quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Pequena história de Natal (19 Dezembro 2014), por Baptista Bastos


Clodomiro não escrevia à família as misérias por que passava. Deixou de escrever, sempre animado de que o futuro seria melhor. Andou de um país para o outro, em todos sofrendo a animosidade racista e xenófoba daqueles que o olhavam como um intruso.

(Longinquamente inspirado n'"O Suave Milagre", de Eça de Queiroz)

Clodomiro nasceu em São Nicolau, Cabo Verde, e veio para Portugal com 18 anos. Tinha uns parentes aproximados, que logo lhe arranjaram trabalho nas obras. Clodomiro vivia num quarto exíguo, num bairro a oeste da cidade, onde iam parar não só cabo-verdianos como aqueles que procuravam melhor sorte do que a que tinham nas terras natais. Era um indivíduo robusto, de alta estatura, que se impunha pela afabilidade do trato. Um dia, numa festa particular, na Amadora, conheceu Maribel, uma beleza invulgar, de olhos verdes e rosto estimulante, e logo se embeiçaram um pelo outro. Maribel nascera em Lisboa, mas toda a sua família era do Mindelo. Por vezes, nas noites claras, Clodomiro juntava-se a um grupo de amigos e, juntos, cantavam as belas canções de amor e saudade, bebendo cerveja e, ocasionalmente, quando o conseguiam, uns e outros de grogue.

Clodomiro tinha a moral proletária do trabalho, e uma satisfação enorme com crianças, tão grande que fez e criou, com Maribel, quatro filhos, três raparigas e um rapaz. O esforço desenvolvido para criar os miúdos foi indescritível. Maribel começou a trabalhar a dias, e envelhecia a olhos vistos; e a Clodomiro começaram a nascer cabelos brancos. Era preciso dinheiro para a comida, para as roupas e para as escolas. Maribel chegou a trabalhar em duas casas, e Clodomiro fazia uns biscates de sapateiro. Mas as coisas não corriam nada bem. Vida de pobre é discussão certa. Para não fugir à regra, as coisas azedaram-se no casal, e uma espécie de indiferença pesada e dramática substituiu o que fora uma esperança de felicidade.

Certa tarde, desesperado e triste, Clodomiro disse à mulher que ia procurar melhor vida na Holanda, onde habitava uma comunidade de cabo-verdianos, à qual se queria juntar. Lá foi. Trabalhou nas obras e na descarrega de carvão no porto de Antuérpia. As coisas deram para o pior, quando o patrão fugiu com o dinheiro dos empregados. Clodomiro não escrevia à família as misérias por que passava. Deixou de escrever, sempre animado de que o futuro seria melhor. Andou de um país para o outro, em todos sofrendo a animosidade racista e xenófoba daqueles que o olhavam como um intruso, ladrão do trabalho dos locais.

Maribel fazia os impossíveis para manter os filhos unidos, tarefa insana porque eles deixavam-se atrair palas facilidades do roubo, da droga e dos desvairos do momento. Sem nada saber do marido, impossibilitada pelas circunstâncias de suprir às necessidades do lar, era auxiliada por instituições de caridade, nem sempre muito amáveis porque a acusavam de ter quatro filhos sem trabalhar e sempre misturados com a vida airada.

Clodomiro, esse, tinha vergonha de confessar a Maribel o abismo do seu malogro. Pensou em ir para África, para o Brasil, até para a China, mas fazer o quê? A dor que o destroçava por não ver a mulher, e nada saber dos filhos, porque as coisas más eram-lhe ocultadas, quando tinha esparsas notícias dos seus e dos seus sítios, levavam-no, por vezes, ao álcool, ao desacato e, por duas vezes, à detenção em esquadras de polícia.

Maribel era uma velha sepultada na própria dor. Tanta e tão constante que até dela se esquecia. Quando lhe perguntavam pelo marido, inventava uma historieta, mas as evidências eram tão banais que as vizinhas riam-se-lhe nas costas.

Passaram mais anos. O filho homem fora parar à cadeia por roubo à mão armada, e tornara-se num indivíduo considerado perigoso. As filhas descambaram ainda mais e viviam do que acontecia, mas também haviam envelhecido muito. E ninguém as respeitava. Por três vezes, Maribel tentou o suicídio. Nem isso. Aproximava-se outro Natal, e a indiferença que ela manifestava por essa data constituía, afinal, um pequeno alívio. Neste, então, nem dinheiro tinha para comprar uns bolitos. Foi então que, pela tardinha, alguém tocou o batente da porta. Foi abrir. Na sua frente, um homem curvado, que não conseguiu sorrir. Um velho que vinha do fundo do tempo, para a desassossegar e inquietar. Clodomiro olhou-a e disse:

- Aqui estou.

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