domingo, 14 de dezembro de 2014

Professor catedrático e a dessacralização do princípio "in dubio pro reo"


Entrevista a Nuno Garoupa.

“A opinião pública pode e deve fazer um julgamento político, independentemente do julgamento legal e judicial. A política e a justiça não são a mesma coisa. Assim como a justiça deve fazer o seu julgamento sem interferência da política, a política – o governo da polis – deve fazer o seu julgamento. (…) A presunção de inocência e o “in dúbio pro reo” são princípios jurídicos, não são, não devem ser e não podem ser princípios políticos.”

ENTREVISTA

“Autoridades deviam ter um cuidado especial com um ex-primeiro-ministro”.

Especialista em Direito e Economia, Nuno Garoupa diz que há uma nova geração de magistrados mais sensível à opinião pública e mais exigente em relação à corrupção FOTO TIAGO MIRANDA

Professor catedrático de Direito na Universidade do Illinois, Nuno Garoupa defende que Sócrates não deve ser tratado como qualquer outra pessoa devido às repercussões internacionais e aos danos que a detenção de um antigo chefe de Governo pode causar à imagem do país. Mas os portugueses devem fazer um julgamento político de Sócrates, independentemente do resultado do processo judicial. “A presunção de inocência não pode ser um princípio político”

TEXTO JOANA PEREIRA BASTOS

Nunca um ex-primeiro-ministro tinha sido detido em Portugal. Mas este ano houve outras “estreias” judiciais. As condenações dos ex-ministros Maria de Lurdes Rodrigues e Armando Vara, a detenção de Ricardo Salgado ou a prisão domiciliária do diretor de uma polícia também não tinham paralelo. A justiça está a mudar?

A justiça vem mudando há anos, digamos que agora começamos a ver alguns resultados. Há uma nova geração de magistrados muito mais sensível à opinião pública. O poder político está muito fragilizado e descredibilizado. A crise financeira tornou quer os operadores judiciários, quer a opinião pública em geral mais exigente em relação à corrupção e abusos de poder (económico e político). E, não podemos esquecer, há um contexto europeu de legislação recente e práticas judiciárias internacionais que convocam a uma maior intervenção do poder judicial em Portugal. Certamente esta mudança da justiça é independente da titular do Ministério da Justiça que, infelizmente e de forma desastrada, reclama na comunicação social méritos que não tem neste processo.

A detenção de um ex-primeiro-ministro deve ser igual à de qualquer outra pessoa ou tem de haver um cuidado especial das autoridades por ser um antigo chefe de Governo e poder também estar em causa a imagem do país e da democracia?

Um ex-primeiro-ministro não é igual a qualquer outra pessoa, como diz o populismo justicialista. As repercussões internacionais e o dano causado à imagem do país e à credibilidade das instituições são enormes. Consequentemente, precisamente para que a lei seja igual para todos quando esses todos não são iguais, deverá haver um cuidado especial das autoridades.

Sócrates é detido quando estava a chegar ao país, não a sair do país. Ricardo Salgado é detido em casa quando se tinha disponibilizado a ir, por si, prestar declarações. Em vários casos mediáticos a atuação tem sido deter para interrogar. Esta deve ser a norma?

Uma coisa é o que deve ser do ponto de vista legal (e sobre isso pronunciam-se os penalistas e os processualistas), outra coisa é o que deve ser do ponto de vista social. Socialmente, estas detenções são importantes para a imagem e credibilidade da justiça sempre e quando correspondam, mais tarde, a acusações fundamentadas e provadas em tribunal. Caso todos estes processos terminem sem condenações, seja por falta de provas, seja for tecnicismos legais como a prescrição, então a atuação das autoridades judiciárias é muito negativa.

Muitas destas detenções são precedidas de fugas de informação para a comunicação social e filmadas em direto. A justiça está a transformar-se num circo mediático?

Não. Nós é que vivemos num mundo mediático. Em Portugal como em qualquer parte do mundo. Temos sido testemunhas de imensos circos mediáticos semelhantes em Espanha, França e Itália, sem que os comentadores do costume se queixem. Porque o mundo do século XXI é assim. Querer aplicar em 2014 regras e considerações processuais de há cinquenta anos não vai funcionar. E não funciona.

A detenção para interrogatório e a divulgação dessas imagens pode contribuir para um julgamento popular dos envolvidos?

Ainda bem. A opinião pública pode e deve fazer um julgamento político, independentemente do julgamento legal e judicial. A política e a justiça não são a mesma coisa. Assim como a justiça deve fazer o seu julgamento sem interferência da política, a política – o governo da polis – deve fazer o seu julgamento. O maior disparate que existiu em Portugal nos últimos anos, e não o ouvi nem em Espanha nem em Itália, é tentar que o julgamento político siga ou esteja sujeito aos mesmos critérios do julgamento penal. Se o julgamento político é populista e irresponsável isso revela umas instituições políticas e sociais fracas e descredibilizadas. Será certamente um problema político e social, até cultural, mas não um problema legal como se pretende em muitas análises que se fazem em Portugal. A presunção de inocência e o 'in dubio pro reo' são princípios jurídicos, não são, não devem ser e não podem ser princípios políticos.

Passar a ideia que os poderosos afinal não estão acima da lei vai mudar a imagem da justiça em Portugal e recuperar algum prestígio perdido dos magistrados, cujo reconhecimento junto dos portugueses tem vindo a cair, como revelam os barómetros de opinião?

Se derem lugar a condenações exemplares, sim. Caso não tenham efeitos práticos, não. Se as recentes condenações em primeira instância de ex-titulares de cargos políticos resultarem de um justicialismo perigoso e logo forem revogadas pelos tribunais superiores, como devem ser se assim for, então a imagem da justiça ficará ainda pior.

Os recentes processos judiciais envolvendo altas figuras da administração do Estado, banqueiros e ex-governantes são reflexo de uma democracia forte, que trata todos por igual, independentemente do poder, ou de uma democracia minada pela corrupção e pelo tráfico de influências, generalizados na sociedade?

Infelizmente são reflexo de umas elites económicas e políticas putrificadas pela corrupção e pela impunidade.

Jornal Expresso Domingo,
23 de novembro de 2014

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