quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Encontrar os culpados

 

                                       Grupo de migrantes força entrada em Melilla


Temos à porta um cemitério. Podemos sacudir a água do capote, encontrar uns culpados que não nos comprometam e que nos excluam do problema. Mas a morte vai continuar.

Carmo Afonso 27 de Junho de 2022

Quando as coisas não correm bem, precisamos de encontrar culpados. Temos muito para onde nos virar agora. O mundo está profícuo em más notícias e na própria banalização do mal.

É um processo normalmente pouco isento. Cada um encontra os culpados que mais convêm à sua visão do mundo e, já agora, os que mais lhes convêm pessoalmente. Li há pouco que Pedro Sánchez, presidente do Governo da Espanha, perante a tragédia que matou 37 emigrantes em Melilha, afirmou que os culpados são os grupos/máfias que se dedicam ao tráfico humano.


É certo que estes têm responsabilidades. Mas é ofensivo elogiar as autoridades espanholas e marroquinas, condenando apenas a atuação destas máfias. Fica o assunto encerrado. Pois que fique em paz quem se conforma com essa análise de um problema que parece irresolúvel e que vai continuar a matar pessoas. Pessoas que estão mesmo dispostas a morrer para tentar uma vida melhor.

Para termos uma ideia do nível de sofrimento em que vivem, basta pensar nos riscos que estão dispostas a correr, muitas vezes trazendo consigo crianças. Apesar de não serem tratadas dessa forma, são pessoas iguais a nós; que amam igualmente os seus filhos. O que nos faria iniciar uma viagem com um filho nos braços, sabendo que não conseguíamos garantir a sua segurança?

A primeira vez que ouvi falar neste assunto foi numa conferência do Gonçalo Ribeiro Telles há quase vinte anos. O GRT previu o que temos vindo a assistir. Dizia que o nosso egoísmo nos impedia de ver a situação de miséria extrema em que viviam milhões de pessoas e que, mesmo que não fosse pelas razões altruístas de as querermos ajudar, devíamos fazê-lo pelas egoístas: é que um dia viriam em debandada para a Europa e o Mediterrâneo seria um cemitério se não os deixássemos entrar. Nisto tinha razão.

Temos à porta um cemitério. Podemos sacudir a água do capote, encontrar uns culpados que não nos comprometam e que nos excluam do problema. Mas a morte vai continuar.

O papel das autoridades marroquinas e espanholas não pode ser elogiado. Têm em mãos um problema que ninguém queria ter mas a vida é assim: irredutível. Não vai passar. Não se adivinham soluções fáceis e instantâneas, mas ninguém pode compactuar com a forma como isto está a ser gerido. O que estas autoridades estão a fazer envergonha-nos. E mata vidas, vidas que como todas as outras, têm o mesmo valor que as nossas.

E isto deve ser perguntado: será que a maioria dos portugueses reconhece na vida daquelas pessoas o mesmo valor que nas suas? Será que sabem que aquelas crianças são iguais às nossas? Porque somos tolerantes com esta chacina?


GRT dizia que a solução era ajudar as pessoas nos seus países de origem. Na altura, e antes de todos os conflitos que viemos a conhecer, preocupavam-no as dificuldades que tinham com a escassez de água e a ausência de desenvolvimento nas técnicas agrícolas. Também Angela Merkel, que revelou alguma coragem e humanidade na forma como lidou com o problema dos refugiados, falou na importância de melhorar as condições de vida destas pessoas mais perto dos seus países de origem. E acolheu muitos.

Escolho duas pessoas com as quais não me identifico politicamente. Ribeiro Telles foi também um grande ambientalista, talvez o maior, contrariando a ideia de que o verdadeiro ambientalismo só pode vir da esquerda. Lá está; devemos ser justos. E devemos ter essa preocupação acrescida quando as coisas não estão a correr bem. É impossível viver bem num mundo onde pessoas desesperadas morrem como tordos.

A União Europeia tem sido desastrosa em todas as intervenções que fez nestes países. Mesmo quando segue esta corrente de pensamento. A relação de desigualdade que está sempre implícita não ajuda. O Regulamento de Dublin marcou o princípio da não reciprocidade que caracteriza as relações entre os europeus e estes cidadãos. Somos todos cúmplices desta hipocrisia.

Certo é que é vergonhoso o que aconteceu e vergonhosas são também as palavras de Pedro Sánchez. Não vou dizer que é ele o culpado. De culpados estamos nós cheios. Escrevo quando também dos Estados Unidos chegam notícias miseráveis. E novamente neste caso os culpados amontoam-se: até a esquerda ativista, que não se conseguiu decidir entre Trump e Hillary, veio à berlinda. As pessoas ficam mais descansadas quando encontram causas para as coisas e culpados. É pena que não se deem muito ao trabalho nessa averiguação. É também graças a estes simplismos que o mundo não melhora.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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