Grupo de migrantes força entrada em Melilla
Carmo Afonso 27 de Junho de 2022
Quando as coisas não correm bem, precisamos de encontrar culpados. Temos muito para onde nos virar agora. O mundo está profícuo em más notícias e na própria banalização do mal.
É um processo normalmente pouco isento. Cada um encontra os culpados que mais convêm à sua visão do mundo e, já agora, os que mais lhes convêm pessoalmente. Li há pouco que Pedro Sánchez, presidente do Governo da Espanha, perante a tragédia que matou 37 emigrantes em Melilha, afirmou que os culpados são os grupos/máfias que se dedicam ao tráfico humano.
É certo que estes têm responsabilidades. Mas é ofensivo elogiar as autoridades espanholas e marroquinas, condenando apenas a atuação destas máfias. Fica o assunto encerrado. Pois que fique em paz quem se conforma com essa análise de um problema que parece irresolúvel e que vai continuar a matar pessoas. Pessoas que estão mesmo dispostas a morrer para tentar uma vida melhor.
Para termos uma ideia do nível de sofrimento em que vivem, basta pensar nos riscos que estão dispostas a correr, muitas vezes trazendo consigo crianças. Apesar de não serem tratadas dessa forma, são pessoas iguais a nós; que amam igualmente os seus filhos. O que nos faria iniciar uma viagem com um filho nos braços, sabendo que não conseguíamos garantir a sua segurança?
A primeira vez que ouvi falar neste assunto foi numa conferência do Gonçalo Ribeiro Telles há quase vinte anos. O GRT previu o que temos vindo a assistir. Dizia que o nosso egoísmo nos impedia de ver a situação de miséria extrema em que viviam milhões de pessoas e que, mesmo que não fosse pelas razões altruístas de as querermos ajudar, devíamos fazê-lo pelas egoístas: é que um dia viriam em debandada para a Europa e o Mediterrâneo seria um cemitério se não os deixássemos entrar. Nisto tinha razão.
Temos à porta um cemitério. Podemos sacudir a água do capote, encontrar uns culpados que não nos comprometam e que nos excluam do problema. Mas a morte vai continuar.
O papel das autoridades marroquinas e espanholas não pode ser elogiado. Têm em mãos um problema que ninguém queria ter mas a vida é assim: irredutível. Não vai passar. Não se adivinham soluções fáceis e instantâneas, mas ninguém pode compactuar com a forma como isto está a ser gerido. O que estas autoridades estão a fazer envergonha-nos. E mata vidas, vidas que como todas as outras, têm o mesmo valor que as nossas.
E isto deve ser perguntado: será que a maioria dos portugueses reconhece na vida daquelas pessoas o mesmo valor que nas suas? Será que sabem que aquelas crianças são iguais às nossas? Porque somos tolerantes com esta chacina?
GRT dizia que a solução era ajudar as pessoas nos seus países de origem. Na altura, e antes de todos os conflitos que viemos a conhecer, preocupavam-no as dificuldades que tinham com a escassez de água e a ausência de desenvolvimento nas técnicas agrícolas. Também Angela Merkel, que revelou alguma coragem e humanidade na forma como lidou com o problema dos refugiados, falou na importância de melhorar as condições de vida destas pessoas mais perto dos seus países de origem. E acolheu muitos.
Escolho duas pessoas com as quais não me identifico politicamente. Ribeiro Telles foi também um grande ambientalista, talvez o maior, contrariando a ideia de que o verdadeiro ambientalismo só pode vir da esquerda. Lá está; devemos ser justos. E devemos ter essa preocupação acrescida quando as coisas não estão a correr bem. É impossível viver bem num mundo onde pessoas desesperadas morrem como tordos.
A União Europeia tem sido desastrosa em todas as intervenções que fez nestes países. Mesmo quando segue esta corrente de pensamento. A relação de desigualdade que está sempre implícita não ajuda. O Regulamento de Dublin marcou o princípio da não reciprocidade que caracteriza as relações entre os europeus e estes cidadãos. Somos todos cúmplices desta hipocrisia.
Certo é que é vergonhoso o que aconteceu e vergonhosas são também as palavras de Pedro Sánchez. Não vou dizer que é ele o culpado. De culpados estamos nós cheios. Escrevo quando também dos Estados Unidos chegam notícias miseráveis. E novamente neste caso os culpados amontoam-se: até a esquerda ativista, que não se conseguiu decidir entre Trump e Hillary, veio à berlinda. As pessoas ficam mais descansadas quando encontram causas para as coisas e culpados. É pena que não se deem muito ao trabalho nessa averiguação. É também graças a estes simplismos que o mundo não melhora.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
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