O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, beija a barriga de uma grávida, durante o desfile das Marchas Populares, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, 12 junho 2022. ANTÓNIO COTRIM/LUSA António Cotrim/Lusa
Carmo Afonso 22 de Junho de 2022
Marcelo Rebelo de Sousa - neste caso graças a António Cotrim, fotojornalista da Lusa - brindou-nos com mais uma imagem histórica. Desta vez debruçado e encostado à barriga de uma grávida. Melhor (ou pior): a beijar a barriga de uma grávida. Uma grande fotografia tirada na fracção de segundo certa para pôr a nu o destempero do nosso Presidente da República. Claro que não caiu bem.
Importa pois clarificar: na fotografia em causa, vemos um presidente estratega a estabelecer laços com o povo ou Marcelo a ser ele mesmo; destravado e excêntrico? Vou pela segunda hipótese e com grande convicção.
Já vimos Marcelo nas mais disparatadas poses e preparos. Não há pai para o nosso Presidente. Vai para a praia nadar mesmo que esteja mau tempo e sempre disponível para dois dedos de conversa com quem também tiver essa disponibilidade. “Não se nega a ninguém um copo de água”, costuma dizer-se. Pois bem, Marcelo não recusa uma fotografia com ninguém. Quantos portugueses terão uma fotografia ao lado do Presidente? Certamente uns bons milhares. Alguém deveria fazer esta contagem. Faço parte do grupo. E vai uma.
Esqueçam o Presidente que tenta ganhar vantagens com o apelo aos sentimentos dos portugueses e olhem para ele como é. Marcelo não é um português típico, não foi um professor universitário típico das faculdades de Direito (escreve uma sua ex-aluna) e nunca poderia ter dado um Presidente como os outros. Nem que tivesse esse objetivo o conseguiria concretizar.
Recordemos alguns episódios: Marcelo, candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, atira-se ao rio Tejo e nada até à margem. O Tejo, em 1989, era quase um esgoto. Marcelo era um desconhecido junto do eleitorado. A combinação foi excelente. Uma ação de campanha que ficou para a história. Ainda nessa campanha, Marcelo foi taxista por um dia. Guiou um táxi pelas ruas de Lisboa. Nada disto foi suficiente para ganhar a Jorge Sampaio. Mas, tem de se reconhecer, Marcelo Rebelo de Sousa foi à luta com coragem e sem um dos medos que mais assola a classe política portuguesa: o medo de ser ridículo. Este medo não assiste ao Presidente dos portugueses. Se isso é positivo? Tenho a certeza e a isenção para falar do assunto. É que nunca votei em Marcelo. Este artigo, sendo sobre um político, não é sobre política.
Uma nota, um aparte: anos mais tarde assisti a Marcelo contar porque, na sua opinião de comentador sobre si mesmo, perdeu aquelas eleições. A razão: no debate televisivo, em final de campanha, acedeu ao pedido de Jorge Sampaio de lhe dirigir um tratamento informal como o que tinham fora daquelas lides. Marcelo aceitou. O comentador Marcelo diz que foi uma má decisão e que o político ficou assim condicionado desde o início do debate e que o perdeu por isso. Terá aprendido a lição porque o vi fazer o mesmo a Marisa Matias no debate para as últimas presidenciais.
Também já vimos Marcelo nadador-salvador nos mares do Algarve. Pois se duas raparigas estavam em apuros, junto a uma canoa que tinha virado, quem melhor que o Presidente da República para as acudir? A SIC captou o momento e foram imagens que correram o mundo.
Esta vaga de excentricidade começou por ser bem vista pelos portugueses, politraumatizados com a presidência de Cavaco Silva, o homem que tinha engolido um garfo. Era quase unanimemente bem recebida a profusão de afectos e de hiperatividade com que Marcelo nos bombardeou desde o início do primeiro mandato. Depois começaram as dúvidas.
Há qualquer coisa que não bate certo num político que tem a reputação de ser intriguista nos bastidores e que aparece em público tão de coração aberto. E, claro, para muitos é mais fácil aceitar a linguagem sentimental de alguém que tem a sua cor política. Não esquecer que, aparentemente, a maioria dos portugueses se considera de esquerda.
Mas devemos, sempre e em cada situação, tentar ser justos.
Podemos não gostar de olhar para aquela fotografia. Razões há, e de sobra, para ser classificada como despropositada. Não se deve é partir daí para o automatismo de se chamar àquilo populismo ou estratégia política. É um homem a ser diferente dos outros, mas igual a ele mesmo. Ninguém deve ser criticado por isto. Naquela imagem está o retrato de um homem que não mediu o alcance do seu gesto. Isto é o oposto de populismo.
Por último: a mulher grávida não estava de todo contrariada. Relatado pela própria: ainda pediu um segundo beijinho. E a criança já nasceu e de boa saúde. Um final feliz em tempos difíceis para nascer.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico
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