Não, não tenho vergonha
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NICOLAU DO VALE PAIS |
Do que tenho vergonha é dos que não sabem que a Guerra Colonial custava ao Estado Novo tanto quanto hoje nos custam as prestações sociais. Não, eu não tenho vergonha dos ex-combatentes arrancados do lar para irem defender o País; e também não tenho vergonha dos refractários que, não fazendo a Guerra, acharam que defendiam, assim mesmo, o País. Do que tenho vergonha é dos que não sabem que a Guerra Colonial custava ao Estado Novo tanto quanto hoje nos custam as prestações sociais, reformas incluídas. Tenho vergonha da estupidez, que não é a burrice, mas a recusa em usar da inteligência. Não, eu não tenho vergonha da Revolução; eu nem sequer tenho vergonha de um Estado Novo que, fugindo à inevitabilidade da História como era característica da sua falsa propaganda de segurança insular, não quis começar a descolonização quando outros já a tinham há muito terminado. Não, eu não tenho vergonha dos retornados, nem do milagre da sua readaptação; também não tenho vergonha dos emigrantes - de mala de cartão ou "tablet" em riste, partindo de Sud Express ou de Ryanair. Não, eu não tenho vergonha de viver no 6º país da União Europeia com a mais baixa taxa de mortalidade infantil absoluta; e também não tenho vergonha nenhuma de ser cidadão livre na sociedade que conseguiu a maior redução desta taxa - usada internacionalmente para avaliar imparcialmente as condições médico-sanitárias de uma sociedade - desde os anos 1960 para cá, em toda a Europa; Alemanha ou Suécia incluídas. E não, não tenho vergonha que as mães que morriam a dar à luz tenham baixado de 116 para 4, por cada 100.000 nascimentos no mesmo curto, mas espantoso, período de tempo. Não. Eu não tenho vergonha de saber que, em 1960, mais de 60% dos portugueses com 15 anos ou mais não tinham finalizado qualquer nível de escolaridade, enquanto em 2001 esse número caiu para 9,2%. E não, não tenho vergonha de saber que, em 1960, 33% da população portuguesa era analfabeta e que esse número caiu para 5,2% em 2011. E também não tenho vergonha - nenhuma, mesmo - de saber que nesse mesmo período de tempo, o número de mulheres com grau de Ensino Superior passou de uns residuais 0,4% para uns europeus 15,1% - isto apesar de sabermos que, já a Europa vivia os "swinging sixties", ainda nós por cá sofríamos com mais de 66% de uma população sem qualquer tipo de acesso a qualquer tipo de grau de ensino. Esta taxa era particularmente brutal e obscura no sexo feminino: 72%. Disso, já tive vergonha. Não, não tenho vergonha de saber que em 2012 morreram nas estradas menos de metade das pessoas do que 10 anos antes; é que, só nessa década, são 4.748 vidas salvas, menos 15.000 feridos graves para atender e menos 70.735 feridos ligeiros. Eu nem vergonha tenho de misturar civismo e dinheiro: a poupança de cerca de 215 milhões de euros que este decréscimo trouxe agrada-me e não, desta Economia não tenho vergonha. Eu não tenho vergonha dos funcionários públicos que investem tempo nem dos empreendedores que investem dinheiro; conheço casamentos entre estas almas aparentemente antagónicas, que já levam décadas de felicidade. Não, não tenho vergonha nem dos cantoneiros nem dos professores; não tenho vergonha dos doutores nem das empregadas domésticas, não tenho vergonha nem dos sindicatos nem dos patrões - eu não tenho vergonha da maioria silenciosa que escolhe a moderação em vez dos extremos, a mediação em vez do conflito, a paz em vez da guerra. E, embora o quotidiano todos os dias nos espicace com as suas esporas enviesadas, a História será escrita por estes tantos, e não pelos outros poucos. Que outros? Aqueles que - para usar uma versão mais dura das palavras de Fernando Pessoa - usam e criticam o sistema sem nada contribuírem para ele. O Poeta de Lisboa chamou-lhes provincianos. Não, eu não tenho vergonha de ter liberdade para aqui escrever; justifico-a com a responsabilidade crítica que fomento porque posso, sem vergonha. E, quanto a dias melhores, a liberdade está aí para isso: somos gente feita de superação - não perceber isso, é uma vergonha.
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