terça-feira, 16 de agosto de 2022

Fotografia O duelo entre os menonitas e “o cão raivoso da modernidade”, pela lente da Magnum

  O fotolivro The Mennonites, de Larry Towell, resulta da imersão nas insulares colónias menonitas do Canadá e do México, entre 1990 e 1999. O PÚBLICO conversou com o fotógrafo da Magnum Photos a propósito da reedição, pela Gost Books, e mergulhou nas suas memórias.


Ana Marques Maia 9 de Agosto de 2022


A casa de Cornelius e de Anna Klassen, na colónia menonita de La Batea, Zacatecas, no México, tinha apenas duas divisões e era feita de adobe revestido de amianto. A poucos centímetros da mesa da cozinha, três crianças dormiam num lençol manchado de urina sobre o chão coberto de cascas de amendoim e de beatas de cigarro. “Podes ficar connosco”, ouviu Larry Towell, enquanto os pais transportavam as crianças do chão para a cama que todos iriam partilhar. Larry decidiu pernoitar. “Deitei-me sobre o lençol das três manchas molhadas como se fosse o manto de Cristo”, descreve o fotógrafo. “Como se o pecado original não existisse, como se todos os seres humanos fossem perfeitos à nascença e a sua grandeza desaparecesse com a idade ou, em raros casos, florescesse e dela se fizessem santos cujo nome ninguém recorda.” Tentou dormir, com a cabeça junto às pernas da mesa da cozinha. “Ouvi um homem e uma mulher abraçar-se, a fazer amor numa pilha de bebés adormecidos.”
 Àesquerda, no condado de Kent, Ontário, Canadá, 1996; à direita, El Cuevo, na colónia Casas Grandes, Chihuahua, México, 1992 ©Larry Towell / Magnum Photos

A vívida e poética descrição, redigida na primeira pessoa por Towell, pertence às páginas do fotolivro The Mennonites, que resulta de nove anos de imersão nas colónias menonitas do centro-leste do Canadá e do México. “Foi como viajar até ao século XVIII”, contou o fotógrafo da Magnum Photos ao PÚBLICO, em entrevista a partir da sua quinta, no Ontário, a propósito da recente reedição do livro pela Gost Books, que contém 40 imagens inéditas. “O ramo da Velha Colónia, no qual se foca este trabalho, é o mais conservador e insular dos mais de sessenta grupos menonitas que existem no mundo.”

Colónia La Batea, Zacatecas, México, 1992 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS

Os membros deste grupo, elucida, vêem-se a braços “com o cão raivoso da modernidade, que acredita querer mudá-los e absorvê-los”. Isso traduz-se, na prática, na rejeição da electricidade, de outro meio de transporte que não o cavalo e a carroça e na recusa do uso de pneus de borracha nos tractores que utilizam na faina agrícola, que é a sua principal actividade desde a sua fundação enquanto grupo religioso, na Holanda do século XVI.

“Se existe um tema que interliga todo o meu trabalho é a privação da posse de terra; mais especificamente, como a terra transforma as pessoas naquilo que elas são e o que acontece às suas identidades quando a perdem.” Esta foi a frase que Larry Towell escolheu como cartão-de-visita ao seu perfil, no site da Magnum Photos. E a história que partilha em The Mennonites está, invariavelmente, subordinada a este tema. Nas imagens do canadiano, a pobreza extrema deste grupo pode ser confundida com o seu modo de vida tradicionalista, mas as 60 páginas de texto que precedem as 150 fotografias que compõem o livro não deixam margem para dúvida: este grupo, à semelhança de muitas minorias religiosas ou étnicas ao longo da História, foi desconvidado, social e politicamente, à permanência nos locais onde se estabelecia. Os menonitas da Velha Colónia foram, graças a sucessivas migrações forçadas, desprovidos de condições para a aquisição da sua própria terra e forçados à mudança.

Colónia de Durango, Durango, México, 1994 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS


Sem terra

A denominação de menonita advém do nome de um padre católico do século XVI, Menno Simons, que após a rebelião de Münster (1534-35), que vitimou o seu irmão, abandonou o sacerdócio e se juntou ao movimento anabaptista, então reprimido na Holanda. Crente, porém, no pacifismo e na separação entre Igreja e Estado, Menno fundou o seu próprio movimento, que à semelhança de outras derivações de raiz anabaptista que surgiram nesse período, se manteve impopular. A perseguição – marcada por encarceramentos, tortura e execuções – conduziu Simons e o seu séquito para a clandestinidade e, pouco mais tarde, para o exílio.

Colónia La Batea, Zacatecas, México, 1994 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS

A Prússia foi o primeiro destino do grupo, por volta de 1497, seguido da região da Ucrânia, 240 anos depois. Da Ucrânia para o Canadá migram já em meados do século XIX, e do Canadá para o México, pela primeira vez, nos anos 1920. Os motivos que conduziram às sucessivas debandadas estiveram associados ao carácter isolacionista e não conformista do grupo, que recusou sempre integrar exércitos ou frequentar escolas públicas. Como retaliação, com o intuito de “empurrar” os menonitas para além-fronteiras, alguns governos impuseram-lhes limites à aquisição de terra; em casos mais extremos, houve mesmo perseguição, encarceramento e execução dos seus membros.

“Quando um menonita perde a sua terra, perde também um pouco da sua dignidade”, escreve Towell. “Ele transforma-se num trabalhador migrante, num exilado que passará o resto da sua vida deambulando entre árvores de fruto e pés de vegetais, sonhando, um dia, ter a sua própria quinta.” E foi com este tipo de menonita, exilado e sem terra, com que Towell contactou pela primeira vez, perto de casa. Ao PÚBLICO contou que os primeiros menonitas que conheceu trabalhavam para um conhecido do seu pai, que os contratava para o trabalho agrícola nas suas propriedades.

Colónia La Batea, Zacatecas, México, 1999 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS

Assim chegou até Henry e Maria Bergen e os seus nove filhos. Henry, que não tinha qualquer escolaridade, trabalhava há oito anos para o sr. White e ganhava pouco mais de um dólar acima do salário mínimo. Chovia dentro da casa da família de onze. Por ela, Henry pagava ao senhorio, também seu patrão, muito mais do que a totalidade do seu salário. Para sobreviver, ele tirou dois filhos da escola antes da idade legal para que trabalhassem para White por um salário muito abaixo do mínimo exigido por lei. O fotógrafo perguntou-lhe por que motivo não exigiam um aumento. “De cada vez que sou aumentado, a renda sobe também”, respondeu. “Não vale a pena. Além disso, tenho medo que ele me expulse desta casa.”

Condado de Lambton, Canadá, 1993,Condado de Lambton, Canadá, 1993 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS

Se para White a exploração agrícola era uma fonte de rendimento, não tardou até que os próprios menonitas se tornassem num negócio paralelo. “Dos lucros [que advinham da agricultura], White comprou oito das dezasseis casas da aldeia mais próxima, em Kilbreath; a maioria alberga ‘os seus’ menonitas. Também comprou duas novas quintas e construiu uma nova casa.” Quando novas famílias de menonitas chegavam à região, White albergava-as, mas não sem antes reunir com o Departamento de Saúde e Serviços Humanos “para se certificar que a renda seria paga”. White não era, então, o único empresário, no Ontário, a conduzir este tipo de práticas. Assim se perpetuou, para os membros desta comunidade religiosa, um ciclo de pobreza que dificilmente poderia ser travado ou revertido; e assim se renovou mais uma vaga de migrações forçadas – permanentes ou sazonais. Desta feita, do Canadá até ao México. Sob a supervisão de Towell.
 
Capul n (Colónia Casas Grandes), Chihuahua, México, 1996 ©LARRY TOWELL / MAGNUM



“Eles começaram a convidar-me para ir para o México com eles”, recorda o canadiano. “Migravam desde o Canadá, através dos Estados Unidos, até ao México, onde participavam nas colheitas. Eu conduzia as carrinhas.” Este é um detalhe relevante, já que conduzir veículos é motivo de excomunhão para os menonitas. “Chegados ao México, eles tinham de esconder as carrinhas nas cidades antes de se dirigirem para as colónias. Caso fosse descoberto que conduziram um veículo, seriam excomungados temporariamente. Então, pediriam perdão aos pastores, seriam perdoados, e seguiriam novamente para o Canadá, conduzindo as mesmas carrinhas. No ano seguinte, tudo se repetia.” A presença de Larry Towell tornava-se conveniente para muitos.

A fotografia era também proibida. “Por esse motivo, demorou algum tempo até que ganhasse a confiança necessária para poder fotografar livremente.” As famílias menonitas são, regra geral, numerosas e geograficamente dispersas. “Quando os fotografava no México, oferecia as fotografias aos seus familiares do Canadá. E vice-versa. Assim devolvia algo às pessoas e estabelecia elos de confiança.” Visitou, no México, o total de 24 colónias. “Ficava nas suas casas durante vários dias ou semanas e seguia para outra colónia.” Foi a todas as que pertencem ao filo da Velha Colónia no México pelo menos uma vez, garante. “Algumas, cinco ou seis vezes.”
Tempos de mudança

Devido ao colapso da economia mexicana, na primeira metade da década de 90, cerca de 30% dos menonitas perderam as suas terras e dezenas de milhares passaram a viver economicamente à margem. “À medida que o fosso entre ricos e pobres aumentou, os [menonitas] pobres ou ficavam destituídos ou eram forçados a violar princípios básicos da igreja”, escreve Towell. “Ambas as opções deram origem a ressentimento, alienação e a dispersão interna.” Quando o fotógrafo deu por terminado o projecto, em 1999, “já quase todas as colónias [do México] se tinham rendido à electricidade”.


Colónia La Batea, Zacatecas, México, 199 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS


“As coisas mudaram, para o bem e para o mal”, conclui. “Eles continuam cá, no Canadá. Alguns ficaram, outros voltaram para o México. Aqueles que não se adaptaram às colónias modernizadas acabaram por seguir para a Bolívia e para outros países da América Latina, onde, sob a pressão dos pastores, continuam a praticar um estilo de vida tradicionalista.”

Larry Towell, hoje com quase 70 anos, continua a considerar os menonitas que conheceu “como uma extensão da sua família”. “Este projecto foi sempre muito pessoal, muito calmo, vagaroso. Este tipo de jornalismo lento, ou de documentário, demora anos a ser feito. Eu fotografei o quotidiano, nada de dramático. O livro e as imagens resumem-se a isso.”

Se algo aprendeu, ao longo dos 34 anos enquanto membro da Magnum Photos, onde foi parar “por acaso” e se tornou o primeiro associado canadiano, em 1988, “é que fazer algo de valor demora muito tempo”. Towell, que além de fotógrafo é músico folk e poeta, dedicou dez anos ao registo da guerra em El Salvador, sete ao primeiro fotolivro sobre a Palestina e 13 ao segundo. “Voltava ano após ano a estes lugares; e alguns livros que nasciam desses projectos tinham apenas 60 fotografias.” Nem sempre mostrar mais fotografias é sinónimo de fazer um melhor trabalho, refere.

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