Vieira

O franciscano Vicente do Salvador deixou a primeira história do Brasil (ms. 1627), adotando um estilo corográfico e cronístico, contrapondo a natureza e a ação de colonização focada nos governadores e nas guerras com os índios e com os franceses. O franciscano fr. Cristóvão de Lisboa, irmão do erudito politólogo Manuel Severim de Faria, deixou um importante tratado sobre fauna e flora do Maranhão e Grão Pará (ms. 1627). Giovanni Antonio Andreoni publicou em 1711 sob o nome André João Antonil um dos melhores tratados sobre a economia do Brasil.

 No Brasil, Vieira procurou limitar a escravização dos índios pelos colonos, sendo um dos poucos casos de autores de pensamento livre, sem receio de afrontar poderes DR


 A atividade política, diplomática e intelectual do Padre António Vieira teve um enorme impacto na Europa durante a Guerra da Restauração, sendo de destacar as suas relações com a elite política e comercial holandesa, os judeus sefarditas de Amesterdão, a cúria romana, a rainha Cristina da Suécia.

No Brasil, Vieira procurou limitar a escravização dos índios pelos colonos, sendo um dos poucos casos de autores de pensamento livre, sem receio de afrontar poderes. Ele foi acusado e condenado pela Inquisição devido aos seus escritos proféticos, mas o seu apoio aos cristãos novos e a oposição ao procedimento inquisitorial não foram alheios ao processo. O seu triunfo em Roma, onde obteve a isenção papal da jurisdição da Inquisição portuguesa, contribuiu para a viragem de opinião da elite romana que levou à suspensão da Inquisição portuguesa em 1674-81. O culto da língua é uma das grandes heranças de Vieira.

A política jesuítica face aos índios, com a criação de aldeamentos, levou a um modelo híbrido que os retirava do seu meio natural para a catequização sem os integrar na sociedade colonial, enquanto a prestação de trabalho temporário aos colonos, gerida pelos religiosos, resultava de compromissos locais.

A Guerra Guaranítica (1753-1756), desencadeada pela resistência dos guaranis das missões jesuítas contra a implementação de fronteiras definidas pelo Tratado de Madrid de 1750, levou à primeira expulsão de jesuítas do Brasil, seguida pela expulsão da Companhia de Portugal e do império em 1759. A política de Pombal emancipou e integrou os índios das missões num quadro secular, embora os tenha tornado mais vulneráveis.

O risco de um ensaio de conjunto é sugerir uma visão linear e cumulativa. A formação do Brasil define-se por espaços alternativos e criativos, como a santidade de Jaguaripe, estudada por Ronaldo Vainfas. Liderada por António, um índio educado no aldeamento jesuíta da ilha de Tinharé, na capitania de Ilhéus, a santidade transformou-se num movimento de revolta na Bahia no início dos anos de 1580. Tratou-se de um movimento híbrido, entre a mitologia tupi e o cristianismo, à procura da Terra sem Mal, que recusava a colonização branca e defendia a inversão das hierarquias sociais, com António reclamando simultaneamente a sua condição de Papa e de reencarnação de Tamandaré, o antepassado dos tupinambá que escapara ao dilúvio.

A fuga dos escravos africanos criou igualmente espaços alternativos ao longo do período moderno, como os quilombos, particularmente o quilombo dos Palmares na serra da Barriga, capitania de Pernambuco, que resistiu a diversas incursões militares durante mais de um século.

O Brasil holandês, por seu lado, criou a primeira experiência de tolerância religiosa no Novo Mundo, com a coexistência de calvinistas, judeus e católicos estudada por Jonathan Israel e Stuart Schwartz.

Emancipação

A integração subliminar dos ritos afro-brasileiros, a forte presença de mulatos e mamelucos como mediadores das desigualdades sociais profundas, a possibilidade de emancipação favorecida pelas confrarias de escravos, as margens ocupadas por índios e escravos fugitivos contribuem para a identidade e criatividade da sociedade colonial. Embora o sistema esclavagista não fosse diferente dos restantes sistemas europeus na América, a possibilidade de emancipação abria uma fresta explorada habilmente por um certo número de escravos, como foi o caso de Chica da Silva (c. 1732-96), estudada por Júnia Furtado. Parceira do contratador dos diamantes João Fernandes de Oliveira, de quem teve 13 filhos, alguns deles enobrecidos em Portugal, Chico da Silva acabou por fazer parte da elite colonial.

No tempo longo, a formação do Brasil estruturou um vasto e diversificado território, que sobreviveu à independência. Os legados são mistos, salientando-se a exclusão dos índios com integração limitada, o regime de escravatura, cuja discriminação de africanos deixou marcas profundas, a desflorestação da costa e a perturbação dos ecossistemas, a especificidade urbana e arquitetural, inclusive das plantações, desenvolvida pela criatividade barroca do século XVIII, particularmente pelo escultor e arquiteto António Francisco Lisboa, o “Aleijadinho” (c. 1730-1814), uma literatura pujante, com Gregório de Matos e Guerra na segunda metade do século XVII, seguido pelos poetas mineiros da segunda metade do século XVIII, dos quais destaco Cláudio Manuel da Costa e Tomás António Gonzaga, a pintura do período holandês; e, mais tarde, da corte portuguesa no Rio, lembro Jean-Baptiste Debret. De uma forma geral, o sistema normativo e a religião cristã deixaram quadros de comportamento e de crença sobre os quais se inscreveram boa parte dos desenvolvimentos e ruturas contemporâneos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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