por Baptista Bastos
Decidi, ao reler, esta semana, "O País Relativo", de Fernando Paulouro Neves, aprofundar o que já escrevera, até porque o que por aí se escreve leva-me até ao desgosto da palavra.
Decidi, ao reler, esta semana, "O País Relativo", de Fernando Paulouro Neves, aprofundar o que já escrevera, até porque o que por aí se escreve leva-me até ao desgosto da palavra. Este segundo volume de "O País Relativo" continua o projecto de cartografia dos factos e dos sentimentos ocorridos entre nós e os outros, e corresponde às vigílias intelectuais, morais e políticas de Fernando Paulouro Neves. Este homem sereno, atento e culto nunca depôs a caneta por canseira, nem nunca dela se serviu para se cumpliciar com as futilidades do nosso tempo. É essa constância, essa procura da razão das coisas, esse estilo límpido, nítido, belíssimo pela sua aparente singeleza, que fazem do Fernando Paulouro Neves um dos grandes jornalistas portugueses, de uma raça que parece condenada a desaparecer, afogada nas teses tão absurdas, abstrusas e emasculadas da "distanciação." Repositório de episódios, casos, circunstâncias, histórias com agá grande e agá pequeno, este volume, como o primeiro, adiciona às incertezas do momento a clareza interpretativa de um homem, sabedor de que o inacabamento das coisas não impede a sua análise nem a reflexão de quem aprendeu que por dentro delas é que elas estão e são. Notas, comentários, anotações, pequenas iras e grandes afectos; memória dos que estão esquecidos pelas turbulências da época ou pela ignorância deliberada dos que recusam o conhecimento, a experiência e a prova; pequenas evocações da grandeza simples do humano; retratos impressivos dos que marcaram os dias; a brevidade natural do ser humano - tudo isso, e muito mais do que isso, este volume contém. Vejo sempre este meu dilecto amigo a escrever sobre as batidas do coração, debruçado na máquina de escrever, ou a batucar nas teclas do computador, tocado dessa vertigem inexplicável de recriar o que está, o que viu ou o que sentiu e experimentou. No coração da Beira Interior, no seu jornal de sempre, o mítico e lendário "Jornal do Fundão", a cuja história entregou o sangue, a alma e a saúde, o Fernando Paulouro deu continuidade, modernizando-a, à realização de seu tio, o António Paulouro, e fez daquele nobre semanário um marco no armorial do ofício. Percebe-se, quando se lê este livro, que o autor pertence a uma velha escola da reportagem, e à tarimba do noticiarismo. Ele não é um produto exterior ao jornalismo: ele faz parte da própria essência do jornalismo, e atinge os grandes níveis profissionais porque conhece os caboucos da Imprensa e a natureza do ser humano. Depois de uma longa e rude caminhada pela arte de ir ali, volta depressa, escreve limpo, asseado e claro, é que Fernando Paulouro se habilitou ao comentário político, à nótula social, à intervenção pessoal de ajudar os outros a compreender a nebulosidade do que acontece. Ele não é um articulista de aviário, desses muitos que por aí andam, estipendiados dos senhores do mando; ele é um homem livre, dos já raros, e por isso pagou o preço de o ser. Um grupo de sicários, desses cuja incultura impõe as leis iníquas sob as quais vivemos, e a quem Cornelius Castoriadis designou de "geração da insignificância", está a regular o exercício global do poder político. O processo não é de agora, mas só agora, com a Europa contida pela ideologia do Partido Popular Europeu, a questão se tornou transcendente, e a impotência e a capitulação das forças cuja constituição as obrigaria a resistir, mais as debilidades dos políticos se acentuaram. Assim, e a experiência portuguesa no-lo testemunha, o Estado tem-se conduzido como um "actor de mercado", um títere sem vontade própria. Neste contexto, mais imperiosa e urgente se torna a voz daqueles que, como o Fernando Paulouro Neves, fazem do acto de viver uma outra moral em acção, e do ofício de defender ideias, alinhando palavras, um combate único e indispensável. Este livro resulta das inquietações de um homem livre, corajoso e decente. Todos os textos, ou quase, foram, primeiramente, editados no "Jornal do Fundão", que, durante décadas, resgatou com a honra e a insubmissão, a miséria da Imprensa. As sombras dos medos e das cobardias parecem quererem regressar. Mas continuo a crer que textos como os de o autor deste volume são uma obstrução aos vis intentos desses que tais. Como um dia disse Manuel da Fonseca, "cá estamos, para o que der e vier."
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