FRANCISCO TEIXEIRA DA MOTA Público,
28/03/2014
Teodora (não sejas sonora...)
Claro que já todos sabíamos que aquilo que recebemos em troca do nosso trabalho pertence ao Estado. E à banca, naturalmente. Mas só tu, ó Teodora, foste capaz de sugerir publicamente que o Estado continue a deixar-nos utilizar esse dinheiro que Lhe pertence. E só a troco de uma pequena remuneração, taxa ou imposto, suavemente cobrada de cada vez que tivermos um impulso despesista. Custa a acreditar em tanta generosidade. São verdadeiros arrepios de prazer que sentimos ao imaginar este futuro radioso que nos auguras.
E estamos todos certos que esta tua ideia, que, modestamente, classificaste como interessante e que, com inteira justiça, consideramos como genial, vai ser lembrada pelos vindouros como o começo de uma era de felicidade e de paz entre os povos.
Ave, ó Teodora, porque nos fizeste ver, a nós que andávamos absurdamente preocupados com o crescimento descontrolado do Estado e a sua sistemática invasão da nossa privacidade, que, afinal, nós é que nos estávamos a pôr em bicos dos pés, nós é que estávamos a ser arrogantes, cegos e mesmo, porque não dizê-lo, estúpidos.
Nós que, por exemplo, ao lermos as notícias sobre a actuação da NSA e os programas de vigilância electrónica utilizados pelos EUA para espiarem a população norte-americana e de todo o mundo, pensámos que o Estado, na sua luta contra o terrorismo, estava francamente a exagerar, temos de reconhecer humildemente, agora e graças a ti, que quem estava a exagerar éramos nós.
Nós, que seríamos capazes de censurar com veemência os tribunais egípcios por condenarem à morte 529 muçulmanos por terem participado em manifestações das quais resultou um polícia morto, compreendemos, agora e graças a ti, que estaríamos a errar e que, por cada polícia, por cada representante de um Estado que morre, o extermínio de mil cidadãos não é suficiente.
Porque a Verdade, e só tu, ó Teodora, a revelaste, é esta: no princípio, era o Estado. E só depois, não ao sétimo dia mas ao fim do mês, o Estado segregou os cidadãos, um a um, para O servirem e para O glorificarem até ao fim dos tempos.
Nós, que não somos mais do que míseros grãos de areia perante a imensidade do Estado, tivemos, até segunda-feira passada, a estultícia de considerarmos que as nossas vidas eram nossas e que o nosso dinheiro era nosso. Não são e não é. Como é meridianamente claro, tudo vem do Estado e tudo vai para o Estado!
Nós – só agora o entendemos – mais não somos do que precários utilizadores dos bens do Estado. E isso conforta-nos, sendo mesmo um verdadeiro agasalho para os espíritos perturbados e iludidos que fomos até terça-feira passada. A nossa gratidão ao Estado por, segundo as tuas sábias palavras, só nos vir a cobrar uma parcela dessa imensa riqueza que nos cede mensalmente – mais a uns do que a outros, é certo –, é incomensurável, sem dúvida.
Mas uma dúvida nos atravessa a mente e a tua ajuda pedimos, ó Teodora.
Como fazer com aqueles a quem o Estado cedeu o dinheiro e se viram obrigados a colocá-lo em offshores? Como proceder com aqueles que guardam o dinheiro do Estado nos seus colchões e enxergas? Como proceder com aqueles que a sua vida é “chapa ganha, chapa gasta”? Ou, ainda, como assegurar que os arrumadores de carros ou os meros pedintes controlam as suas despesas quando utilizam o dinheiro – muito ou pouco, tanto faz – que ao Estado pertence? E será que os 25% dos cidadãos portugueses que, segundo as estatísticas, estão em risco de pobreza serão sensíveis à necessidade de combater o despesismo?
Estas dúvidas, que rapidamente se podem tornar em angústias e mesmo em crises de fé, exigem respostas urgentes. Tenho, contudo, a certeza que, se não tu, ó Teodora, qualquer outro dos sacerdotes que decerto te acompanham, sejam eles ex-ministros das Finanças, jornalistas económicos ou governantes encartados, no dará as respostas certas e exactas que nos farão descansar de novo. Porque, agora que já vimos o túnel, não mais queremos ser abandonados num mundo de incertezas e de interrogações. Na verdade, desde terça-feira passada, tudo se tornou tão claro e luminoso que se nos torna insuportável a sombra sequer da dúvida.
Porque, agora sim, percebemos que, quando o Estado gasta em submarinos ou em estádios de futebol, mais não está do que a gastar o que é Seu. Mais não está do que a fazer o que Lhe cabe. E a nós, o que nos cabe é pagar, devolver-Lhe o que Lhe pertence, para que possa viver em paz e sem défices.
Obrigado, ó Teodora!
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