A bancarrota de Sócrates, que existiu mesmo, with a little help from my friend Passos Coelho, foi o equivalente a deitar Portugal por uma ravina abaixo, o “ajustamento” de Passos é o equivalente a atirar Portugal para um pântano de areias movediças. Os dois são momentos complementares da mesma crise social, cultural, económica e política que assola o país desde 2008, e que é, em parte, um reflexo de uma crise europeia mais vasta. Em parte, mas não só.
Há componentes nacionais que nos caíram em má sorte, e que têm a ver com uma conjugação muito especial de incompetência, ideias erradas, superstições e dolo. No dia em que se fizer uma verdadeira história destes últimos seis anos, só colocar o que cada um dos protagonistas pensava, disse ou fez numa sequência cronológica correcta mostrará como se foram destruindo todas as oportunidades, afunilando o caminho e tentando secar com zelo todas as alternativas. O problema é que essa tarefa de criar o deserto à volta teve eficácia, porque a política da terra queimada tem efeitos destrutivos e diminui de facto as opções dos que a ela sobrevivem.
Tenho insistido nesta questão da cronologia rigorosa, até porque ela nos ensina muitas coisas sobre como é que evoluiu o processo nestes seis anos de lixo e, por isso, altera a nossa percepção sobre as relações de causa e efeito. Não é uma tarefa que possa ser feita apenas puxando pela memória, porque a poluição do que aconteceu por interpretações políticas a posteriori é grande. Mas, se colocarmos toda uma série de perguntas e formos atrás ver as respostas, ficamos muitas vezes surpreendidos pela capacidade que tem o discurso do poder, em conjunto com a perda de memória que os mediatrazem à sociedade, para “moldar” o passado às conveniências do presente.
Quando é que a crise financeira dos activos tóxicos e do Lehman Brothers se tornou numa crise das dívidas soberanas? E porquê? Que papel teve a decisão puramente política da Alemanha, diante de uma Europa enfraquecida e tonta, na abertura da frente das dívidas soberanas, as mesmas que tinha ajudado a agravar com as decisões keynesianas da resposta inicial à crise financeira? Todo. Podia não ter havido crise das dívidas soberanas, mesmo com as dívidas em crise profunda. A crise das dívidas soberanas foi uma opção política alemã e teve um papel fundamental em “soltar” a Alemanha do directório com a França e deixá-la isolada no mando da Europa. A crise económica, de 2008 em diante, foi um instrumento fundamental no plano político para acabar com a União Europeia como a conhecíamos e dar origem a uma “união” de hegemonia alemã.
Que papel teve a chanceler alemã em apontar a Grécia como “culpada”, abrindo caminho para a categoria maldita dos PIG, e colocando-se no centro de uma política claramente punitiva que, entre outras coisas, destruiu o pouco que sobrava da política de coesão, a favor de uma projecção europeia das políticas do Bundesbank? Todo. Há quanto tempo se sabia que as contas gregas eram falsificadas e que a entrada do dracma no euro tinha sido prematura? Só em 2011? Deixem-me rir.
Quando é que Portugal passou a PIG e deixou de ter a protecção alemã para as suas dificuldades económicas? Depois do chumbo do PEC IV e não antes. Aliás, o PEC IV foi um plano alemão de austeridade negociado com o Governo Sócrates e o seu chumbo provocou a ira de Merkel, cuja primeira intervenção depois da queda do plano na Assembleia foi uma bofetada pública furiosa em Passos Coelho. Portugal entrou então na categoria dos PIG e muito do que hoje a propaganda do PSD e do CDS diz sobre como Portugal estava nas ruas da amargura do prestígio europeu refere-se ao pós-PEC IV e não antes. A crise dos juros acompanhou este processo de crise governativa, com a queda do Governo Sócrates e a preparação do memorando em simultâneo.
Como é que foi possível ao PS e ao PSD terem aprovado o memorando de entendimento em Maio de 2011 e fazerem as promessas eleitorais que fizeram nas eleições de Junho? Sim, porque o memorando é anterior às eleições e não posterior. E se o PSD sabia muito bem o que tinha assinado em Maio, como é que não o “compreendeu” em Junho de forma a evitar as promessas taxativas que fez em campanha eleitoral? Mais: como é que, se projectarmos para trás, o que hoje PSD e CDS dizem da bancarrota de 2011 e do significado do memorando foi possível conduzir umas eleições pós-memorando com aquela linguagem? Mais: como foi possível anunciar, também à luz do discurso dos dias de hoje, como medida única de austeridade, o corte “apenas naquele ano” de metade do subsídio de Natal, a medida que bastava? E onde estão os resultados das múltiplas promessas, algumas já vindas dos governos Sócrates, feitas para “adoçar” o corte, o chamado Programa de Emergência Social, que implicava um programa nacional de microcrédito, um mercado social de arrendamento, um programa nacional de literacia financeira, o reforço de escolas em bairros problemáticos, um banco de medicamentos e um banco farmacêutico, os tele-alarmes, um programa Rampa, o descanso do cuidador, um banco ideias, etc., etc., etc., etc.? Se nestes anos coleccionarmos os títulos pomposos de programas sobre programas, anunciados com espavento e depois os espremermos, quase nada sobra.
Aliás, ler os jornais de há pouco mais de dois, três anos, seria ridículo se não fosse muito sério. Podia fazer todo este artigo e ainda ocupar uma parte importante deste jornal só com os títulos pomposos de programas sobre programas, todos impantes nas suas maiúsculas, e nos quais, nem que seja durante uns meses, se gastou tempo e dinheiro e se colocaram pessoas, sem resultados práticos. Não é originalidade deste Governo, mas pelo contrário uma prática bem sólida do desperdício governamental, as chamadas “gorduras do Estado”. Mas era suposto este fazer diferente. Aliás, não é por acaso que pelo menos na construção de portais, páginas da Rede e outros serviços, muitos deles que duram muito pouco e ficam indisponíveis, se alimentou um conjunto de pseudo-empresas encostadas às “jotas”, que se movem nestes meandros ministeriais como peixe na água.
E estamos apenas em 2011, antes do grande susto orçamental que veio com a incapacidade do divino Gaspar de controlar o Orçamento e que levou ao “enorme aumento de impostos” e ao contínuo assalto a salários, pensões e reformas. Ou seja, este Governo não chegou ao poder para aplicar a austeridade pós-memorando, e assim “salvar o país”, mas sim para fazer uma política menos dura do que a dos últimos meses de Sócrates e só descobriu a “realidade”, como eles gostam de lhe chamar, depois. Maldita cronologia!
Alguém pensa que este modelo atamancado em 2011-2, assente acima de tudo no “gigantesco aumento de impostos”, pode subsistir sem esses impostos? A herança de Sócrates foi um Tesouro vazio que dava para três meses, a herança de Passos Coelho é um “ajustamento” que só tem efeitos porque depende de um enorme assalto fiscal. Não existe “ajustamento” à Passos Coelho sem impostos elevadíssimos, centrados no trabalho e no consumo. Sem esses impostos tudo vem abaixo como um castelo de cartas, porque nenhuma transformação estrutural foi feita nem na economia portuguesa, nem no Estado. E as que foram feitas na sociedade, principalmente o empobrecimento selectivo da classe média, são todas inibitórias de qualquer genuíno crescimento.
O país foi gerido como o jogo de SimCity – primeiro gastou-se de mais, depois empobreceu-se de mais. Primeiro, o mayor virtual encheu a cidade de quartéis de bombeiros e esquadras da polícia, parques e circos ambulantes, com os índices de popularidade a aumentar. Depois veio a bancarrota e o novo mayor inverteu a receita, desatou a aumentar os impostos, cortou os serviços públicos. A cidade do SimCity começou a cair aos bocados, os incêndios a aumentarem, o crime alastrando, as pessoas a emigrarem. Não são duas políticas distintas, são duas faces da mesma política, uma o espelho da outra, ambas com efeitos perversos desastrosos para o país.
Pensam que houve muito mais sofisticação do que a que é preciso para “jogar” SimCity? Não, foi mesmo assim, com ideias simplistas e erradas, e toneladas de pseudo-ideologia no lugar da ignorância. Vamos pagar muito caro, estamos a pagar muito caro. Querem morrer rapidamente ou ficar muito feridos, caindo por uma ribanceira ou enterrando-se num pantanal?
Sem comentários:
Enviar um comentário