sábado, 27 de agosto de 2022

Qatar, o Mundial da Vergonha

 


António Araújo








António Araújo21 Agosto 2022

No próximo dia 21 de Novembro, às quatro da tarde em ponto, hora local, um esférico denominado Al Rihla ("A Jornada"), fabricado pela marca Adidas, com uma cobertura de poliuretano texturizado e 20 gomos, será colocado no centro de um grande rectângulo de relva. Em seu redor, um estádio com 60 mil lugares sentados, projectado pela firma alemã AS+P, querendo "AS" dizer Albert Speer, o filho do arquitecto de Hitler. A empresa holandesa que forneceu os relvados dos últimos três Mundiais de Futebol recusou-se a colaborar neste torneio após ter sabido que só na construção dos estádios já pereceram mais de 6750 trabalhadores, todos oriundos da Índia, do Bangladesh, do Nepal e do Sri Lanka. Nenhum cidadão do Qatar, país anfitrião, morreu na edificação das infraestruturas que irão receber o Mundial da Vergonha.

Para os jornalistas e turistas que lá forem, para os que ficarem colados aos écrans a ver as fintas e os passes dos craques, talvez fosse útil saber um pouco mais sobre o que é o Qatar, pelo que se recomenda a leitura de um livro-reportagem acabado de sair, assinado por John McManus, um antropólogo social e escritor, que tem passado a última década no Médio Oriente e na Turquia (vive em Ancara), tendo já publicado, aliás, um outro livro sobre a paixão futeboleira turca e suas fúrias. Este de que agora falo tem o título pouco inspirado de Inside Qatar - Hidden Stories From One of the Richest Nations on Earth (Icon Books, 2022) e, ao contrário do que se possa julgar, não é um relato preconceituoso e impiedoso dos muitos males que afligem o emirado, antes uma digressão pelas fundas incoerências de um país recente, que só viu a independência em 1971 e, desde então, anda em busca de um caminho entre os biliões do petróleo, grandiosas ambições de modernidade e pesados arcaísmos islâmicos.

Um relatório da ONU, já de 2020, descreve o Qatar como "quase uma sociedade de castas baseada na nacionalidade", o que em parte, mas só em parte, se compreende, pois os cataris representam uma ínfima minoria no seu próprio país, sendo cerca de 313 mil cidadãos, numa população total de cerca de três milhões, essencialmente composta por imigrantes vindos da Índia (24% da população), do Nepal (16%), das Filipinas (11%), do Bangladesh (5%), do Paquistão (4%) e do Sri Lanka (2%). Com tantos trabalhadores migrantes, a esmagadora maioria dos quais na construção civil (44% da força laboral do país trabalha nas obras), não admira que 72% da população seja masculina. Mulheres estrangeiras, no Qatar, só as empregadas domésticas vindas das Filipinas e de África, especialmente do Quénia.

Sendo óbvio que os opulentos privilégios de que gozam os cataris não poderiam estender-se à restante população (por ex., os nativos não pagam impostos e dois terços da população não trabalha, nem tem sequer ocupação), o que espanta e confrange é a brutal disparidade entre nacionais e não-nacionais, mesmo os vindos do Ocidente para empregos sofisticados e bem pagos. Atroz ironia: na Europa e na América, onde hoje tanto se combatem as injustiças do racismo, não houve ainda um movimento em larga escala para boicotar um Mundial de Futebol realizado num dos países mais racistas do mundo, onde, segundo as estatísticas oficiais, 43% dos cataris casam com membros da sua própria família, geralmente primos em primeiro grau, o que tem provocado sérios problemas de consanguinidade, que o director do Centro de Genética Médica de Doha reconhece, mas desvaloriza em nome da preservação da "pureza de sangue do país". Goebbels não diria melhor.

À semelhança da independência, também a riqueza é recente - mas imensa. Sem aptidão agrícola ou vocação industrial, a economia do Qatar baseava-se historicamente na apanha de pérolas em alto-mar, mas acabou por se afundar com o crash bolsista de 1929 e com a descoberta, pelos japoneses, de métodos de cultivo artificial de pérolas (facto que bem poderia servir de lição para a actualidade e para os riscos da monocultura do petróleo e do gás). Em meados dos anos 1940, a população reduzira-se a umas 16 mil almas e o xeque Abdullah Al Thani foi ao ponto de ter de fazer um empréstimo hipotecário sobre o seu palácio. Entretanto, em 1939, geólogos da Anglo-Persian Oil Company descobriram frondosas jazidas de petróleo e, dez anos depois, começaram as exportações do ouro negro. É ele a causa de o Qatar ser um dos países mais ricos do mundo: de 2002 a 2014, foi o mais rico; desde então, está em terceiro lugar, atrás do Luxemburgo e de Singapura. Dinheiro a jorros, mas que beneficia quase em exclusivo 11% da população residente, os cataris de raça. Dinheiro que tem permitido compras multimilionárias pelo mundo fora: além do Harrod"s, estima-se que o Estado do Qatar tenha mais propriedades em Londres do que a rainha Isabel II, para não falar dos investimentos em marcas de luxo como a Valentino ou a Tiffany, entre tantas outras.


Dominado desde o século XIX pela Dinastia Al Thani, e governado desde 2013 pelo emir Tamim bin Hamad Al Thani, um autocrata que, segundo se diz, é ainda mais conservador do que o seu pai, o Qatar é mais liberal do que outras nações de Golfo, com destaque para a Arábia Saudita (por exemplo, as cataris podem conduzir automóveis, ainda que tenham várias limitações para obter a carta; a pena de morte não é aplicada desde 2003; as mulheres são encorajadas a estudar e 2/3 dos licenciados são do sexo feminino). O país gosta, aliás, de transmitir uma imagem de modernidade e abertura ao mundo, com a Qatar Airways e a Al-Jazeera (bem menos independente do que parece), e, importa dizê-lo, muitas das práticas que mantém são elementares medidas de autodefesa de uma população ultraminoritária na sua própria terra, a qual tem, ademais, uma relação nada fácil com os seus poderosos vizinhos. Em 2017, o Qatar foi alvo de um grave bloqueio por parte de diversos países muçulmanos (Arábia Saudita, Iémen, Bahrain, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Maldivas, Líbia) e ficou sem acesso a alimentos e a matérias-primas, alegadamente por causa das suas relações incestuosas com a Irmandade Islâmica e com o Daesh.

Até às reformas constitucionais dos anos 90, que deram ao emir o poder de designar o seu filho como sucessor, a chefia do Estado não obedecia ao princípio da primogenitura, o que dava azo a um sem-fim de conflitos e de intrigas palacianas e o país é bem menos estável do que parece, tendo assistido, nos últimos 70 anos, a duas abdicações, em 1949 e 1960, e a dois golpes de Estado, em 1972 e 1995, o último dos quais levou um filho a depor o próprio pai. A ambiguidade estratégica tem sido chave de sobrevivência: o Qatar tanto alberga a maior base dos EUA no Golfo Pérsico, Al-Udeid, com mais de 11 mil soldados estacionados, como mantém relações cordiais com o Irão e namora e favorece o extremismo islâmico (a principal mesquita de Doha é, de resto, dedicada ao fundador do ultraconservador Movimento Wahabista).

Além da opressão sobre o povo e da ausência de democracia e de respeito pelos Direitos Humanos, traços comuns às monarquias do Golfo, o principal e mais vil pecado do Qatar, a sua singularidade repulsiva, é o modo como trata os trabalhadores estrangeiros. É certo que, também nesse plano, não se destaca muito das barbáries praticadas naquelas paragens, bastando lembrar que, no Líbano, em 2018, a etíope Lensa Lelisa se atirou da janela da casa dos patrões (por sinal, donos de uma das marcas mais fashion do país, a Eleanore Couture) por não suportar mais os espancamentos diários com cabos eléctricos, entre outras torturas; ou que, no Kuwait, o cadáver desmembrado da filipina Jonna Demafelis, de 29 anos, foi encontrado na arca congeladora do casal que servia; ou o caso de Tuti Tursilawatti, uma empregada doméstica indonésia de 34 anos, executada na Arábia Saudita por ter morto o patrão quando este a tentou violar, ao fim de um ano de sevícias sexuais.

E não, não são casos isolados, mas sim a ponta de um icebergue miserável. Das cerca de 176 mil empregadas domésticas que trabalham no Qatar, 83% tiveram os seus passaportes confiscados mal chegaram ao país, segundo um relatório de 2020 da Amnistia Internacional. E só conseguem entrar se tiverem o patrocínio de um empregador, segundo o sistema da kafala, ficando inteiramente nas mãos dos seus senhores e amos, sem dinheiro para obter o visto e comprar passagem de regresso a casa, sem possibilidade de mudar de emprego ou de patrão, um inferno na terra. Na esmagadora maioria dos casos, os migrantes, logo à chegada, são confrontados com um contrato novo, com salários mais baixos e piores condições do que aquele que haviam assinado antes de partirem. Sindicatos não existem e os contratos laborais têm todos prazos curtos de um, dois anos, mesmo para quem trabalhe para a mesma empresa ou patrão há dez, 20 anos, ou mais.

A kafala é o cancro maior do Qatar: a existência de um patrono, que, segundo a lei islâmica, constituía uma forma de os mais fortes protegerem os mais fracos (por ex., quando estes assinavam contratos ou iam a tribunal), converteu-se, muito por culpa do colonizador britânico, num sistema de paternalismo esclavagista, com os empregadores a apoderarem-se dos vistos de entrada, dos passaportes e das autorizações de trabalho e residência dos pobres migrantes. Não admira, assim, que, para milhares deles, a jornada de trabalho comece às 4.30 da manhã, com interrupção à hora do calor (por vezes, nem isso), e só termine pelas sete ou oito da noite.


Um inquérito de 2018 concluiu que os operários das obras do Mundial trabalhavam dez horas por dia, seis dias por semana, em condições deploráveis, sendo frequentes jornadas de trabalho de 12 a 14 horas e até casos de escravos que trabalharam 148 dias consecutivos sem uma única folga. Com a aproximação do torneio e a aceleração da obra, a situação agravou-se. Contudo, e dadas as atenções internacionais e as inspecções mais regulares, os trabalhadores do Mundial são até dos mais protegidos - simplesmente, correspondem a 4% da força laboral do país; os restantes 96% continuam à mercê de um sistema iníquo em que até os relatórios oficiais do país reconhecem que milhares de desgraçados são obrigados a trabalhar em condições de "stress de calor", a temperaturas acima dos 40ºC, com humidade horrível, com um em cada três trabalhadores a sofrer de hipertermia.

Um artigo publicado em 2019 na revista Cardiology estabeleceu uma correlação inequívoca entre o calor extremo e a morte de 500 operários nepaleses. O problema agrava-se pelo facto de o Qatar não realizar autópsias, sendo todas as mortes atribuídas a "causas naturais" ou "doenças cardiovasculares", o que, tendo em conta a idade jovem da maioria dos migrantes, é coisa mirabolante. Para efeitos estatísticos, aliás, o Registo Nacional de Traumas só contabiliza as mortes que têm lugar após a chegada ao hospital, ou seja, deixa de fora o imenso universo dos acidentes letais ocorridos nos locais de trabalho. Apesar de tudo isto, é consensual entre as ONG e os observadores externos que os abusos mais graves e os piores maus-tratos não são perpetrados pelos cataris, mas pelos migrantes sobre outros migrantes, até seus compatriotas, sendo frequente a descoberta de horríveis redes de exploração e de tráfico humano nos países de origem da Ásia e de África.

Mesmo ao fim de décadas a viver e a trabalhar no país, é praticamente impossível obter a cidadania; é necessário falar árabe, residir no Qatar há 25 anos e a lei determina que, por ano, só podem ser concedidas 50 naturalizações. De igual modo, e ao contrário do que se passa no Dubai, por exemplo, é quase impossível a um estrangeiro comprar propriedades ou enviar os filhos para escolas de qualidade, excepto ocidentais privilegiados, sendo também estranho que num país com tantos asiáticos não exista um só templo budista ou hindu (há uma minúscula zona cristã que os cataris não podem frequentar).

Até por isso, o que se passa com o futebol é particularmente abjecto. O Qatar não tem tradições na modalidade e o seu primeiro clube só foi criado em 1950; desde então, foram fundados outros - o Al-Rayyam, o Al-Arabi, o Al-Saad - que servem para arredondar as contas de jogadores ou técnicos em fim de carreira, como Pep Guardiola, Gabriel Batistuta ou Xavi Hernández, mas que, apesar dos investimentos milionários, não levam os cataris aos estádios. Mesmo com bilhetes a preços caricatos - cerca de 3 euros nas bancadas, 14 euros num lugar VIP - nunca mais de mil pessoas assistem a um jogo ao vivo, preferindo fazê-lo no conforto de casa, algo que, obviamente, será uma tormenta no pós-Mundial: que destino irão ter tantos estádios, tão sumptuosos e volumosos?

De resto, por causa do clima e não só, são poucos os cataris que praticam futebol e diz-se que este é, isso sim, um brinquedo caro do xeque Jassim bin Hamad Al Thani, filho do antigo emir, que governou o país de 1995 a 2013. O xeque Jassim, ao que parece, tem até um gigantesco estádio de futebol em sua casa e foi um dos principais promotores do actual Mundial, no qual o Qatar investiu a única coisa que tem: dinheiro. Através da Qatar Airways, foram patrocinados grandes clubes europeus, como o AC Roma ou o Bayern de Munique, ao mesmo tempo que se construía um hospital de ponta de Medicina Desportiva, a que já acorreram diversas estrelas, e se lançava um canal internacional de desporto, o beIN Sports, e a multimilionária Academia Aspire, que recruta talentos da bola ao abrigo de um programa designado Football Dreams, orçado em muitos milhões de dólares, que já escrutinou mais de 3,5 milhões de jovens pelo mundo fora, dos quais anualmente são selecionados uns 20, no máximo, a quem são oferecidas condições estratosféricas e o maior prémio de todos - a cidadania do Qatar.


Se o país é xenófobo e racista, avesso a naturalizar estrangeiros, mesmo os que nele trabalham há décadas, no domínio desportivo passa-se o inverso, com concessões escandalosas e rapidíssimas de nacionalidade: em 1999, a equipa de lançamento de peso do Qatar foi desqualificada dos Jogos Árabes por se ter descoberto que nela participavam quatro atletas búlgaros; em 2003, o queniano Stephen Cherono, supostamente a troco de avultada maquia e de uma pensão vitalícia, tornou-se nacional catari com o nome Saif Saaeed Shaheen; em 2004, para fúria da FIFA, o Qatar tentou naturalizar, numa semana, três futebolistas brasileiros, Ailton, Dédé e Leandro.

Graças aos biliões injectados na Academia Aspire, o Qatar conseguiu conquistar a Taça Asiática de 2019, um feito extraordinário num país que, dois anos antes, estava na 102ª posição no ranking mundial, atrás da Serra Leoa e das Ilhas Faroé. Resta acrescentar que se tratou de um triunfo forjado na base da fraude, mesmo que autorizada pelos complacentes critérios da FIFA: dos 23 jogadores da selecção, 17 eram naturalizados, muitas vezes às pressas e, pior ainda, segundo regras e procedimentos jamais aplicáveis aos que vivem e trabalham no país há décadas. Argumentar que em todas as selecções desportivas do mundo há casos como este só obscurece o essencial: o abominável racismo selectivo do país anfitrião do próximo Mundial. Racismo que se estende ao desporto: cerca de metade da população do país tem origem no sul da Ásia, pelo que o críquete é, de longe, a modalidade mais popular e praticada. Ora, enquanto o fundo soberano do Qatar já gastou, desde que comprou o Paris St. Germain, em 2011, muitos biliões com o futebol, incluindo a compra-recorde do brasileiro Neymar por 262 milhões de dólares, a Associação de Críquete do Qatar recebe anualmente um subsídio que não chega aos 200 mil dólares.

Ou seja, o futebol é usado como instrumento de dominação da minoria catari sobre a legião de migrantes que sofrem e mourejam no deserto, sob calores escaldantes. Os que se erguem, e bem, contra o racismo da Europa e da América deveriam também, no mínimo, olhar para outras paragens do mundo, mil vezes piores e mais bárbaras. E saber, por exemplo, que 15% das hospitalizações de migrantes no Qatar derivam de tentativas de suicídio; e que, num país com serviços médicos gratuitos e de alto nível, 90% dos migrantes nunca chegam a receber o seu cartão de saúde das mãos dos patrões.

Depois, houve a tremenda corrupção que deu a vitória ao Qatar na corrida à organização do torneio, não deixando de ser irónico que, num ano em que o mundo sofreu uma vaga de calor sem precedentes (e a Europa a maior seca de 500 anos), causada pelo aquecimento global e pelos combustíveis fósseis, nos preparemos para assistir alegremente ao Mundial do Petróleo - e do Gás. O Qatar, convém lembrá-lo, tem a maior reserva de gás natural do mundo, situada no mar setentrional do país, estimada em 900 triliões de metros cúbicos (e é também um dos maiores emissores de gases com efeito de estufa do planeta, com um cadastro ambiental miserável). Quando agora se fala da dependência europeia do gás e do petróleo russos (a propósito, quando conheceremos o plano de contingência e de poupança energética do governo português? E porque não existe uma campanha nacional de poupança da água?), deve recordar-se que, em 2021, um quarto de todo o gás importado pela Grã-Bretanha veio do Qatar. Se a isso juntarmos as vultuosíssimas compras de armamento à América e ao Reino Unido, os biliões ganhos pelos gabinetes que projectaram e pelas empresas que construíram os novos e faraónicos estádios, orçados em 10 mil milhões de dólares (!), não custa concluir que era óbvio que o Qatar iria ser o anfitrião deste Mundial vergonhoso, que faz lembrar o da Argentina de 1978, que branqueou e legitimou a cruel ditadura de Videla. Pequeno grande detalhe: desde há décadas, e para polir a imagem, o Qatar gasta biliões nas maiores empresas de lóbi de Londres e Nova Iorque - Hill+Knowlton Strategies, Portland Communications, Blue Rubicon, Grey, Brown Lloyd James - e contratou a peso de ouro diversos "embaixadores" da sua candidatura - Samuel Eto"o, Xavi Hernándes, David Beckham.

Tudo isto é bem o espelho daquilo em que o futebol se tornou nas últimas décadas: uma actividade viciada, viciosa e viciante que de desportiva pouco tem. Todos os anos, com a cumplicidade dos paizinhos, sedentos de terem um Ronaldo em casa que os converta em milionários, milhares de jovens são atraídos por uma carreira na bola, seduzidos por promessas de clubes que os usam como escravos descartáveis. São ínfimas, quase nulas, as probabilidades de um jovem praticante nas "academias" vir a jogar nos escalões seniores dos clubes grandes: menos de 0,012%. Repete-se: menos de 0,012%. À conta dessa miragem, milhares de moços, talvez milhões, perdem dez anos de vida, largam os estudos, comprometem o futuro, o deles e o dos seus países, que na quimera da esfera desbaratam gerações de miúdos, com efeitos não despiciendos na produtividade e nas qualificações da mão-de-obra de uma nação inteira. Se a isso juntarmos outros males - corrupção generalizada de dirigentes, árbitros e jogadores; promiscuidade com políticos, autarcas, interesses imobiliários, negócios escuros; promoção de uma cultura boçal e alarve, machista, sexista e racista, assente na violência física e verbal, com sucessão de "casos" e "escândalos", muitos dos quais do foro criminal, sobretudo os desencadeados pelas horripilantes "claques"; transferências com valores pornográficos; ocupação tirânica do espaço público, com vários canais e jornais e horas infindas de "comentários", em detrimento de outras actividades intelectual e espiritualmente mais enriquecedoras - percebemos que aquilo que hoje se passa no mundo do futebol poderá ser muita coisa, mas desporto não é certamente. No próximo mês de Novembro, enganar-se-á quem julgar estar a assistir a um jogo de futebol na TV: no rectângulo, disputa-se a bola, mas o que aí verdadeiramente se joga são negócios fabulosos de petróleo e armamento, conjuras geopolíticas, fundamentalismos religiosos, a opressão de mulheres e de migrantes, o absoluto desprezo pelos direitos fundamentais e pela dignidade humana. É este o belo espectáculo que estamos prestes a aplaudir.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Caro D. Manuel Clemente: pedofilia não é só pecado. É crime


O Papa Francisco já explicou isto mil vezes. A Igreja portuguesa, pelos vistos, continua a não querer perceber.



João Miguel Tavares 28 de Julho de 2022

 
Se a ocultação de centenas de milhares de casos de pedofilia por parte da Igreja não for a maior barbaridade cometida ao longo da sua História (a competição é forte), é com certeza uma das maiores. A Igreja permitiu a destruição da vida de crianças inocentes e das suas famílias, denegou-lhes justiça, ocultou os crimes dos seus sacerdotes, promoveu a prática continuada desses crimes ao deslocar os padres pedófilos para outras paróquias, cobriu tudo com um repugnante manto de silêncio, colocou a reputação da hierarquia à frente do sofrimento dos mais fracos, afastou do seu seio os justos para proteger os ímpios, cuspiu em cada palavra do mesmo Evangelho que jurou seguir.
 

Não é coisa pouca. Bento XVI começou a dar os primeiros passos, ainda tímidos, para corrigir a situação. O Papa Francisco tem sido bastante mais resoluto: assumiu tudo, pediu perdão vezes sem conta, impôs a criação de comissões independentes para avaliar a escala do drama da pedofilia ao nível local, tomou medidas efectivas para ajudar a purificar o ambiente da Igreja – só que, infelizmente, continua a ser muito difícil enfiar as suas ideias na cabeça de todos os padres e de todos os bispos, pois, como o próprio Papa já explicou, é tarefa hercúlea remover o clericalismo da Igreja – essa perversão estrutural que é sempre um sintoma de falta de humanidade. Nas suas sábias palavras, “sob qualquer rigidez há sempre podridão”.

Ponham podridão nisso. Veja-se o caso agora noticiado pelo Observador: tanto D. José Policarpo, no final dos anos 90 (por queixa da mãe da vítima), como D. Manuel Clemente, já depois de 2019 (por queixa da própria vítima), tiveram conhecimento de uma acusação de abusos sexuais de uma criança de 11 anos, ocorrida no início da década de 90, por parte de um jovem padre. Esse padre foi afastado das actividades paroquiais por D. José Policarpo apenas em 2002, para logo ser colocado numa capelania onde voltou a ter contacto com jovens, sem que nem o antigo nem o actual cardeal-patriarca tenham apresentado queixa à polícia.

Embora este caso em concreto esteja por esta altura prescrito, é muito pouco compreensível que D. Manuel Clemente continue a refugiar-se em respostas evasivas, tanto mais que, como explica o pedopsiquiatra Pedro Strecht no artigo, “há um alto risco de prossecução do mesmo crime, porque os abusadores, uma vez abusando, têm grande probabilidade de o continuar a fazer”. Ora, quando o Observador tentou saber mais pormenores sobre a actuação da Igreja, foi “informado telefonicamente pelo gabinete de imprensa do Patriarcado que D. Manuel Clemente não pretendia dar mais respostas ao jornal”. Quanto às respostas que deu, elas não descansam ninguém: segundo o Patriarcado, terá sido a vítima a não querer divulgar o caso, já que a sua intenção foi apenas garantir “que não se voltasse a repetir”.

A sério? Esta ausência de explicações é um pecado capital – chama-se soberba, e é o oposto da humildade. Há um duplo problema naquele raciocínio: 1) Ninguém percebeu, até agora, que raio fez a Igreja para impedir “que não se voltasse a repetir”. 2) Não compete à Igreja substituir-se às autoridades civis e ao Ministério Público. A pedofilia não é apenas um pecado – é também um crime. A Igreja pode ocupar-se do primeiro, mas é à Justiça, e só à Justiça, que compete avaliar o segundo. O Papa Francisco já explicou isto mil vezes. A Igreja portuguesa, pelos vistos, continua a não querer perceber.

O tempo dos sisudos

Life of Brian
 

Ana Cristina Leonardo
26 de Agosto de 2022


Não indo esta que vos escreve para nova, vou começar por citar um clássico.

“…
JUDITH: Acho, Reg, que qualquer grupo anti-imperialista como o nosso deve reflectir na sua base tal diversidade de interesses.
REG: Concordo. Francis?
FRANCIS: Sim, Reg, o ponto de vista de Judith parece-me válido, desde que o movimento nunca esqueça que o direito inalienável de qualquer homem…
STAN: Ou mulher…
FRANCIS: Ou mulher… É ele livrar-se…
STAN: Ou ela…
FRANCIS: Ou ela…
REG: Aprovado.
FRANCIS: Obrigado, irmão.
STAN: Ou irmã.
FRANCIS: Ou irmã. Onde é que eu ia?
REG: Acho que tinhas terminado.
FRANCISCO: Ah! Certo.
REG: Além disso, é direito inato de qualquer homem…
STAN: Ou mulher.
REG: Porque é que não te calas com as mulheres, Stan? Estás a desviar-nos do assunto.
STAN: As mulheres têm todo o direito a participar no nosso movimento, Reg.
FRANCIS: Porque é que falas tanto de mulheres, Stan?
STAN: Eu quero ser uma.
REG: O quê?!
STAN: Quero ser uma mulher. De aqui para diante, quero que me chamem Loretta.
REG: O quê?!
LORETTA: É um direito meu como homem.
JUDITH: Bom, mas porque queres ser Loretta, Stan?
LORETTA: Quero ter bebés.
REG: Queres ter bebés?!
LORETTA: É um direito de todo e qualquer homem ter filhos se quiser.
REG: Mas... tu não pode ter bebés.
LORETTA: Não me oprimas!
REG: Eu não te estou a oprimir, Stan. Tu não tens útero! Onde é que o feto se vai desenvolver?! Vais guardá-lo numa caixa?!
LORETTA: (chora)
JUDITH: Olha! Eu... eu tenho uma ideia. Digamos que concordas que ele não pode realmente ter bebés porque não tem útero, o que não é culpa de ninguém, nem sequer dos Romanos, mas que ele pode ter o direito a ter bebés.
FRANCIS: Boa ideia, Judith. Lutaremos contra os opressores pelo teu direito a dar à luz, irmão. Irmã. Desculpa.
REG: Qual é o interesse?
FRANCIS: O quê?
REG: Qual é o sentido de lutar pelo direito dele a ter bebés, quando ele não pode ter bebés?!
FRANCIS: É um símbolo da nossa luta contra a opressão.
REG: É um símbolo da luta dele contra a realidade, isso sim.”

O excerto — já o terão reconhecido —, é retirado do script de A Vida de Brian, comédia dos Monty Python realizada em 1979 por Terry Jones, um quadro de paródia aos dogmas da extrema-esquerda de estro anticlerical.

Na época, não houve manifestações particulares vindas desse lado — ou porque a extrema-esquerda se riu de si própria ou porque não se reconheceu ao espelho —, mas algumas organizações de crentes falhos de humor enxofraram-se e consideraram-no uma blasfémia. O filme, além de problemas com a produção — só um cheque passado por George Harrison, um dos ex-Beatles, permitiria que finalmente fosse avante —, foi proibido em países como a Irlanda, a Noruega e em certas zonas de Inglaterra, sujeito a boicotes vários pelo mundo, incluindo nos Estados Unidos.

Na Suécia, da campanha de publicidade constava a frase: “O filme é tão engraçado que a Noruega o proibiu”, e em Inglaterra surgiu um anúncio radiofónico estrelado pela voz maravilhosa da mãe de John Cleese a apelar ao público para ir ao cinema ver A Vida de Brian. O filho informara-a, fosse a fita um desastre de bilheteira sendo ele um dos investidores, deixaria de conseguir financiar a simpática residência onde ela morava e uma senhora com aquela provecta idade morreria na hora se despejada por falta de pagamento (Muriel Cleese viveria até ao ano 2000, após completar 101 primaveras…).

O público borrifou-se, vingou-se dos censores e fez de Life of Brian um enorme sucesso (de bilheteira e também de crítica). Considerado um dos melhores momentos de comédia da sétima-arte (ao lado de obras brilhantes como o Some Like It Hot de Billy Wilder), é caso para reflectirmos — ou/e para nos assustarmos — ao lermos as declarações de Terry Jones muitos anos mais tarde, afirmando que seria demasiado arriscado pensar realizá-lo hoje (o hoje era 32 anos depois, sendo a data das declarações do realizador: Outubro de 2011).

“Na época, a religião parecia estar em segundo plano, era como pontapear um burro morto. Regressou de forma vingativa e antes de o fazer agora pensaríamos duas vezes”, confessou Jones. Quando interrogado sobre se consideraria realizar um filme satírico, mas no caso sobre muçulmanos, declarou: “Provavelmente não, pensando no que aconteceu a Salman Rushdie”. E não será preciso recordar que em 2011 Salman Rushdie ainda não fora esfaqueado.

Uma das razões para A Vida de Brian permanecer tão engraçado decorridos mais de 40 anos, reside na dessincronia entre a época retratada (o Império Romano) e a linguagem usada pelos actores (sem o conceito moderno de imperialismo a célebre piada, “Mas afinal, o que é que os romanos fizeram por nós?” perderia toda a graça). E é sobretudo na linguagem que o retrato jocoso, penetrante e certeiro de uma certa esquerda ganha folgo. É impossível, por exemplo, não ver na cena em que se confrontam a Frente Popular da Judeia, a Frente Popular Judaica e a Frente Judaica Popular um retrato das dissidências à esquerda em que, como é do conhecimento geral, bastariam três militantes para se dar uma cisão (coisa que virá, arriscamos, mais de trás, daquele dito judaico e dialéctico: “dois judeus, três opiniões”, em que um deles terá várias e não necessariamente concordantes).

Se a Igreja católica incluindo os seus crentes mais falhos de humor parecem menos propensos a gritar blasfémia à vista de tudo o que mexe, o diálogo de A Vida de Brian reproduzido no início dificilmente deixaria de despertar a fúria do movimento LGBTQIA+. Veja-se o sucedido há dias em França.

Um cartaz lançado pela respeitável associação feminista Planning familial foi a gota d’água. Nele se lê a frase “No Planning, sabemos que os homens também podem estar grávidos”, legendando o desenho de um homem grávido acompanhado do seu companheiro. O que seria para chamar a atenção para os transgéneros, gerou um tal sururu, com pedidos para serem retirados os apoios estatais à Planning, que Isabelle Rome, ministra-adjunta para a Igualdade entre mulheres e homens, Diversidade e Igualdade de oportunidades se sentiu na obrigação de sair em defesa da associação. Sobre a estranheza do cartaz, disse apenas: “Não deixemos a extrema-direita atiçar ódios, instrumentalizando uma campanha que compreendo não seja consensual”.

Aquilo que para Reg (John Cleese) “era um símbolo da luta contra a realidade” passou a ser um problema de opinião com mais ou menos adeptos. E se Carl Sagan nos lembrava que éramos filhos das estrelas, onde vão as estrelas! As estrelas e a biologia!

Não é preciso ter lido Enigma — História de uma Mudança de Sexo de Jan Morris (Tinta-da-China, 2017) para intuir que nascer no corpo errado deverá ser das experiências mais terríveis que conseguimos imaginar. O livro, autobiográfico e publicado originalmente em 1974 — respeito! —, conta o percurso que conduz, aos 46 anos, James Humphrey Morris (nome de baptismo) a Jan Morris, celebrada escritora e historiadora britânica. Há coisas que ela explica com total clareza: “Macho e fêmea são sexos, masculino e feminino são géneros, e embora os conceitos obviamente se sobreponham, estão longe de ser sinónimos. (…) O anseio transexual, pelo menos como eu o experimentei, é bem mais do que uma compulsão social, é antes biológica, imaginativa e essencialmente espiritual”. Quem não for capaz de notar a diferença entre isto e a frase de efeito “sabemos que os homens também podem estar grávidos” não há dioptrias que o salvem!

Entretanto, da intimidade mais íntima passámos à politização desenfreada, com ameaças da Planning invocando difamação e discurso de ódio e uma ministra a resumir a natural estranheza face ao cartaz a manobras da extrema-direita. Assim estamos, entre os vivas aos homens grávidos! e a perseguição aos homens efeminados — as trincheiras que nos querem obrigar a escolher. E o desvario agrava-se com o escândalo da Clínica londrina Tavistock, especializada em disforia do género e onde crianças e jovens foram sujeitos irresponsavelmente a tratamentos irreversíveis, arriscando-se agora a ser processada por cerca de mil famílias.

Vivemos tempos perigosos para a inteligência e nem sequer podemos culpar os Romano.
 

O pedido do presidente Zelensky

Visto Gold

Vivemos um momento de exceção. Mas essa exceção não deve abrir portas a exceções às questões de princípio. Deve verificar-se o contrário: há aqui um teste à solidez dos valores que costumamos apregoar.



Carmo Afonso 26 de Agosto de 2022

A primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin, considerou não ser correto que os cidadãos russos possam entrar na Europa, serem turistas, enquanto a Rússia mata pessoas na Ucrânia. São palavras suas.

Esta visão é partilhada pelos governos da Estónia, da Letónia e da República Checa. Já a Alemanha, pelo chanceler Olaf Scholz, manifestou uma posição mais cautelosa e considerou que a guerra na Ucrânia não é uma guerra do povo russo, mas sim uma guerra de Putin.

Nesta quarta-feira o presidente Zelensky pediu ao chefe da diplomacia portuguesa, João Cravinho, a imposição de restrições à concessão de vistos a cidadãos russos. Recordemos que, desde fevereiro, não concedemos “vistos gold” a estes cidadãos, mas que se mantém a concessão de vistos para estadas de curta duração.
 
Por cá, o assunto já tinha sido discutido e os partidos dividem-se: o PCP e o Bloco, por razões diferentes, são contra. O PS e o Livre preferem aguardar por orientações da União Europeia. À direita as posições não foram muito claras apesar de se esperar uma maior concordância com a ideia.

O tema será discutido no próximo dia 31 em reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE. A Comissão Europeia tem deixado esta matéria ao critério de cada Estado-membro. Existem, claro, sanções aplicadas a quem esteja ligado ao governo russo e a quem preste apoio material ou financeiro ou que obtenha benefícios do governo russo. Ficam de fora os restantes casos.

É relativamente a estes que Zelensky pede a atuação do Estado Português. Deve então refletir-se no alcance desse pedido e nas suas consequências, caso seja concedido.

Putin tem oposição interna e a invasão da Ucrânia não é uma manifestação da vontade do povo russo. Bastaria sabermos que existem dissidentes para acionarmos um travão no que diz respeito ao tratamento do povo russo como um todo homogéneo e apoiante da invasão.

Além disso, existe a questão da coerência com os princípios que estabelecemos. Como justificar a hostilização, ou pelo menos a estigmatização, de um povo na sua globalidade? Qual a fronteira entre uma medida dessa natureza e xenofobia? E em que medida é que devemos acreditar que uma decisão política, que fere os nossos próprios valores, pode ter um efeito positivo na ordem internacional?

Vivemos um momento de exceção. Mas essa exceção não deve abrir portas a exceções às questões de princípio. Deve verificar-se o contrário: há aqui um teste à solidez dos valores que costumamos apregoar. Passar no teste é não ceder.

Mas será que o pedido do presidente ucraniano é um tema quente?

A guerra na Ucrânia tem sido a ignição para lutas férreas no espaço público. Vê-se na comunicação social, nos debates políticos e nas interações nas redes sociais. Não tem havido lugar para contextualizações ou quaisquer posições que não se restrinjam à manifestação de apoio incondicional à Ucrânia e à condenação da invasão russa. Fazê-lo é carregar no botão do conflito.

"Não tem havido lugar para contextualizações ou quaisquer posições que não se restrinjam à manifestação de apoio incondicional à Ucrânia e à condenação da invasão russa. Fazê-lo é carregar no botão do conflito"

Poderia pensar-se que tal intransigência e radicalismo teriam repercussões nas exigências feitas ao Governo português relativamente a medidas concretas que marcassem o envolvimento, ou pelo menos o apoio à Ucrânia, por parte de Portugal. Só que não é assim. A intransigência tem como objeto apenas a retórica; as palavras de quem fala sobre a guerra. Já as ações concretas estão ao fresco.

Portugal mantém relações diplomáticas com a Federação Russa. Não se fazem ouvir quaisquer críticas a tais relações. É que a indignação daqueles que são manifestamente radicais no apoio à Ucrânia dirige-se a comentadores da guerra ou a quem manifesta posições relativamente a ela, mas muito pouco a atuações efetivas de quem toma decisões políticas que dizem respeito ao conflito ou às recusas relativamente ao que é pedido pelo presidente Zelensky.

O pedido do presidente Zelensky, de restrições à concessão de vistos, não mereceu uma torrente de apoio público ou a exigência, junto do Governo português, para que a ele aceda. Não se adivinha que venha a acontecer. Os portugueses querem ouvir as palavras certas, e exigir que todos as digam, mas existe alguma concordância tácita no afastamento dos pontos sensíveis e concretos do conflito. Quanto a estes, não há radicalismos, há até algum silêncio.

Este é um sinal dos tempos.

O pedido do presidente ucraniano não é, entre nós, um tema quente da mesma maneira que não o foram os seus anteriores pedidos. Quente é a raiva que somos capazes de sentir, uns pelos outros, quando travamos a luta das palavras.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Rui Moreira e assuntos do coração

Coração de D. Pedro MARIA JOÃO GALA

Num momento como o que o Brasil atravessa, como está Rui Moreira a prestar-se a este papel?




Carmo Afonso 22 de Agosto de 2022

Esteve este fim-de-semana pela primeira vez em exposição pública. Foi no salão nobre da Irmandade da Lapa no Porto. Estamos a falar do coração de D. Pedro IV, que o monarca terá oferecido à cidade do Porto e que, desde 1834, tem estado guardado na capela-mor da Igreja da Lapa.

Estava guardado a cinco chaves e essas cinco chaves estão à guarda do presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira. A razão para a exceção, a que assistimos, é o convite, ou pedido, da transladação do coração para o Brasil, com vista a integrar, ainda não se sabe exatamente como, as comemorações do bicentenário da independência do país.

Está agendada para hoje, segunda-feira, a sua chegada ao Palácio do Planalto, em Brasília. Supostamente será recebido com honras de chefe de Estado como salvas de canhão e escolta pelos Dragões da Independência. Ao que chegámos.

Rui Moreira acompanhará a relíquia e declarou que “a Câmara do Porto assegurará todas as diligências necessárias, assim como a articulação com outras entidades, em especial com as autoridades brasileiras, no que concerne à segurança da operação de transporte”.

 Monumento à Independência, em São Paulo, onde estão guardados os restos mortais de D. Pedro e das suas duas esposas, as imperatrizes Maria Leopoldina e Amélia Leuchtenberg Luiz Coelho L&C/Creative Commons

Esta história não tem ponta por onde se lhe pegue, mas está a acontecer e merece portanto que se pegue por alguma. Comecemos pelo culto a uma relíquia como é o coração de um defunto. Todo o respeito por quem sente gosto por estas coisas, mas, convenhamos, é repugnante e medieval.

No Tieta do Agreste, de Jorge Amado, a irmã de Tieta, Perpétua, guardava fervorosamente uma relíquia do seu falecido marido, naquele caso o pénis. Também Umberto Eco, em O Nome da Rosa, fez sátira e humor com este culto: o jovem Adso de Melk delirou com as maravilhas que lhe foram dadas a ver na abadia benedita e que supostamente incluíam uma costela de Santa Sofia, o queixo de Santo Eobano, um dente de João Baptista, uma parte da omoplata de São Crisóstomo e um dedo de São Vidal. Guilherme de Baskerville, homem sensato, serenou-lhe o entusiasmo.

Pois por cá, levamo-nos muito a sério, mesmo quando tudo aponta para estarmos a fazer figura de parvos.

Não se pode ignorar que este pedido foi feito pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. Lembramo-nos de certeza que, muito recentemente, não se coibiu de destratar Marcelo Rebelo de Sousa, representante de todos os portugueses, mesmo daqueles que não o apreciam. Mas se não apreciam Marcelo, o que dizer de Bolsonaro? A pergunta que tem de ser feita é: qual a razão para acedermos a um pedido deste homem? Não será certamente para agradar ao povo brasileiro. De muitos sectores, mas sobretudo dos meios intelectuais, as críticas a esta ideia fazem-se ouvir.


Também não deverão ser ignoradas as razões que levaram ao convite. Enquanto alguns se orgulham de disponibilizar o coração de um defunto, interessa refletir sobre as motivações do presidente brasileiro.

Jair Bolsonaro é uma ameaça à democracia brasileira e tem-se encarregado de demonstrar a que ponto; em vésperas de eleições, não se coíbe de ameaçar inviabilizar o processo eleitoral. Como pode isto ser ignorado? A única iniciativa que o governo de Bolsonaro anunciou, até agora, para as comemorações do bicentenário da independência foi a transladação do coração de D. Pedro. É evidente a intenção de retirar importância à participação do povo brasileiro no processo que levou à independência e de reforçar a do monarca. Num momento como o que o Brasil atravessa, como está Rui Moreira a prestar-se a este papel?

Não é a primeira vez que Portugal participa num episódio destes. Quando o Brasil era governado por uma ditadura militar, e também no âmbito das comemorações da independência, foi negociado entre Américo Tomás e o general Médici, então presidente, a ida do corpo de D. Pedro para o Brasil. Aconteceu em 1972 para assinalar os 150 anos.

Só esta repetição já deveria fazer soar um alarme. Bolsonaro é um admirador confesso desses tempos. Mas para muitos brasileiros são uma memória de morte e repressão. Também nós, portugueses, não temos do que nos orgulhar.

Não se percebem as motivações de Rui Moreira ou a sua falta de ponderação. Um liberal que permite que uma grande figura do liberalismo seja usada para compor a narrativa de um amante de ditaduras. O presidente da Câmara do Porto leva com muitos cuidados o coração de D. Pedro IV enquanto arrasa muitos outros. E os portugueses assistem. A esperança de ver mais um português a triunfar lá fora, mesmo que esteja morto e vá aos bocados, é a última a morrer.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Hoje a favor, amanhã contra: as piruetas da regionalização

 

Marcelo, Cavaco e Montenegro

O referendo à regionalização voltou a marcar passo depois de Luís Montenegro ter considerado uma "irresponsabilidade" a consulta popular que António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa já tinham concordado fazer em 2024. O volte-face do novo líder do PSD é só mais um numa longa lista de 30 anos de piruetas sobre um tema que divide e a que não escapam os antigos primeiros-ministros Cavaco Silva e José Sócrates.A madrugada de 28 de Julho de 1994 marcou a mudança de posição de Cavaco Silva. Até então, o primeiro-ministro eleito com a regionalização no programa sempre dissera ser "a favor". Contudo, após uma longa reunião de madrugada na sede do PSD, argumentou o oposto. Afinal, a criação de regiões "aumentaria as desigualdades e as assimetrias" e criaria "uma nova e vasta classe política".
A imagem daquela reunião da Comissão Política do PSD na São Caetano à Lapa, contada agora pelo então ministro Arlindo Cunha, é digna de um filme sinistro. Já de madrugada, depois de falhar a luz, as poucas velas existentes iluminavam os apoiantes do "sim" e do "não" numa discussão tensa. "O grande antirregionalista que convenceu o Cavaco e a Comissão Política foi o Dias Loureiro. Aliás, naquele tempo havia os nogueiristas e os loureiristas. Eu tenho a honra de ser dos nogueiristas", diz Arlindo Cunha, referindo-se a Fernando Nogueira.

A divisão não era saudável e havia que votar a posição do partido (e do Governo). Contadas as espingardas, o "não" venceu por apenas um voto e deixou descontente o ministro da pasta, o regionalista Valente de Oliveira. O líder da JSD, que à data era Pedro Passos Coelho, também não saiu satisfeito: "Exprimimos uma opinião contrária". Entre 2011 e 2015, como primeiro-ministro com maioria absoluta, Passos Coelho voltaria a estar condicionado, desta vez pelo parceiro de Governo, o CDS-PP de Paulo Portas, convicto opositor desta reforma.

PERIGOSO OU INESTIMÁVEL?

Com um voto a ditar a posição contra do PSD em 1994, a regionalização estava adiada, mas o assunto voltaria a ser tema no famigerado referendo de novembro de 1998 que Marcelo Rebelo de Sousa venceu pelo "não" , contra o primeiro-ministro António Guterres.

"Os votantes do "não" cumpriram uma missão histórica, poupando a Portugal um erro inútil, insensato e perigoso", disse o então líder do PSD. Já como presidente da República, 23 anos mais tarde, em 2021, Marcelo mudava de posição e considerava a regionalização "um serviço inestimável a Portugal", desde que fosse feita com "visão, sensatez e consenso nacional". As palavras a favor da reforma foram proferidas perante os autarcas no congresso da Associação de Municípios. Tinha acabado de ser aprovada, sem votos contra, uma moção favorável ao referendo em 2024. No entanto, o referendo cairia por outra via, a de Montenegro.

Sem consultar os autarcas do PSD, o novo líder rasgou a anuência dada pelo seu antecessor (Rui Rio, que até tinha sido pelo "não" em 1998) e declarou o referendo "uma irresponsabilidade, uma precipitação e um erro". O arrojo foi criticado por autarcas como Ricardo Rio que falou de "um processo morto".

As notícias da morte do processo remontam a pelo menos 2011, quando Miguel Relvas apelidou o primeiro-ministro José Sócrates de "coveiro da regionalização". O socialista defendera em 2009 que o processo era "indispensável e urgente", mas dois anos depois disse que "as circunstâncias económicas e políticas não favorecem este movimento". A exigência legal de dois terços do Parlamento para aprovar a lei-quadro que precede o referendo inviabiliza o avanço imediato, tal como em 1994 e 2009. Porém, como mostram os últimos 30 anos, os partidários do "sim" não querem que a história acabe já.

Reforma prevista na lei há 46 anos

A Constituição da República Portuguesa diz, desde 1976, que "as regiões administrativas são criadas simultaneamente, por lei, a qual define os respetivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos". Desde 1997 que o referendo é obrigatório.

Contra

Quem está contra a regionalização argumenta que ela irá criar mais cargos políticos, como os governos e parlamentos regionais, o que aumentaria a despesa pública. Há ainda quem defenda que as regiões não favorecem a unicidade do Estado português e que o combate ao centralismo pode ser feito apenas por via da descentralização. Argumentam, ainda, que em momento de crise económica ou internacional não deve ser perdido tempo com esta reforma do Estado.

Favor

O principal argumento a favor da regionalização é o combate ao excessivo centralismo do Estado. Entendem que um poder de decisão próximo favorece a resolução dos problemas e fomenta o crescimento económico, motivo pelo qual o crescimento económico da Galiza em relação ao Norte de Portugal é um exemplo muito usado. Rebatem o argumento do aumento dos gastos com a eliminação de cargos intermédios que formariam os governos regionais e frisam que só há oito países na Europa sem regiões e são os mais pobres, incluindo Portugal.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Fotografia O duelo entre os menonitas e “o cão raivoso da modernidade”, pela lente da Magnum

  O fotolivro The Mennonites, de Larry Towell, resulta da imersão nas insulares colónias menonitas do Canadá e do México, entre 1990 e 1999. O PÚBLICO conversou com o fotógrafo da Magnum Photos a propósito da reedição, pela Gost Books, e mergulhou nas suas memórias.


Ana Marques Maia 9 de Agosto de 2022


A casa de Cornelius e de Anna Klassen, na colónia menonita de La Batea, Zacatecas, no México, tinha apenas duas divisões e era feita de adobe revestido de amianto. A poucos centímetros da mesa da cozinha, três crianças dormiam num lençol manchado de urina sobre o chão coberto de cascas de amendoim e de beatas de cigarro. “Podes ficar connosco”, ouviu Larry Towell, enquanto os pais transportavam as crianças do chão para a cama que todos iriam partilhar. Larry decidiu pernoitar. “Deitei-me sobre o lençol das três manchas molhadas como se fosse o manto de Cristo”, descreve o fotógrafo. “Como se o pecado original não existisse, como se todos os seres humanos fossem perfeitos à nascença e a sua grandeza desaparecesse com a idade ou, em raros casos, florescesse e dela se fizessem santos cujo nome ninguém recorda.” Tentou dormir, com a cabeça junto às pernas da mesa da cozinha. “Ouvi um homem e uma mulher abraçar-se, a fazer amor numa pilha de bebés adormecidos.”
 Àesquerda, no condado de Kent, Ontário, Canadá, 1996; à direita, El Cuevo, na colónia Casas Grandes, Chihuahua, México, 1992 ©Larry Towell / Magnum Photos

A vívida e poética descrição, redigida na primeira pessoa por Towell, pertence às páginas do fotolivro The Mennonites, que resulta de nove anos de imersão nas colónias menonitas do centro-leste do Canadá e do México. “Foi como viajar até ao século XVIII”, contou o fotógrafo da Magnum Photos ao PÚBLICO, em entrevista a partir da sua quinta, no Ontário, a propósito da recente reedição do livro pela Gost Books, que contém 40 imagens inéditas. “O ramo da Velha Colónia, no qual se foca este trabalho, é o mais conservador e insular dos mais de sessenta grupos menonitas que existem no mundo.”

Colónia La Batea, Zacatecas, México, 1992 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS

Os membros deste grupo, elucida, vêem-se a braços “com o cão raivoso da modernidade, que acredita querer mudá-los e absorvê-los”. Isso traduz-se, na prática, na rejeição da electricidade, de outro meio de transporte que não o cavalo e a carroça e na recusa do uso de pneus de borracha nos tractores que utilizam na faina agrícola, que é a sua principal actividade desde a sua fundação enquanto grupo religioso, na Holanda do século XVI.

“Se existe um tema que interliga todo o meu trabalho é a privação da posse de terra; mais especificamente, como a terra transforma as pessoas naquilo que elas são e o que acontece às suas identidades quando a perdem.” Esta foi a frase que Larry Towell escolheu como cartão-de-visita ao seu perfil, no site da Magnum Photos. E a história que partilha em The Mennonites está, invariavelmente, subordinada a este tema. Nas imagens do canadiano, a pobreza extrema deste grupo pode ser confundida com o seu modo de vida tradicionalista, mas as 60 páginas de texto que precedem as 150 fotografias que compõem o livro não deixam margem para dúvida: este grupo, à semelhança de muitas minorias religiosas ou étnicas ao longo da História, foi desconvidado, social e politicamente, à permanência nos locais onde se estabelecia. Os menonitas da Velha Colónia foram, graças a sucessivas migrações forçadas, desprovidos de condições para a aquisição da sua própria terra e forçados à mudança.

Colónia de Durango, Durango, México, 1994 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS


Sem terra

A denominação de menonita advém do nome de um padre católico do século XVI, Menno Simons, que após a rebelião de Münster (1534-35), que vitimou o seu irmão, abandonou o sacerdócio e se juntou ao movimento anabaptista, então reprimido na Holanda. Crente, porém, no pacifismo e na separação entre Igreja e Estado, Menno fundou o seu próprio movimento, que à semelhança de outras derivações de raiz anabaptista que surgiram nesse período, se manteve impopular. A perseguição – marcada por encarceramentos, tortura e execuções – conduziu Simons e o seu séquito para a clandestinidade e, pouco mais tarde, para o exílio.

Colónia La Batea, Zacatecas, México, 1994 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS

A Prússia foi o primeiro destino do grupo, por volta de 1497, seguido da região da Ucrânia, 240 anos depois. Da Ucrânia para o Canadá migram já em meados do século XIX, e do Canadá para o México, pela primeira vez, nos anos 1920. Os motivos que conduziram às sucessivas debandadas estiveram associados ao carácter isolacionista e não conformista do grupo, que recusou sempre integrar exércitos ou frequentar escolas públicas. Como retaliação, com o intuito de “empurrar” os menonitas para além-fronteiras, alguns governos impuseram-lhes limites à aquisição de terra; em casos mais extremos, houve mesmo perseguição, encarceramento e execução dos seus membros.

“Quando um menonita perde a sua terra, perde também um pouco da sua dignidade”, escreve Towell. “Ele transforma-se num trabalhador migrante, num exilado que passará o resto da sua vida deambulando entre árvores de fruto e pés de vegetais, sonhando, um dia, ter a sua própria quinta.” E foi com este tipo de menonita, exilado e sem terra, com que Towell contactou pela primeira vez, perto de casa. Ao PÚBLICO contou que os primeiros menonitas que conheceu trabalhavam para um conhecido do seu pai, que os contratava para o trabalho agrícola nas suas propriedades.

Colónia La Batea, Zacatecas, México, 1999 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS

Assim chegou até Henry e Maria Bergen e os seus nove filhos. Henry, que não tinha qualquer escolaridade, trabalhava há oito anos para o sr. White e ganhava pouco mais de um dólar acima do salário mínimo. Chovia dentro da casa da família de onze. Por ela, Henry pagava ao senhorio, também seu patrão, muito mais do que a totalidade do seu salário. Para sobreviver, ele tirou dois filhos da escola antes da idade legal para que trabalhassem para White por um salário muito abaixo do mínimo exigido por lei. O fotógrafo perguntou-lhe por que motivo não exigiam um aumento. “De cada vez que sou aumentado, a renda sobe também”, respondeu. “Não vale a pena. Além disso, tenho medo que ele me expulse desta casa.”

Condado de Lambton, Canadá, 1993,Condado de Lambton, Canadá, 1993 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS

Se para White a exploração agrícola era uma fonte de rendimento, não tardou até que os próprios menonitas se tornassem num negócio paralelo. “Dos lucros [que advinham da agricultura], White comprou oito das dezasseis casas da aldeia mais próxima, em Kilbreath; a maioria alberga ‘os seus’ menonitas. Também comprou duas novas quintas e construiu uma nova casa.” Quando novas famílias de menonitas chegavam à região, White albergava-as, mas não sem antes reunir com o Departamento de Saúde e Serviços Humanos “para se certificar que a renda seria paga”. White não era, então, o único empresário, no Ontário, a conduzir este tipo de práticas. Assim se perpetuou, para os membros desta comunidade religiosa, um ciclo de pobreza que dificilmente poderia ser travado ou revertido; e assim se renovou mais uma vaga de migrações forçadas – permanentes ou sazonais. Desta feita, do Canadá até ao México. Sob a supervisão de Towell.
 
Capul n (Colónia Casas Grandes), Chihuahua, México, 1996 ©LARRY TOWELL / MAGNUM



“Eles começaram a convidar-me para ir para o México com eles”, recorda o canadiano. “Migravam desde o Canadá, através dos Estados Unidos, até ao México, onde participavam nas colheitas. Eu conduzia as carrinhas.” Este é um detalhe relevante, já que conduzir veículos é motivo de excomunhão para os menonitas. “Chegados ao México, eles tinham de esconder as carrinhas nas cidades antes de se dirigirem para as colónias. Caso fosse descoberto que conduziram um veículo, seriam excomungados temporariamente. Então, pediriam perdão aos pastores, seriam perdoados, e seguiriam novamente para o Canadá, conduzindo as mesmas carrinhas. No ano seguinte, tudo se repetia.” A presença de Larry Towell tornava-se conveniente para muitos.

A fotografia era também proibida. “Por esse motivo, demorou algum tempo até que ganhasse a confiança necessária para poder fotografar livremente.” As famílias menonitas são, regra geral, numerosas e geograficamente dispersas. “Quando os fotografava no México, oferecia as fotografias aos seus familiares do Canadá. E vice-versa. Assim devolvia algo às pessoas e estabelecia elos de confiança.” Visitou, no México, o total de 24 colónias. “Ficava nas suas casas durante vários dias ou semanas e seguia para outra colónia.” Foi a todas as que pertencem ao filo da Velha Colónia no México pelo menos uma vez, garante. “Algumas, cinco ou seis vezes.”
Tempos de mudança

Devido ao colapso da economia mexicana, na primeira metade da década de 90, cerca de 30% dos menonitas perderam as suas terras e dezenas de milhares passaram a viver economicamente à margem. “À medida que o fosso entre ricos e pobres aumentou, os [menonitas] pobres ou ficavam destituídos ou eram forçados a violar princípios básicos da igreja”, escreve Towell. “Ambas as opções deram origem a ressentimento, alienação e a dispersão interna.” Quando o fotógrafo deu por terminado o projecto, em 1999, “já quase todas as colónias [do México] se tinham rendido à electricidade”.


Colónia La Batea, Zacatecas, México, 199 ©LARRY TOWELL / MAGNUM PHOTOS


“As coisas mudaram, para o bem e para o mal”, conclui. “Eles continuam cá, no Canadá. Alguns ficaram, outros voltaram para o México. Aqueles que não se adaptaram às colónias modernizadas acabaram por seguir para a Bolívia e para outros países da América Latina, onde, sob a pressão dos pastores, continuam a praticar um estilo de vida tradicionalista.”

Larry Towell, hoje com quase 70 anos, continua a considerar os menonitas que conheceu “como uma extensão da sua família”. “Este projecto foi sempre muito pessoal, muito calmo, vagaroso. Este tipo de jornalismo lento, ou de documentário, demora anos a ser feito. Eu fotografei o quotidiano, nada de dramático. O livro e as imagens resumem-se a isso.”

Se algo aprendeu, ao longo dos 34 anos enquanto membro da Magnum Photos, onde foi parar “por acaso” e se tornou o primeiro associado canadiano, em 1988, “é que fazer algo de valor demora muito tempo”. Towell, que além de fotógrafo é músico folk e poeta, dedicou dez anos ao registo da guerra em El Salvador, sete ao primeiro fotolivro sobre a Palestina e 13 ao segundo. “Voltava ano após ano a estes lugares; e alguns livros que nasciam desses projectos tinham apenas 60 fotografias.” Nem sempre mostrar mais fotografias é sinónimo de fazer um melhor trabalho, refere.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

As raízes revolucionárias do pânico satânico ainda usado na política americana

As raízes revolucionárias do pânico satânico ainda usado na política americana


O uso do diabo no discurso político norte-americano está bem vivo na campanha eleitoral deste ano. É uma tradição que remonta à Revolução Americana.




Zara Anishanslin 15 de Agosto de 2022


 A efígie do diabo num protesto em Los Angeles, em 2011. O uso de Satanás na política norte-americana remonta aos tempos da revolução Reuters


O diabo é popular na cultura política de 2022. A congressista Marjorie Taylor Greene, defendeu em Abril que satanás controla a Igreja Católica e que o aborto é “uma mentira que satanás vende às mulheres”.

Em Maio, Kandiss Taylor, candidata republicana a governadora da Georgia anunciou que ela era “a ÚNICA candidata suficientemente arrojada para enfrentar a cabala luciferina”. Nesse mês, as ideias popularizadas pelo QAnon, sobre o regresso do “pânico satânico” dos anos 1980, causou um alvoroço moral com base em relatórios infundados de abusos de crianças em rituais satânicos.

O “pânico satânico” também foi uma tendência no Twitter em Julho, em reacção à quarta temporada série Stranger Things, que inclui uma história sobre o The Hellfire Club a jogar Dungeons & Dragons e se passa, como o pânico satânico original, nos anos 1980.

Mas as raízes de americanos a invocar o diabo com fins políticos vão mais longe que os anos 1980. Chegam até à Revolução Americana. Compreender esta história alarga o nosso entendimento não só da era revolucionária, como da forma em que as ligações entre religião e política persistem até aos dias de hoje numa nação onde Estado e igreja estão ostensivamente separados.

A história do uso do diabo como dispositivo político pelos patriotas da era revolucionária também ajuda a dar sentido à razão pela qual o diabo continua a ser um instrumento popular entre os políticos contemporâneos com uma agenda nacionalista cristã branca.

Na altura em que a guerra da independência dos Estados Unidos começou, o fascínio e a familiaridade com o diabo eram generalizadas, fomentado em primeiro pelo puritanismo e depois pelo primeiro Grande Despertar.

Desde os primeiros dias da fixação europeia na Nova Inglaterra que as ideias sobre o diabo alimentaram estereótipos fanáticos sobre os indígenas americanos, entrelaçando o medo do diabo com o sentido de identidade própria dos americanos.

Por exemplo, Cotton Mather proclamou em 1693 que “os neo-ingleses são um povo de Deus instalado em terras do diabo”. Mais tarde, o famoso sermão de Jonathan Edwards de 1741, Pecadores nas Mãos de um Deus Irado, avisava os colonizadores que “o diabo estava pronto a cair sobre eles e a tomá-los como seus”.

Para lá de Nova Inglaterra, o diabo era importante para as seitas pietistas alemãs na Pensilvânia como os Morávios, enquanto os líderes evangélicos no Sul agonizavam sobre como usar o fascínio generalizado com satanás em proveito próprio. O diabo era comum, um símbolo partilhado por vários povos, religiões e geografias de colonos americanos.

E os colonos não tinham de ser evangélicos, ou mesmo religiosos, para estarem familiarizados com o diabo. Satanás inspirava tanto o humor brejeiro como o medo das chamas do Inferno e o seu fascínio popular era generalizado, aparecendo tanto em lendas populares como em sermões de pastores.

O diabo estava omnipresente nas festas anticatólicas da Noite do Papa na Boston colonial e noutros lados. As celebrações da Noite do Papa (ou Dia do Papa) eram versões coloniais das celebrações da Noite de Guy Fawkes, um feriado inglês que assinalava a descoberta da “conspiração da pólvora” católica para fazer explodir o rei (protestante) e o Parlamento. Na Nova Inglaterra, era um acontecimento barulhento regado a álcool. Os homens marchavam pelas ruas com efígies do “Papa” ao lado do diabo (habitualmente coberto com alcatrão e penas) até os queimarem num ritual.

Quando se intensificaram os protestos contra os britânicos nos anos 1760, as celebrações da Noite do Papa assumiram um novo significado. Passaram a servir tanto para difundir políticas patriotas como anticatólicas. As procissões nomeavam os comerciantes que se recusavam a boicotar os produtos britânicos, as autoridades coloniais leais à coroa e os ministros britânicos. Fosse qual fosse a política prevalecente, o diabo manteve-se uma constante.

No entanto, apesar de constante, o diabo desempenhou diferentes papéis e assumiu muitas formas na era revolucionária.

Além de desfilar pelas ruas como efígie cuja destruição deleitava o público, olhava de soslaio em cartoons e retratos. Aparecia em xilogravuras de almanaques e jornais e na ficção sensacionalista. Estava em todo o lado, em parte porque era uma forma fácil de articular a ideologia política em formas vivas e emotivas. Os patriotas usavam-no para espalhar a sua mensagem política de preservação da liberdade republicana dos políticos corruptos e dos governantes tirânicos, representando-os como familiares do diabo.

Durante a crise do Stamp Act de 1765-66, uma representação do diabo aparecia pendurada na que ficou conhecida como a “Árvore da Liberdade” de Boston, ao lado de uma efígie do cobrador do imposto de selo Andrew Oliver, que representava a tirania britânica.

Em Lebanon, Connecticut, como noticiou a imprensa local, o diabo “virou o seu traseiro e descarregou fogo, enxofre e alcatrão” sobre outra efígie de um cobrador de impostos. Na Carolina do Sul, “apareceu suspenso numa forca de 21 metros”, à direita de outra efígie de um cobrador do imposto de selo. E em Nova Iorque, manifestantes enforcaram uma efígie do vice-governador ao lado do diabo antes de lhe pegar fogo no parque Bowling Green.

Durante a guerra, o diabo surgiu quando a traição de Benedict Arnold foi descoberta. Em Filadélfia, Charles Wilson Peale criou uma efígie de um Arnold de duas caras que desfilou pela cidade acompanhada pelo diabo. Os pensilvanianos compravam gravuras da procissão para pendurarem em casa, enquanto outros viam imagens nas páginas de um almanaque em língua alemã. Imagens do diabo uniam os pensilvanianos de língua inglesa e de língua alemã numa cultura popular da revolução.

A presença constante do diabo nos protestos populares, assim como no material visual e literário da era revolucionária, reflecte a forma como os cristãos evangélicos inundaram a política revolucionária, mesmo quando muito dos líderes da elite e dos pensadores importantes da Revolução Americana – homens como George Washington, Thomas Jefferson, John Adams e Thomas Paine – não eram evangélicos.

Parte do apelo generalizado do diabo vinha do facto de, além das associações teológicas de longa data, ser regularmente associado com os esforços de “escravizar os americanos”.

Regularmente podia ser vista na cultura das gravuras, como símbolo “distintivo da escravidão”, uma imagem do diabo segurando um laço. O medo dos colonos de que o Stamp Act visava privar os americanos brancos dos seus direitos naturais – “escravizá-los” – manifestava-se especialmente em imagens do diabo.

O aspecto do diabo era importante. E na América colonial e revolucionária, o diabo era frequentemente retratado como um homem negro. Tanto nas ilustrações do diabo no relato dos Julgamentos das Bruxas de Salem, de Cotton Mather como nas gravuras de Paul Revere o diabo aparecia com pele negra.

Esse tipo de representações jogava com o racismo e o medo de uma revolta de escravos que restringisse a revolução. Também mostrava claramente que o uso do diabo na cultura popular revolucionária ia além da cultura religiosa. O uso de diabos negros nas gravuras e efígies invocava um medo fabricado dos negros que os americanos brancos usaram com fins políticos antes, durante e depois da revolução.

De Norte a Sul, os diabos cujas efígies eram estrelas dos protestos não sobreviveram a era revolucionária; a sua destruição física era o ponto final desses protestos. E as muitas imagens do diabo publicadas nos jornais ou impressas nos almanaques na era revolucionária são muitas vezes postos de parte como má arte. Mas essas representações, embora efémeras, têm importância histórica. Uma cultura popular forte e emotiva com o diabo no centro que ajudava a mobilizar as pessoas para o protesto e a guerra. O diabo foi, por isso, uma figura fundadora no léxico político americano.

As figuras sobrenaturais, como diabos e fantasmas, muitas vezes tornam-se pedras de toque em tempos de crise social ou convulsão como revoluções e agitação civil. São mecanismos prontos para transformar o medo – de mudança, de perda, de segurança – numa resposta política colectiva. Foi isso que aconteceu nos anos 1980, quando surgiu um pânico satânico moderno em resposta a transformações sociais e políticas com que nem todos os americanos concordavam. O diabo era um conveniente substituto de todo o tipo de vilões nos anos 1980, como já tinha sido na era revolucionária.

Da mesma forma, hoje, a sua popularidade como tema de declarações entre os brancos nacionalistas cristãos candidatos a um cargo eleitoral, mostra como o diabo continua a funcionar como ferramenta política para anunciar o apoio “patriota” à “liberdade” e a uma agenda racista num tempo de divisão partidária. O diabo, parece, continua a ter o seu dia.

José Milhazes deu início à Festa do Avante!

 
Atuar na Festa do Avante!, ou ir lá, não implica necessariamente ser comunista. É certo que, quem lá vai, não sentirá pelo PCP o repúdio que José Milhazes sente. Não é caso único.


Carmo Afonso 22 de Julho de 202
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É a maior festa de sempre.

Em que sentido? No sentido da sua duração. A Festa do Avante! tem duas partes: uma que acontece durante três dias na Quinta da Atalaia, no Seixal, e a da luta no espaço público que a antecede. São as duas boas, mas, sem desfazer da primeira, a da luta que precede a festa propriamente dita é extraordinária.

Este ano foi José Milhazes que, na SIC-Notícias, abriu a pista. Afirmou-se surpreendido por existirem artistas dispostos a atuar nos palcos de um evento que, recordou, é político. Mostrou o cartaz do evento, onde se podem ver nomes como Carminho, Paulo Bragança, Paula Oliveira e Ricardo Ribeiro.

Recordemos que já atuaram no Avante! Camané, Carlos do Carmo, Bernardo Sassetti, Blind Zero, Capicua, Ana Moura, Carlos Paredes, Zeca Afonso, Da Weasel, GNR, Jorge Palma, Madredeus, Trovante, Sérgio Godinho, Xutos e Pontapés e tantos outros. Difícil é encontrar grandes nomes da música em Portugal que não tenham atuado na festa.

O que mudou agora?

Para Milhazes, e não está isolado nessa posição, a festa de um partido com mais de cem anos deve ser cancelada em razão das posições que tem assumido relativamente à invasão da Ucrânia. Os artistas deveriam, na sua ótica, alinhar neste cancelamento ou boicote.

Milhazes lançou os artistas, que figuram no cartaz deste ano, num escrutínio popular que, sabemos, é feroz e intolerante. Estes artistas viram-se assim envolvidos numa discussão na qual provavelmente nunca participaram nem desejaram fazê-lo. Conseguiu o que queria. Muitas pessoas alinharam nessa crítica e na destilação de ódio ao partido e à Festa do Avante!. Outros, em menor número, escolheram defender a festa e a liberdade de ir ou de participar. É oficial: a festa começou.

 Distanciamento físico marcou a marcha da JCP pela Baixa de Lisboa e o comício de Jerónimo de Sousa no Rossio. No Porto também se celebrou o centenário do PCP.

Atuar na Festa do Avante!, ou ir lá, não implica necessariamente ser comunista. É certo que, quem lá vai, não sentirá pelo PCP o repúdio que José Milhazes sente. Não é caso único. Mais jornalistas, supostamente isentos porque o fazem no exercício desta profissão, continuam a vir a público premir o gatilho contra o partido ou incitar a que outros o façam.

As posições que o PCP defende relativamente à guerra são diferentes das que lhe são atribuídas. Mas adiante – já não é assunto. Sobretudo, não são merecedoras de um apagamento de cem anos de História e de luta ao lado dos trabalhadores portugueses. Disse um amigo que não é comunista: “Portugal não é grande coisa, mas seria muito pior sem o PCP.”

Não gostaria de viver num país onde os artistas se recusassem atuar no Avante!. Seria sinal de tristes tempos. Tenho a convicção que parte dos artistas que aceitou atuar na festa não o fez por concordar com as posições do partido relativamente à guerra na Ucrânia ou tão pouco para marcar presença em prol do fim da precariedade laboral. Ter-se-ão limitado a reconhecer naquele evento um momento de divertimento, convívio e democracia que faz parte do calendário das festividades dos portugueses.

Retirar consequências políticas da presença no cartaz, e num tema tão polarizador como a guerra, não é sério e não é justo. Milhazes quer rebaixar o PCP à categoria de partido repulsivo e faz campanha pública nesse sentido. Sucede que, se fosse bem sucedido nessa demanda, não era a Rússia ou Putin que ficariam a perder; seriam os trabalhadores portugueses, a esquerda de um modo geral e a própria democracia.

Não se deve levar a mal porque estes episódios já são a festa. Aconteceu também no ano passado, mas com a pandemia. Houve o terrível escândalo de se atreverem a realizar o evento e de terem autorização para o efeito. Muita tinta correu. Recorde-se que fizeram tudo de forma organizada e exemplar. E que não houve notícia de qualquer surto. Recorde-se também que havia pessoas de grupos de risco a participar. Ou seja: recorde-se que, no fim, deram uma lição de como fazer as coisas bem feitas.


"Alguém deveria informar Milhazes, e seus congéneres, que esta forma de combater o Partido Comunista Português não resulta. Sá Carneiro ao menos sabia qual era – e é – a empreitada do PCP"

Já no mês passado, em Tomar, na apresentação do seu livro, respondendo à provocação de poder vir a enriquecer com a venda, Milhazes anunciou que compraria a Quinta da Atalaia. Já queria festa. Nem o Natal se prepara com tanta antecedência.

Alguém deveria informar Milhazes, e seus congéneres, que esta forma de combater o Partido Comunista Português não resulta. Estão a radicalizar quem tiver uma mera simpatia, a chamar para as trincheiras quem só estava a apanhar sol. Sá Carneiro disse algumas boas frases e não tenho nada o costume de as citar, mas aqui não resisto: “A melhor maneira de combater o comunismo é melhorar as condições dos trabalhadores.” Sá Carneiro ao menos sabia qual era – e é – a empreitada do PCP.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico