quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O Velho do Restelo, o dinheiro e os direitos ALBERTO PINTO NOGUEIRA 30/12/2014


José Pacheco Pereira escreveu no PÚBLICO um texto sob o título “Só vejo aldrabões à nossa volta”. Versa matérias muito sérias e actuais. Também trata de dinheiro. De muitos milhões. De como se acumula e distribui. Como o Estado é defraudado.

Nos anos 30 do séc. XVI, Gil Vicente publicava o Auto da Lusitânia. Antecipava-se a José Pacheco Pereira: “Todo o Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade”. Punha na boca de “Todo o Mundo”: “ meu tempo todo inteiro/ sempre é buscar dinheiro...”

Distanciados tantos séculos, convergem numa crítica acérrima à ganância e mentira. Gil Vicente não se reconheceria no mundo de hoje. José Pacheco Pereira teria de sacrificar neurónios de historiador para entender o séc. XVI. Devemos preocupar-nos.

Apelam a princípios e valores. A virtudes no sentido humanista da palavra. A um sistema político em que a “verdade é a regra do jogo”. Sem princípios e critérios de verdade, a nossa vida colectiva é uma farsa. O Estado de Direito é depauperado.

Escrevi aqui um artigo que designei de “A prisão preventiva de um e dos outros”. A minha perspectiva sobre os direitos, liberdades e garantias fundamentais. Observaram-me que eu lembrava o Velho do Restelo. Tratava sempre de direitos, liberdades e garantias. Ou para aí caminhava. Versasse outros assuntos mais actuais.

Muita gente pensa assim.

A realidade demonstra que as liberdades públicas e os direitos são sistematicamente maltratados. Os direitos não estão adquiridos e garantidos definitivamente.

O direito à Justiça é ainda uma miragem. Cidadãos presos preventivamente são acusados publicamente de factos gravíssimos. São impedidos de se defender publicamente, como a lei prevê. Só têm direito a ser acusados!

Os despedimentos, “mobilidade especial” e “requalificação profissional” sobrelevam o direito ao trabalho e justo salário. Os direitos sociais são postergados para o arquivo do inútil por um Governo sem lei. Mulheres são assassinadas às dezenas cada ano. Milhares de jovens emigram e estão desempregados. Crianças aos milhares estão ao abandono e desamparo. Os mais velhos, “memória de um povo”, são olhados como um fardo social. Tidos por um problema pelo primeiro-ministro: “Eu não tenho nenhum problema com os reformados. O país é que tem”.

Responsáveis pela crise política, económica e social são os velhos que não morrem. Os desempregados e os jovens que não querem trabalhar. As mulheres maltratadas que se põem a jeito. Os meninos pobres dos subúrbios que não deviam ter nascido.

O direito a uma vida digna, que todos deveríamos ter, foi e está posto em causa. Vive-se e trabalha-se para saciar a voracidade fiscal. Sugados de impostos até à alma.

As pessoas e questões sociais não integram o território da política e governança. Têm outros interesses e projectos. Mercadejar a granel as empresas do Estado aos “investidores institucionais”. Cumprir ordens do “deus dinheiro” ora dito mercados. Tributar-nos como vampiros. Só a conversa está a mudar. As eleições estão aí. O Governo não quer que o seu poder “se lixe”.

Os poderes raro negam os direitos. Têm sempre é reticências.

Direito de defesa, sim. Mas em “papel selado”, com todas as mesuras e excelências. Com as regrinhas do regulamento. Direito ao trabalho, sem dúvida. Só que o Estado e empresas estão hipotecados até à medula. Direito à greve , sem reservas. É constitucional. No momento, é inoportuna, injustificada, causa prejuízos e transtornos. É política. Reformas e pensões , incontestáveis. Mas a Segurança Social e a Caixa Geral de Aposentações estão falidas. Mulheres assassinadas é crime execrável. É com os tribunais, de quem se espera “pena exemplar”. Crianças ao abandono é problema das famílias pobres dos bairros sociais que são beneficiadas com subsídios chorudos.

O exercício da liberdade e direitos é um caminho longo e constante a percorrer. Martin Luther King não o esqueceu: “O que me preocupa é o silêncio dos bons”. Por isso o assassinaram.

Procurador-geral adjunto

Abrir e fechar buracos 18 Setembro 2014, por Cristina Casalinho


A economia europeia apresenta um crescimento modesto ou estagnação. O risco de deflação impõe desafios adicionais ao desendividamento dos Estados, empresas e famílias.

Face a níveis globais de dívida na vizinhança de 90%, não se poderá esperar demasiado da política monetária como motor de estímulo da atividade económica. Pode promover progressos na reparação da fragmentação do mercado de crédito, proporcionando a queda dos prémios de risco e equilibrando as condições de acesso ao financiamento, minorando assimetrias concorrenciais entre empresas da periferia e do centro da Europa. Pode ainda empurrar a taxa de câmbio do euro para patamares inferiores, facilitando exportações, sobretudo das mais sensíveis ao fator preço. Portanto, favorece a estabilização da procura doméstica e estimula a componente externa. A política orçamental dispõe de margem de manobra igualmente condicionada, quando os défices superam em média 3% do PIB e as economias crescem nominalmente próximo de 1.5%. Apesar de taxas de juro próximas de 1%, as dívidas públicas são empurradas para próximo de 100%. Não obstante, existem opções de estímulo que podem ser testadas.

Na Europa, avança-se com a proposta de criação de um fundo destinado ao financiamento de investimentos públicos infraestruturais, podendo englobar interconectividade (por exemplo, mediante maior capilaridade da rede de comboios de alta velocidade), energia e armamento. Estes dois últimos destinos de fundos europeus são uma relativa novidade, abrindo possibilidades promissoras.

A energia é um tema que ganha relevância na discussão do crescimento potencial das economias desenvolvidas. Direcionar fundos europeus para olhar integradamente para a resolução do problema energético poderá vir a revelar-se instrumental nos avanços do crescimento da união. Desde o encerramento das centrais nucleares japonesas após o acidente de Fukushima em 2011, o défice externo japonês deteriorou-se significativamente em resultado do forte aumento das importações de combustíveis fósseis e o custo de produção elevou-se, impondo desafios de competitividade. Na Alemanha, as autoridades decidiram acelerar o plano de encerramento das centrais nucleares, apostando fortemente na substituição da energia nuclear por energias renováveis com particular destaque para a eólica. O modelo de incentivos e subsídios usado implicou um aumento do preço no consumidor, industrial e doméstico, de cerca de 60% nos últimos cinco anos. Hoje, o custo da energia para a indústria manufatureira alemã é o dobro do verificado nos EUA. Por outro lado, cresce a controvérsia em torno da produção e distribuição da energia eólica produzida on e offshore, devido ao risco das radiações, dificuldades operacionais com turbinas, e pela inevitabilidade de unidades geradoras alternativas para assegurar picos de consumo ou quando não existe geração de energia eólica ou solar. Entretanto, por maior recurso às centrais a carvão, a emissão de gases de estufa aumentou. Nos EUA, a opção foi diferente. Intensificou-se o modelo baseado em combustíveis fósseis.

Com o desenvolvimento da fracturação hidráulica (designadamente a mais recente perfuração horizontal) que permite a aceder a novas jazidas de gás e petróleo de xisto, a economia americana conseguiu reduzir significativamente o seu défice externo e praticar custos energéticos comparativamente baixos, os quais, aparentemente, ajudarão a explicar algum regresso das indústrias manufatureiras (embora longe de um processo de reindustrialização). Todavia, esta indústria nascente enfrenta fortes críticas: altamente poluente da água potável, aumento de risco de terramotos, forte intensidade de uso de energia e rápida exaustão dos novos poços.

A aposta no rearmamento da Europa configura igualmente espaço para dinamização económica; recorde-se o papel desempenhado por esta indústria entre guerras. Os países do norte da Europa, com destaque para os estados bálticos, assusta-se com os acontecimentos a leste e depara-se com uma linha de defesa muito ténue. Por exemplo, a Finlândia reclama do investimento nulo em defesa por parte da Suécia na última década, quando observa com apreensão os avanços russos sobre a Ucrânia. A Polónia acolitada por estados bálticos manifesta desconforto perante a deriva hegemónica da Rússia, solicitando maior atenção à vertente defensiva da UE. Antigas potências territoriais fletem os músculos. A China tem aumentado significativamente o seu poder militar, elevando o nível de conflitualidade com os seus vizinhos, levando Vietname e Japão a destinarem mais recursos ao esforço militar. O Japão reforça a sua força naval, contrariando uma consequência do pós-guerra.

Um plano de investimentos europeus, de cariz keynesiano, com objetivos bem definidos e orientado para a remoção de obstáculos ao acréscimo de produtividade ou para suprir atrasos europeus relativamente a tendências dominantes, pode ajudar à redinamização da economia europeia, potencializando ganhos de competitividade e criação de emprego.

Economista

Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

O crescimento segue dentro de momentos 17 Outubro 2014, por Cristina Casalinho


O Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou na passada semana a atualização das projeções de crescimento para a economia mundial.

Face ao anúncio realizado em abril último, constata-se uma reapreciação em baixa das estimativas de expansão do PIB da área do euro de 1,2% para 0,8% e nos EUA de 2,8% para 2,2% para 2014, intensificando-se os receios de andamento medíocre e desequilibrado da economia global. Enquanto a presidente do FMI falou numa nova normalidade medíocre, o vice-presidente referiu a necessidade dos países procurarem aconselhamento e emularem experiências de países bem sucedidos, favorecendo a adoção de reformas estruturais e políticas económicas com cariz mais expansionista para redinamizar o crescimento económico. O produto expande-se a níveis anémicos, os preços encolhem, as taxas de juro tornam-se negativas. Qual é a principal questão do crescimento nos países desenvolvidos? Existe falta de procura?

Afigura-se consensual que o nível aquisitivo das economias desenvolvidas no último quartel de século ampliou-se - hoje, consomem-se mais telefones/telemóveis, casas, automóveis, casacos, sapatos, … Dificilmente, se conseguiria imaginar o consumidor europeu ou americano a comprar mais e sobretudo parece difícil continuar a aumentar o ritmo aquisitivo. Para as economias continuarem a expandir-se, não chega empresas ou famílias produzirem ou comprarem o mesmo que o ano passado, têm de produzir ou comprar mais numa espiral ascendente. Nos últimos anos, a espiral desandou por altura da Grande Depressão e, depois de alguma reanimação, estabilizou. Estamos, então, na fase de estabilização. As pessoas compram menos, porque a população envelhece, consumindo mais serviços que bens. Os rendimentos encontram-se estagnados pelo efeito da globalização e por via da necessidade de melhoria de competitividade, para assegurar a manutenção de postos de trabalho. As empresas investem menos (na Alemanha, o patamar de investimento encontra-se em mínimos), devido às fracas perspetivas de expansão da procura na Europa, sobretudo pelas razões acima apontadas. Quando aumentam capacidade produtiva, fazem-no nas economias emergentes.

As reformas estruturais poderão fazer muito bem a algumas economias europeias, expondo-as a maior concorrência externa e interna. A diminuição de barreiras à entrada e saída nos mercados de produtos e serviços cria um quadro competitivo tendencialmente mais saudável e inovador, promovendo eficiência e produtividade. Contudo, o sucesso e os ganhos das reformas estruturais dependem do ponto de partida. Nas economias desenvolvidas, os ganhos de eficiência promovidos pelas reformas serão incomensuravelmente inferiores que os observados, por exemplo, na Ásia ou na América Latina aquando das respetivas crises da dívida. Sobretudo na vertente relativa ao impulso produzido pela reforma das instituições e do seu papel charneira do crescimento harmonioso das sociedades.

Um mercado de capitais mais desenvolvido, em que o financiamento das empresas se processa preferencialmente num ambiente de desintermediação financeira, exigindo estruturas de capital mais equilibradas e que passa, espera-se, por uma formação de preços mais disseminada e eficiente, favorece o aparecimento de novas unidades produtivas. Sociedades como as escandinavas ou norte-americanas com proliferação de esquemas privados de pensões, cujos fundos investem em obrigações e ações, permitem às famílias complementar a remuneração do fator trabalho com remunerações associadas ao capital por via nas suas participações em fundos de investimento ou de pensões numa cultura de investimento fora de uma lógica estrita de depósitos bancários. A fragmentação do mercado monetário e as implicações no mecanismo de transmissão do crédito na Europa obrigam a um esforço mais significativo por parte do BCE que noutras latitudes, porque o trabalho é realizado quase em exclusivo mediante um canal - o crédito bancário. Ora, as alterações regulamentares, as carteiras de crédito em muitos bancos europeus ainda vivem dias de baixa rendibilidade, seja por causa do elevado risco de perda ou pela baixa remuneração, o risco associado à atividade económica na Europa, a procura anémica, elevam a fasquia do desafio para o BCE no seu esforço de reanimação do crédito.

Nalguns casos existe falta de procura, noutros as reformas são imprescindíveis, nuns a política monetária pode ser mais bem-sucedida, noutros os gastos públicos são recomendáveis. As manifestações de doença podem ser semelhantes, bem como alguns dos obstáculos estruturais ao crescimento; porém, o que se constata é que não existe uma solução pré-preparada para cada país ou economia e é, essencialmente, um processo de tentativa-erro.

Economista
Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

sábado, 27 de dezembro de 2014

O ano vivido por Carlos Filipe Preces : Condenação invulgar MARIANA OLIVEIRA

Titular do inquérito do Face Oculta no Departamento de Investigação e Acção Penal de Aveiro, Carlos Filipe Preces fala com orgulho deste megaprocesso, ao qual dedicou cinco anos e que acabou com a condenação de todos os arguidos.
Nunca como este ano se investigaram e julgaram tantos processos de criminalidade económico-financeira, envolvendo políticos que ocuparam cargos de topo. E, por isso, muitos ficam com a impressão que, por fim, a Justiça chegou aos poderosos. O desenrolar destes casos levará a uma conclusão mais precisa sobre esta questão, mas, por agora, 2014 já contabiliza um invulgar número de condenações neste campo.

Exemplo disso é a pena aplicada ao ex-líder parlamentar do PSD, Duarte Lima, que apanhou 10 anos de prisão efectiva no caso Homeland. A ex-ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, ficou-se pelos três anos e meio de prisão, com pena suspensa, mas não evitou registar no currículo um crime de prevaricação de titular de cargo político. Preso preventivamente está o antigo primeiro-ministro José Sócrates e o ex-presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, António Figueiredo, que esteve uma década a ocupar um alto cargo da Administração Pública, sobrevivendo a governos de esquerda e de direita.

Armando Vara, o mais mediático dos arguidos do Face Oculta, não escapou à condenação ADRIANO MIRANDA
Paradigmática é a condenação dos 36 arguidos do processo Face Oculta que julgou uma alegada rede de corrupção dirigida por um empresário de Ovar. É o resultado final de uma longa equação com muitas parcelas da responsabilidade do procurador Carlos Filipe Preces, titular do inquérito no Departamento de Investigação e Acção Penal de Aveiro. O magistrado de 41 anos conseguiu condenar todos os arguidos deste megaprocesso, um feito igualado por pouco. E sabe disso. Por isso, fala sem complexos dos vários aspectos que tornaram este processo “exemplar” e refere-se com orgulho ao caso a que dedicou os últimos cinco anos da sua vida. Terminou o julgamento, em Setembro, com a “satisfação própria de quem vê a Justiça a ser feita”. E ainda não colocou um ponto final neste caso. Dos 33 recursos interpostos da decisão do colectivo que julgou o processo, Carlos Filipe Preces apenas respondeu a um. E até final de Janeiro terá que entregar a contestação aos restantes 32. Por isso, foi de férias com os recursos na mala de viagem que levou para o Natal em família. Ou melhor dizendo, com os recursos na pen, pois não haveria mala que aguentasse o peso de tanta peça processual.

Talvez, por isso, a conversa foge-lhe para a desigualdade de armas. “A defesa de cada arguido tem 60 dias para apresentar o recurso, eu tenho os mesmos 60 dias para responder a todos os recursos interpostos”, constata. Mesmo assim não ensaia um discurso miserabilista. “Os meios ao dispor da investigação criminal são suficientes para processos bem-sucedidos. Não são óptimos, mas permitem boas investigações”, considera. Para o sucesso de investigações como o Face Oculta destaca a coesão entre Ministério Público (MP) e Polícia Judiciária (PJ). “É necessário um entendimento perfeito do que são as competências de cada um”, sublinha. A criação de um núcleo duro coeso e fechado que dirija as investigações é outra receita que subscreve. “No processo Face Oculta não havia mais de quatro ou cinco pessoas com conhecimento integral do processo: duas no Ministério Público e duas ou três na PJ. E havia reuniões quase diárias da equipa”, conta.

“Os meios ao dispor da investigação criminal são suficientes para processos bem-sucedidos. Não são óptimos, mas permitem boas investigações”

Mas há outros aspectos que gosta de destacar. “Foi um dos primeiros casos em que a defesa teve acesso a uma cópia digital do processo na altura em que foi feita a acusação”, recorda. Para Carlos Filipe 2014 foi também o ano do reconhecimento. Foi inspeccionado e teve direito a um Muito Bom, que lhe permitiu subir na carreira. Em Setembro passou ao segundo dos três patamares do Ministério Público: procurador da República. A subida determinou a saída de vogal do Conselho Superior do Ministério Público, já que tinha sido eleito pelos pares para representar os procurador-adjuntos, categoria a que deixou de pertencer.

Para 2015, tem outros desafios. Insiste em lutar por uma investigação criminal centralizada numa polícia judiciária única, totalmente independente do poder executivo, e dependente hierarquicamente do Ministério Público. Não esquece que no modelo actual a direcção da PJ é subordinada ao ministro da Justiça, tendo este poder para a demitir. Mas recusa-se a ver defeitos em tudo. Concorda com o princípio “saudável” da especialização, uma das traves mestras da reforma do mapa judiciário, mas lamenta que se tenham criado dificuldades acrescidas de acesso à justiça no interior.

“As fugas de informação nunca aproveitam a acusação. Aproveitam às defesas, que as usam para se vitimizarem” ENRIC VIVES-RUBIO
Tenta olhar para os defeitos, mas também destacar as virtudes do sistema de justiça. Por isso, realça um relatório da OCDE, divulgado há semanas, que coloca a justiça criminal portuguesa no top 10 em termos de tempo médio de resolução do processo. Sabe que nem tudo são flores, mas acredita que algumas reformas penais, como a de 2009, melhoraram o sistema, permitindo, por exemplo, que declarações prestadas em inquérito por testemunhas ou arguidos perante um magistrado possam ser valoradas durante o julgamento.

Responde assim às críticas que tantos apontam às violações do segredo: “Esse é um falso problema, que transforma o principal em acessório”. É como virar o bico ao prego, na gíria popular. “Quantas fugas ocorrem antes do momento em que há diligências que tornam o processo público?”, questiona o procurador, ao lembrar que a reforma penal de 2007 obrigou a que informação detalhada sobre o inquérito seja integrada nos mandados de busca e detenção. “Muito poucas. As fugas de informação nunca aproveitam a acusação. Aproveitam às defesas, que as usam para se vitimizarem”, acredita. Por isso, pega numa sigla em voga e adapta-a. “Chamo-lhe a estratégia do D.D.T - como era conhecido o presidente do BES, Ricardo Salgado, chamado o Dono Disto Tudo- Descredibiliza/Descentraliza e Torpedeia a investigação”, refere. E acrescenta: “Esta questão faz parte do processo de vitimização a partir dos quais se fazem as próprias defesas”.

36 Arguidos condenados no processo Face Oculta, que julgou uma alegada rede de corrupção dirigida por um empresário de Ovar

Mas faz questão de sublinhar que estas violações não têm qualquer reflexo processual. “Apenas mediático”. A avaliação serve como uma luva ao coro de protestos após a detenção de Sócrates, que alegadamente foi filmado minutos após ter sido detido. Não ignora que sobre os suspeitos recaem muitas vezes no plano público uma presunção de culpa e não de inocência, como a que vigora no processo. Mas não responsabiliza a Justiça por isso. “Estudos à percepção da corrupção mostram que 90 por cento dos portugueses acreditam que Portugal é um país de corruptos. Qualquer fumo de corrupção, justificado ou não, resulta numa presunção de culpa que funciona de forma automática”, afirma.

Admite que haja magistrados que gostem dos holofotes da fama, mas não acredita que seja isso que os move. E lamenta a manutenção de uma sociedade amorfa, demasiado ocupada com o dia-a-dia e sem sentido crítico da realidade. “Não temos uma opinião pública, temos opinião publicada. Os cidadãos recebem as notícias de forma acrítica, o que acontece igualmente aos comentários das figuras de referência da República”, remata.

O ano visto por António Barreto : O início de nada SÃO JOSÉ ALMEIDA


2014, não é o início de nada, porque não mostrou sinais de mudança, não trouxe ideias novas e acentuou sinais de crise da política, da crise da justiça, do aumento de corrupção, de diminuição de recursos económicos, de transferência do capital para o estrangeiro. Mostrou a desagregação, o disfuncionamento, a disrupção de alguns serviços públicos, como seja a educação”, é com tranquilidade na voz, mas em tom categórico que, a pedido do PÚBLICO, o sociólogo António Barreto sintetiza as suas reflexões sobre ano em Portugal.

E frisa: "Este ano vai ficar na história, daqui a 15 anos os historiadores olharão para ele como um ano de charneira por causa dos casos judiciais. Estamos num processo mais longo, que se desenrolará ao longo de cinco ou sete anos, que tem muita importância e gravidade, no sentido de gravitas."

Este momento de "charneira" surge numa época em que o país está em sintonia com a Europa. Vive "um processo que começou há 10 ou 15 anos", interrompendo o ciclo iniciado "na Segunda Guerra e que durou até à viragem do século". Barreto precisa que "a segunda metade do século XX foi um período de aprofundamento da democracia, de progresso no universo das mulheres, dos jovens, etc., os últimos 40 ou mesmo 50 anos foram de progresso do nível de vida e da igualdade de direitos".

“Não conheci, em tempos de paz, na história democrática, como isto. Há o caso italiano das Mãos Limpas, em que houve dois ou três ministros presos [...]. [Há] em Portugal uma dimensão de corrupção que põe em causa o sistema”

Ora, no actual século assistimos a "uma inversão desse processo", de que faz parte "o predomínio de governos de direita", assim como o facto de "o mundo do trabalho estar a perder poder e voz, os partidos de esquerda perderem voto e influência, a parte inferior da classe média perder poder", sustenta. A Europa vive um período em que "o movimento de alargamento da democracia parou", defende, frisando que, "mesmo antes de 2008, já há uma transferência de rendimentos de classes médias para os mais ricos, dos países mais pobres para os mais ricos, através dos juros das dívidas públicas e dos programas de austeridade, do trabalho para os detentores da produção, do mundo produtivo para o mundo financeiro". E afirma: "Algumas das causas democráticas estão a perder, como a da centralidade do trabalho para a economia. Até no mundo da cultura e das artes há perda e é um mundo que está sem capacidade."

Degenerescência do sistema

O sociólogo, que viveu ele também uma mudança de vida este ano, ao deixar a presidência da Fundação Francisco Manuel dos Santos, alerta que o ano de "2014 em Portugal tem de ser visto neste quadro". Um país a viver um momento de mudança que "é um processo duro e difícil", que este ano viu serem revelados "os grandes casos que são manifestações da degenerescência do sistema político". A saber: o caso dos submarinos, o caso José Sócrates, o caso Duarte Lima, o caso Face Oculta, o caso dos vistos gold, o caso Monte Branco e a derrocada do Grupo Espírito Santo. Como se a crise e a austeridade, o empobrecimento e a degradação política expusessem a corrupção.

José Sócrates detido: um caso inédito na história da democracia portuguesa ENRIC VIVES-RUBIO

É assim "uma época em que as pessoas não se reconhecem no sistema, as elites políticas não estão à altura de dar resposta", em que, "além da degenerescência do sistema político, também há degenerescência do Estado de Direito", defende Barreto. E em jeito de balanço, retrata: "Temos um ex-primeiro-ministro [José Sócrates] preso preventivamente com a opinião pública contra ele, um antigo ministro [Isaltino Morais] na segunda fase de prisão, um antigo secretário de Estado a cumprir pena [Oliveira e Costa], outro antigo ministro [Armando Vara] à espera de cumprir pena, um antigo secretário de Estado [José Penedos,] também à espera de cumprir pena, um antigo líder de um grupo parlamentar [Domingos Duarte Lima] à espera de cumprir pena, altos funcionários do Estado investigados e em prisão preventiva [no caso dos vistos gold]".

E, perante o seu próprio resumo, remata: "Não conheci, em tempos de paz, na história democrática, como isto. Há o caso italiano das Mãos Limpas, em que houve dois ou três ministros presos, mas em Itália os partidos ficaram de pantanas e o Partido Comunista e o Partido Democrata Cristão desapareceram." Advertindo que há "em Portugal uma dimensão de corrupção que põe em causa o sistema". Para mais quando "já tivemos antes os fenómenos do BPP, do BPN e o BCP, três histórias da elite financeira que agora acabam com o caso Espírito Santo - e nesta não é só a família que está em causa, há muito mais por trás disso, vamos ter novas prisões nas próximas semanas", afirma o sociólogo.

Com o mapa da corrupção sinalizado, conclui: "A crise é assim também do nosso capitalismo que não está à altura. Há dinheiro árabe, angolano e chinês. Não é por ser dinheiro estrangeiro a ocupar Portugal, o dinheiro não tem cheiro nem nacionalidade, mas são dinheiros frescos, que compram e não investem. Isto demonstra que o sistema económico português é frágil e que a elite económica é fragilíssima. Há uma crise política, há uma crise na justiça/ corrupção, há uma crise capitalista. Além de que 2014 é o ano da transferência de poderes e de inversão do peso dos direitos e do trabalho."

“O ano de 2014 mostrou a desagregação, o disfuncionamento, a disrupção de alguns serviços públicos, como seja a Educação”

Sublinha ainda que 2014 foi "um ano crucial e de crise, que não teve sinais de solução, teve sinais de decadência e incapacidade", que mostram "a falta de resolução das questões políticas económicas e sociais, falta de capacidade das elites políticas, sociais e económicas". É o ano em que "houve antes disrupção na política e na justiça". Considerando ainda que "o ano educativo é terrível", sublinhando que "o sistema educativo põe em contacto directo o Estado e os cidadãos e foi onde houve mais disfunção e disrupção."

Sobre se "2015 será pior?", Barreto apenas diz: "Vamos ver. Até agora as elites políticas e económicas não deram sinais de mudança, só deram sinais de querer ganhar eleições." Sendo um ano eleitoral, Barreto considera que "pode ser um ano de marcar passo". Lembrando que em 2013 "toda a elite do país não conseguiu travar o processo e fazer um acordo", o sociólogo advoga que deviam ter decorrido eleições, pois "o que estamos a viver há um ano e o que vamos viver até Outubro será para acrescentar degradação".

Barreto antecipa que "a recuperação económica não vai acontecer, o desemprego diminuiu pouco, o investimento está baixo", será "um ano no melhor dos casos igual a 2014 e "com muita insuficiência de investimento". Mas admite que está "curioso sobre como os partidos se vão portar, se a direita faz coligação, se esquerda reforça a sua identidade e faz uma grande coligação". Até porque, garante, "estão em cima da mesa duas grandes alianças e há quem esteja à espreita, Marinho e Pinto é um fenómeno importante, já houve um intruso com o PRD, mas apesar de tudo Ramalho Eanes era Presidente".
Barreto é peremptório ao defender que "só um novo poder político pode levar a cabo uma reforma" ENRIC VIVES-RUBIO
Numa precisão que antecipa pessimismo, Barreto sustenta que "as elites políticas dão sinal de não saber responder". Por um lado, "a direita diz que o neoliberalismo vai resolver", do outro lado, "a esquerda diz que vai resolver, porque é esquerda" e o "bloco central é rejeitado". E antecipa: "Vamos ver se esta esquerda e esta direita reagem. É o que vamos assistir em 2015. Não creio que vamos ter boas notícias da TAP, da educação que está terrível, da saúde, há um grande contencioso não está em vias de encontrar solução". Para reafirmar a ideia de que "nos próximos quatro ou cinco anos a economia portuguesa vai perder força, mesmo as empresas ainda sediadas em Portugal vão desinteressar-se e os centros de investimento também".

Um novo poder

Barreto é peremptório ao defender que "só um novo poder político pode levar a cabo uma reforma". E explica que "se houvesse sinais de formação de um novo poder político, com bases ao centro, e esse poder político se propusesse reformar a Constituição, o sistema eleitoral e sistema judicial", o país encontraria um caminho. Mas, o sociólogo afirma que o actual sistema político "só pode pensar em reformar coisinhas na Constituição ou na lei eleitoral".

“A crise é, assim, também do nosso capitalismo, que não está à altura. Há dinheiro árabe, angolano e chinês. […] O dinheiro não tem cheiro nem nacionalidade, mas são dinheiros frescos, que compram e não investem”

Quanto a 2014, foi tempo perdido. "A austeridade trouxe uma direita com poder político real, que podia mesmo reforçar-se com a legitimidade da troika", mas que levou a "um resultado em que mais importante que o aumento da desigualdade e da pobreza, o mais sério é a incapacidade da direita de formar um novo poder político". Uma capacidade que não sabe se a esquerda tem, isto porque "António Costa poderá tentar conversar com o BE, o PCP e o Livre, mas isso não resulta", pois "o PCP não faz parte do futuro do sistema político português, o PCP é um grande protagonista da resistência, não o é da democracia".

Barreto clarifica que fala em "novo poder e não novo regime, porque as pessoas perguntam logo se o novo regime é democrático ou não, monárquico ou republicano". Mas explica que a esse novo poder político "competiria recuperar o sistema político e o sistema constitucional, sem pôr em causa, antes preservando e protegendo a democracia, que é, na essência, a liberdade dos cidadãos".

E lembra que "a missão de um sistema constitucional é isso mesmo, preservar a liberdade dos cidadãos e a democracia". A esse novo poder, defende, caberia "um longuíssimo trabalho de organizar o poder do Estado, os poderes periféricos de Estado, o corpus da Justiça, já que, remata: "O sistema judicial vive em auto gestão, tem que se rever o actual modo em que as decisões estão apenas nas mãos dos senhores juízes e dos senhores magistrados."

Prefere cair por um precipício ou afundar-se em areias movediças? JOSÉ PACHECO PEREIRA 27/12/2014


Com ideias simplistas e erradas, e toneladas de pseudo-ideologia no lugar da ignorância, vamos pagar muito caro, estamos a pagar muito caro.

A bancarrota de Sócrates, que existiu mesmo, with a little help from my friend Passos Coelho, foi o equivalente a deitar Portugal por uma ravina abaixo, o “ajustamento” de Passos é o equivalente a atirar Portugal para um pântano de areias movediças. Os dois são momentos complementares da mesma crise social, cultural, económica e política que assola o país desde 2008, e que é, em parte, um reflexo de uma crise europeia mais vasta. Em parte, mas não só.

Há componentes nacionais que nos caíram em má sorte, e que têm a ver com uma conjugação muito especial de incompetência, ideias erradas, superstições e dolo. No dia em que se fizer uma verdadeira história destes últimos seis anos, só colocar o que cada um dos protagonistas pensava, disse ou fez numa sequência cronológica correcta mostrará como se foram destruindo todas as oportunidades, afunilando o caminho e tentando secar com zelo todas as alternativas. O problema é que essa tarefa de criar o deserto à volta teve eficácia, porque a política da terra queimada tem efeitos destrutivos e diminui de facto as opções dos que a ela sobrevivem.

Tenho insistido nesta questão da cronologia rigorosa, até porque ela nos ensina muitas coisas sobre como é que evoluiu o processo nestes seis anos de lixo e, por isso, altera a nossa percepção sobre as relações de causa e efeito. Não é uma tarefa que possa ser feita apenas puxando pela memória, porque a poluição do que aconteceu por interpretações políticas a posteriori é grande. Mas, se colocarmos toda uma série de perguntas e formos atrás ver as respostas, ficamos muitas vezes surpreendidos pela capacidade que tem o discurso do poder, em conjunto com a perda de memória que os mediatrazem à sociedade, para “moldar” o passado às conveniências do presente.

Quando é que a crise financeira dos activos tóxicos e do Lehman Brothers se tornou numa crise das dívidas soberanas? E porquê? Que papel teve a decisão puramente política da Alemanha, diante de uma Europa enfraquecida e tonta, na abertura da frente das dívidas soberanas, as mesmas que tinha ajudado a agravar com as decisões keynesianas da resposta inicial à crise financeira? Todo. Podia não ter havido crise das dívidas soberanas, mesmo com as dívidas em crise profunda. A crise das dívidas soberanas foi uma opção política alemã e teve um papel fundamental em “soltar” a Alemanha do directório com a França e deixá-la isolada no mando da Europa. A crise económica, de 2008 em diante, foi um instrumento fundamental no plano político para acabar com a União Europeia como a conhecíamos e dar origem a uma “união” de hegemonia alemã.

Que papel teve a chanceler alemã em apontar a Grécia como “culpada”, abrindo caminho para a categoria maldita dos PIG, e colocando-se no centro de uma política claramente punitiva que, entre outras coisas, destruiu o pouco que sobrava da política de coesão, a favor de uma projecção europeia das políticas do Bundesbank? Todo. Há quanto tempo se sabia que as contas gregas eram falsificadas e que a entrada do dracma no euro tinha sido prematura? Só em 2011? Deixem-me rir.

Quando é que Portugal passou a PIG e deixou de ter a protecção alemã para as suas dificuldades económicas? Depois do chumbo do PEC IV e não antes. Aliás, o PEC IV foi um plano alemão de austeridade negociado com o Governo Sócrates e o seu chumbo provocou a ira de Merkel, cuja primeira intervenção depois da queda do plano na Assembleia foi uma bofetada pública furiosa em Passos Coelho. Portugal entrou então na categoria dos PIG e muito do que hoje a propaganda do PSD e do CDS diz sobre como Portugal estava nas ruas da amargura do prestígio europeu refere-se ao pós-PEC IV e não antes. A crise dos juros acompanhou este processo de crise governativa, com a queda do Governo Sócrates e a preparação do memorando em simultâneo.

Como é que foi possível ao PS e ao PSD terem aprovado o memorando de entendimento em Maio de 2011 e fazerem as promessas eleitorais que fizeram nas eleições de Junho? Sim, porque o memorando é anterior às eleições e não posterior. E se o PSD sabia muito bem o que tinha assinado em Maio, como é que não o “compreendeu” em Junho de forma a evitar as promessas taxativas que fez em campanha eleitoral? Mais: como é que, se projectarmos para trás, o que hoje PSD e CDS dizem da bancarrota de 2011 e do significado do memorando foi possível conduzir umas eleições pós-memorando com aquela linguagem? Mais: como foi possível anunciar, também à luz do discurso dos dias de hoje, como medida única de austeridade, o corte “apenas naquele ano” de metade do subsídio de Natal, a medida que bastava? E onde estão os resultados das múltiplas promessas, algumas já vindas dos governos Sócrates, feitas para “adoçar” o corte, o chamado Programa de Emergência Social, que implicava um programa nacional de microcrédito, um mercado social de arrendamento, um programa nacional de literacia financeira, o reforço de escolas em bairros problemáticos, um banco de medicamentos e um banco farmacêutico, os tele-alarmes, um programa Rampa, o descanso do cuidador, um banco ideias, etc., etc., etc., etc.? Se nestes anos coleccionarmos os títulos pomposos de programas sobre programas, anunciados com espavento e depois os espremermos, quase nada sobra.

Aliás, ler os jornais de há pouco mais de dois, três anos, seria ridículo se não fosse muito sério. Podia fazer todo este artigo e ainda ocupar uma parte importante deste jornal só com os títulos pomposos de programas sobre programas, todos impantes nas suas maiúsculas, e nos quais, nem que seja durante uns meses, se gastou tempo e dinheiro e se colocaram pessoas, sem resultados práticos. Não é originalidade deste Governo, mas pelo contrário uma prática bem sólida do desperdício governamental, as chamadas “gorduras do Estado”. Mas era suposto este fazer diferente. Aliás, não é por acaso que pelo menos na construção de portais, páginas da Rede e outros serviços, muitos deles que duram muito pouco e ficam indisponíveis, se alimentou um conjunto de pseudo-empresas encostadas às “jotas”, que se movem nestes meandros ministeriais como peixe na água.

E estamos apenas em 2011, antes do grande susto orçamental que veio com a incapacidade do divino Gaspar de controlar o Orçamento e que levou ao “enorme aumento de impostos” e ao contínuo assalto a salários, pensões e reformas. Ou seja, este Governo não chegou ao poder para aplicar a austeridade pós-memorando, e assim “salvar o país”, mas sim para fazer uma política menos dura do que a dos últimos meses de Sócrates e só descobriu a “realidade”, como eles gostam de lhe chamar, depois. Maldita cronologia!

Alguém pensa que este modelo atamancado em 2011-2, assente acima de tudo no “gigantesco aumento de impostos”, pode subsistir sem esses impostos? A herança de Sócrates foi um Tesouro vazio que dava para três meses, a herança de Passos Coelho é um “ajustamento” que só tem efeitos porque depende de um enorme assalto fiscal. Não existe “ajustamento” à Passos Coelho sem impostos elevadíssimos, centrados no trabalho e no consumo. Sem esses impostos tudo vem abaixo como um castelo de cartas, porque nenhuma transformação estrutural foi feita nem na economia portuguesa, nem no Estado. E as que foram feitas na sociedade, principalmente o empobrecimento selectivo da classe média, são todas inibitórias de qualquer genuíno crescimento.

O país foi gerido como o jogo de SimCity – primeiro gastou-se de mais, depois empobreceu-se de mais. Primeiro, o mayor virtual encheu a cidade de quartéis de bombeiros e esquadras da polícia, parques e circos ambulantes, com os índices de popularidade a aumentar. Depois veio a bancarrota e o novo mayor inverteu a receita, desatou a aumentar os impostos, cortou os serviços públicos. A cidade do SimCity começou a cair aos bocados, os incêndios a aumentarem, o crime alastrando, as pessoas a emigrarem. Não são duas políticas distintas, são duas faces da mesma política, uma o espelho da outra, ambas com efeitos perversos desastrosos para o país.

Pensam que houve muito mais sofisticação do que a que é preciso para “jogar” SimCity? Não, foi mesmo assim, com ideias simplistas e erradas, e toneladas de pseudo-ideologia no lugar da ignorância. Vamos pagar muito caro, estamos a pagar muito caro. Querem morrer rapidamente ou ficar muito feridos, caindo por uma ribanceira ou enterrando-se num pantanal?

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

O distúrbio de Virgolino Faneca 29 Julho 2012, por Celso Filipe


Espero que esta carta te encontre bem, a ti e a todos os teus. Eu sei que daqui a quinze já te teremos de novo na nossa companhia, se Deus quiser, mas como estás aí longe, no Luxemburgo, sei quanto prezas receberes notícias de Portugal.

Deixa-o-Resto, 24 de Julho de 2012
Querida Natália:

Espero que esta carta te encontre bem, a ti e a todos os teus. Eu sei que daqui a quinze já te teremos de novo na nossa companhia, se Deus quiser, mas como estás aí longe, no Luxemburgo, sei quanto prezas receberes notícias de Portugal.

Pois olha, Natália, nem sabes o pratinho que estás a perder. Eu não me ria tanto desde que aquele senhor de cabelos brancos, parecido com o avô Cantigas, se pôs a falar de pêlos íntimos. Mas isso já foi há tanto tempo, que estava mesmo a precisar de voltar a rir até me doer a barriga. E o senhor primeiro-ministro, que só nos tem dado notícias tristes, resolveu fazer-me a vontade. Então não é que ele disse, num encontro com os amigos do partido, acho que eram deputados, o seguinte: "Se algum dia tiver de perder umas eleições em Portugal para salvar o país, como se diz, que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal."

A malta caiu-lhe toda em cima em virtude disto do lixado, o que até deve ter doído, porque o senhor está mais magrinho por causa de estar a fazer uma dieta. Uns ingratos, é o que são. O senhor até disse a frase a sorrir, que era para a malta perceber que aquilo era piada à "Malucos do Riso". Pelo menos foi assim que eu achei e fartei-me de rir lá no café do Alfredo. Tanto que até me acharam maluco. "O homem anda-nos a lixar e tu ainda te ris", zangou-se o Zé das Merendas. A conversa azedou tanto que eu tive mesmo de me ir embora com medo que me dessem umas cacetadas.

Mas ninguém me tira da cabeça que aquilo era mesmo uma piada para o pessoal desanuviar a cabeça da austeridade, da troika, dos impostos, e ir de férias mais bem-disposto.

E o primeiro-ministro ainda fez humor quando avisou os seus amigos: "Nenhum dos que aqui estão foi eleito para ganhar as próximas eleições, ou para ajudar a ganhar autárquicas, nem as regionais deste ano nos Açores, nem as europeias que aí vêm a seguir, não foi para isso que fomos eleitos. Foi para responder ao país." E eles também se riram, assim a modos que um riso nervoso.

É claro que o primeiro-ministro não quer ganhar eleições. O senhor está convencido que vai salvar Portugal e, por isso, que se lixe a política, que só atrapalha. Mas o Camané, o presidente da nossa junta, que é do PSD, também não achou graça à brincadeira. "Ainda vou perder as eleições à custa disto. Mas o tipo do bigode, lá de Viseu, ainda o vai pôr na ordem, para ele ver com quantos paus se faz uma canoa" – disse-me ele.

Antes de ir pôr esta carta no correio fui à minha consulta semestral no posto médico e contei o que se tinha passado à doutora Ivone. Ela torceu o nariz e disse-me que estou com um distúrbio de personalidade. Uma doença lixada, avisou. Nem sabes o que eu me ri.


Um abraço deste teu irmão que muito te preza,
Virgolino Faneca

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Uma estátua para o super-herói da Madeira LUÍS MIGUEL QUEIRÓS 23/12/2014

A estátua de Cristiano Ronaldo no Funchal

A discussão em torno da nova estátua de Cristiano Ronaldo no Funchal não se esgota no volume nos calções.

Cristiano Ronaldo inaugurou este domingo, na Madeira, a sua própria estátua, que ficará a lembrar, na Praça do Mar, no Funchal, este filho da terra que se tornou uma estrela global. Esculpida em bronze pelo artista madeirense Ricardo Veloza, a estátua tem sido criticada nas caixas de comentários dos jornais por fãs que não reconhecem o rosto do ídolo nas feições que o escultor traçou, mas tem sobretudo divertido a imprensa internacional, que quase só fala do alegado sobredimensionamento dos genitais de Ronaldo que se adivinham sob o (brônzeo) tecido dos calções.

Ambos os tópicos têm silenciado outras possíveis questões que esta homenagem poderia suscitar. Por exemplo, saber se faz sentido erguer estátuas a um jovem de 29 anos, mesmo que seja o melhor jogador de futebol do mundo. Ou se era inevitável a opção por uma estátua francamente realista, ainda que sobredimensionada - e referimo-nos agora à altura: 2,40m, descontado o pedestal. Ou o que ganha a Madeira (e o governo regional) com esta cerimónia e este monumento? Ou ainda tentar perceber o que comove o jogador neste modesto tributo doméstico à sua carreira galática?

O público ouviu um sociólogo, um historiador, um artista plástico e um crítico de arte, e em duas coisas estão todos mais ou menos de acordo: nenhum se mostra particularmente chocado por se erguer uma estátua a um jogador de futebol, mesmo estando ainda no activo, e todos eles consideram previsível e compreensível que, nestas circunstâncias, promotores e artista tenham optado por uma figuração naturalista.

Tendo em conta o universo de fãs de Ronaldo e o potencial turístico do monumento, o crítico de arte Óscar Faria observa: “Se fizessem um cubo e dissessem que era o Ronaldo, talvez não funcionasse lá muito bem”. E o artista plástico e músico João Paulo Feliciano acha que “o problema com a estátua do Ronaldo é muito mais dos observadores do que da coisa em si”, argumentando que “é a partir do nosso ponto de vista, supostamente mais intelectualizado”, que “tendemos a pensá-la como um fenómeno com uma sofisticação que ela não tem que ter”. O erro de perspectiva pode estar, segundo este artista, em se querer estabelecer “uma ligação directa entre esta estátua e a arte como nós a entendemos quando pensamos num museu como Serralves ou a Gulbenkian”. Ora, conclui, o monumento madeirense terá mais a ver com o universo da “colecção de cromos”.

O jogador e a estát
Amaciar as rugas
O próprio autor da estátua explicou ao PÚBLICO que quando o convidaram ficou a perceber, “logo nas primeiras impressões” trocadas, que o que se queria era “uma escultura figurativa”, que os fãs pudessem reconhecer e fotografar. E os seus muitos trabalhos espalhados pelo Funchal - e que incluem, para citar apenas alguns, a estátua da Autonomia, hoje na praça homónima, ou os monumentos que criou para honrar o Trabalhador, o Turista ou o Combatente - deixam perceber que a sua especialidade passa pela figuração realista da anatomia humana.

Quanto às reservas que a obra tem merecido, Veloza diz que já está “habituado às críticas positivas e negativas”, acrescenta que recebeu elogios vindos da família do retratado e diz que a única sugestão que o irmão de Ronaldo lhe fez, e que cumpriu, foi a de “amaciar um pouco as rugas de expressão” que usara para tentar tornar o rosto mais reconhecível”. Mas ele próprio reconhece que tinha “exagerado” e que a estátua ficou a ganhar com a alteração.

Óscar Faria acha que, “enquanto arte contemporânea”, este Ronaldo de bronze “não tem nenhum interesse”, mas que também “não faz grande sentido” avaliá-lo nesses termos. “Não está tecnicamente mal feita e cumpre o seu desígnio”, diz, acrescentando que o que a diferencia e salva da trivialidade é mesmo “a tal protuberância”, já que, observa, “é um detalhe anatómico a que não costuma dar-se muito destaque em obras deste tipo”. Virtude ou defeito, o certo é que a aparente erecção da estátua está a concentrar as atenções da imprensa europeia e a tornar-se viral nas redes sociais. O jornal desportivo Primera Hora comenta que “mesmo em fotografias, é impossível olhar para outro lugar que não seja o seu traço avultado na área frontal”.

Discussões artísticas e peculiaridades anatómicas à parte, o sociólogo Nuno Domingos, um investigador que tem dado particular atenção ao fenómeno do futebol, acha que “todo este processo em torno da estátua de Cristiano Ronaldo deve ser visto à luz da geopolítica madeirense e da “relação da Madeira com o continente”. Nota que a homenagem acontece “no contexto da sucessão do líder do PSD da Madeira”, Alberto João Jardim, e pensa que ela deve ser lida como um gesto de “afirmação regional”, uma forma de lembrar que o super-herói galáctico, aquele que “é talvez o português mais conhecido em todo mundo”, é também “um filho da terra”.

Domingos salienta ainda a importância de Ronaldo para o turismo, vendo nesta estátua mais um atractivo a potenciar essa dimensão, a somar-se ao museu que já hoje recorda no Funchal os triunfos da carreira do actual jogador do Real Madrid.

Um herói do povo
Numa época em que a “força mediática e o impacto comercial da cultura popular são enormes”, um tempo em que se publicam “biografias de um jogador de futebol ou de uma jovem estrela pop”, as vantagens de pôr a imagem de Ronaldo ao serviço da “afirmação do poder regional” são evidentes, observa o sociólogo. Mas Domingos lembra que o jogador também tem “servido a diplomacia económica portuguesa”, como recentemente sucedeu com a oferta de camisolas com o seu nome numa visita oficial à China.

Já do ponto de vista do jogador, Domingos admite que o entusiasmo com que Ronaldo saudou desde o início este projecto possa também ter a ver com “o significado que tem para ele, que veio de uma família pobre da Madeira, estar agora ali com a mãe e os irmãos, a ser homenageado pelas principais figuras da terra”.

João Paulo Feliciano parece sugerir algo semelhante quando identifica nesta homenagem “uma tensão entre a realidade da Madeira onde nasceu Cristiano Ronaldo, o ponto de partida, e aquilo que hoje representa Cristiano Ronaldo, um jogador reconhecido em todo o mundo, que é o ponto de chegada”.

Já sobre a escultura em si mesma, acha que “a posição escolhida, o ar musculado e as roupas muito agarradas ao corpo” contribuem para sugerir “a ideia de um super-herói”.

O historiador Manuel Loff não se afasta muito desta perspectiva, mas acrescenta que Ronaldo, “como Joaquim Agostinho, Eusébio ou Amália, tem esse percurso que é o único que se admite aos heróis do povo: vir de baixo, trabalhar incansavelmente e triunfar, mas em nome de todos, já que triunfar em seu próprio proveito só se permite aos ricos”. Foi nesta imagem, diz, que Alberto João Jardim apostou no discurso que fez quando a estátua foi inaugurada. “Exaltou o madeirense emigrante, lutador, resiliente, que não se deixa vir abaixo, mas os políticos falam sempre de si próprios quando falam de outros, e isto é o que Jardim quer que se acredite que foi a sua gestão da autonomia madeirense”.

Se Ronaldo encarna o típico herói popular luso, Loff chama a atenção para o facto de o jogador não ter “um bigode ou uma patilha que o identifiquem como português” e de a sua a imagem “estar completamente de acordo com a cultura de massas actual”. Mas também sublinha que esta conformidade não põe em causa que Ronaldo continue a ser e a sentir-se português e madeirense. “Não é luso-espanhol, não fundiu a sua identidade numa outra”.

Loff prevê ainda um auspicioso futuro ao “mito Cristiano Ronaldo”, que será favorecido pelo facto de a sua carreira coincidir com “a pior regressão” das últimas décadas. “A memória dos seus triunfos”, diz, “vai coincidir na memória colectiva com a dureza desses anos em que ele esteve lá, a mostrar que só não somos bons porque não nos deixam e a exorcizar o sentimento de fracasso dos portugueses”.

E para lá das construções simbólicas, Ronaldo merece uma estátua? Nuno Domingos acha que sim. “Podemos achar imoral o que ele ganha, mas ganha-o num mercado no qual se tem de dar provas inequívocas, onde não se chega por cunhas, ou por se ser filho de alguém, ou por se ter andado numa universidade com propinas muito caras”.

Do "Alzheimer espiritual" ao "terrorismo da má-língua", Papa denuncia 15 doenças da Cúria




A decência ainda resiste, apesar do cerco (24 Outubro 2014),por Baptista Bastos


A voracidade destrutiva do grupo de Passos Coelho é a maior tragédia que tombou em todos nós, os que trabalham, desde o 25 de Abril.

A sociedade portuguesa está cada vez mais pesada e trágica. A entender o que diz, ou sussurra, ou omite o Orçamento do Estado, a miséria vai aumentar para os mais desprotegidos, e a reposição de 20% dos cortes aos funcionários não passa de uma decisão ultrajante. O Governo está a cair aos pedaços fétidos e não pára de ferir fundo aqueles de nós, como eu, com perdão da palavra, que têm de continuar a trabalhar ou a biscatar para sobreviver.


A voracidade destrutiva do grupo de Passos Coelho é a maior tragédia que tombou em todos nós, os que trabalham, desde o 25 de Abril. Temos de repetir esta evidência até que a voz nos doa. Agora, alguns dos patrões que enriqueceram com as benesses e as facilidades propiciadas por este Executivo, já começam a recalcitrar. A própria direita, corporizada em Paulo Portas, percebe que o chão lhe está a fugir, mas metem nojo, por exemplo, as declarações de Lobo Xavier, um dos homens de mão do Belmiro de Azevedo, ou as patetices de Nuno Melo (parece ser assim o nome do desenvolto) quando proclama a melhoria de vida dos portugueses. O Governo está em estilhaços, as malfeitorias que pratica não cessam, e o Orçamento do Estado constitui um ultraje ignominioso, a crer nos economistas e em toda a oposição. O próprio António Saraiva, patrão dos patrões, começa a não poder esconder o mal-estar que se lhe apossou, independentemente de estar visivelmente doente.

Mas a questão central continua a mesma: e depois de Passos, que decisões tomará o novo Governo, ante este caos económico, moral, social e cultural?

Às vezes, muitas vezes, penso quais serão as conversas que o primeiro-ministro terá em família? E a família ficará infensa à gritaria, aos protestos, ao caudal de desemprego, de fome de miséria que se estende pelo País?

Claro que o futuro de Passos estará sempre garantido, e o espectro do desemprego não tocará nunca no batente da sua porta. Deixa, atrás de si, um país que destruiu, e cujos escombros são a trágica afirmação de uma prática governamental pautada pela mais atroz incompetência. Os seus amigos serão a senhora Merkel, o senhor Juncker e o sinistro dono das finanças alemão, cujo nome me causa engulhos, e que foi o grande patrocinador desta macabra experiência político-económica. O ministro Gaspar já está arranjadinho, e só não passa à história como biltre porque os portugueses são esquecidos, fazem-nos esquecer ou negligenciam a sua pessoal sobrevivência.

A preguiça mental e social e a cobardia nascida da indiferença são as causas gerais da nossa decadência. Há restos de dignidade e de decência, como a que corresponde a atitude de Maria Teresa Horta, grande poetisa e grande carácter, que recusou receber, das mãos de Pedro Passos Coelho, o prémio da Casa de Mateus, enquanto um "escritor" inexistente, arfante de alegria, foi medalhado pelo dr. Cavaco, com esfuziante entusiasmo e pouca-vergonha a condizer, servindo de berloque à direita mais sórdida.

António Costa, presumível primeiro-ministro, vai estar em terreno armadilhado. Só o apoio das forças de esquerda poderá impedir o que se prevê. A imprensa está a mudar de donos, e criaturas estipendiadas são colocadas em lugares-chave da comunicação social, perante a impávida disposição das Redacções.

Apesar deste caos moral e social, e das minhas apreensões ante o panorama, continuo a acreditar que possuímos forças suficientes para enfrentar a avalanche. Não podemos é desistir. Desistir, nunca, e em circunstância alguma.

NOTA A TEMPO - Aproveito para agradecer aos leitores que se interessaram pela minha saúde, na semana passada. E, também, a todos aqueles, às centenas, indignados com um percalço de que fui protagonista. A saúde foi um transtorno passageiro. No outro caso, recorro a Carlos de Oliveira: "Não há machado que corte / a raiz ao pensamento."

Pequena história de Natal (19 Dezembro 2014), por Baptista Bastos


Clodomiro não escrevia à família as misérias por que passava. Deixou de escrever, sempre animado de que o futuro seria melhor. Andou de um país para o outro, em todos sofrendo a animosidade racista e xenófoba daqueles que o olhavam como um intruso.

(Longinquamente inspirado n'"O Suave Milagre", de Eça de Queiroz)

Clodomiro nasceu em São Nicolau, Cabo Verde, e veio para Portugal com 18 anos. Tinha uns parentes aproximados, que logo lhe arranjaram trabalho nas obras. Clodomiro vivia num quarto exíguo, num bairro a oeste da cidade, onde iam parar não só cabo-verdianos como aqueles que procuravam melhor sorte do que a que tinham nas terras natais. Era um indivíduo robusto, de alta estatura, que se impunha pela afabilidade do trato. Um dia, numa festa particular, na Amadora, conheceu Maribel, uma beleza invulgar, de olhos verdes e rosto estimulante, e logo se embeiçaram um pelo outro. Maribel nascera em Lisboa, mas toda a sua família era do Mindelo. Por vezes, nas noites claras, Clodomiro juntava-se a um grupo de amigos e, juntos, cantavam as belas canções de amor e saudade, bebendo cerveja e, ocasionalmente, quando o conseguiam, uns e outros de grogue.

Clodomiro tinha a moral proletária do trabalho, e uma satisfação enorme com crianças, tão grande que fez e criou, com Maribel, quatro filhos, três raparigas e um rapaz. O esforço desenvolvido para criar os miúdos foi indescritível. Maribel começou a trabalhar a dias, e envelhecia a olhos vistos; e a Clodomiro começaram a nascer cabelos brancos. Era preciso dinheiro para a comida, para as roupas e para as escolas. Maribel chegou a trabalhar em duas casas, e Clodomiro fazia uns biscates de sapateiro. Mas as coisas não corriam nada bem. Vida de pobre é discussão certa. Para não fugir à regra, as coisas azedaram-se no casal, e uma espécie de indiferença pesada e dramática substituiu o que fora uma esperança de felicidade.

Certa tarde, desesperado e triste, Clodomiro disse à mulher que ia procurar melhor vida na Holanda, onde habitava uma comunidade de cabo-verdianos, à qual se queria juntar. Lá foi. Trabalhou nas obras e na descarrega de carvão no porto de Antuérpia. As coisas deram para o pior, quando o patrão fugiu com o dinheiro dos empregados. Clodomiro não escrevia à família as misérias por que passava. Deixou de escrever, sempre animado de que o futuro seria melhor. Andou de um país para o outro, em todos sofrendo a animosidade racista e xenófoba daqueles que o olhavam como um intruso, ladrão do trabalho dos locais.

Maribel fazia os impossíveis para manter os filhos unidos, tarefa insana porque eles deixavam-se atrair palas facilidades do roubo, da droga e dos desvairos do momento. Sem nada saber do marido, impossibilitada pelas circunstâncias de suprir às necessidades do lar, era auxiliada por instituições de caridade, nem sempre muito amáveis porque a acusavam de ter quatro filhos sem trabalhar e sempre misturados com a vida airada.

Clodomiro, esse, tinha vergonha de confessar a Maribel o abismo do seu malogro. Pensou em ir para África, para o Brasil, até para a China, mas fazer o quê? A dor que o destroçava por não ver a mulher, e nada saber dos filhos, porque as coisas más eram-lhe ocultadas, quando tinha esparsas notícias dos seus e dos seus sítios, levavam-no, por vezes, ao álcool, ao desacato e, por duas vezes, à detenção em esquadras de polícia.

Maribel era uma velha sepultada na própria dor. Tanta e tão constante que até dela se esquecia. Quando lhe perguntavam pelo marido, inventava uma historieta, mas as evidências eram tão banais que as vizinhas riam-se-lhe nas costas.

Passaram mais anos. O filho homem fora parar à cadeia por roubo à mão armada, e tornara-se num indivíduo considerado perigoso. As filhas descambaram ainda mais e viviam do que acontecia, mas também haviam envelhecido muito. E ninguém as respeitava. Por três vezes, Maribel tentou o suicídio. Nem isso. Aproximava-se outro Natal, e a indiferença que ela manifestava por essa data constituía, afinal, um pequeno alívio. Neste, então, nem dinheiro tinha para comprar uns bolitos. Foi então que, pela tardinha, alguém tocou o batente da porta. Foi abrir. Na sua frente, um homem curvado, que não conseguiu sorrir. Um velho que vinha do fundo do tempo, para a desassossegar e inquietar. Clodomiro olhou-a e disse:

- Aqui estou.

Resistir como sempre fizemos (24 Dezembro 2014),por Baptista Bastos


Tudo correu pelo pior, no ano que vai embora. Estamos mais pequenos, mais pobres, mais desesperados e mais sem rumo. Endireitar o que estes senhores entortaram e amolgaram vai ser muito difícil.

O ano aproxima-se do fim e as coisas, para os portugueses, vão de mal a pior. A máquina de propaganda do Governo é o que há de mais enganador, e aquilo que chamava a "alma" popular foi sovada e tende a tombar na indiferença. Já não se pode ver o primeiro-ministro pela constância com que não larga as televisões, em especial a SIC, que parece ter tirado a assinatura do rosto acabrunhado e das banalidades que soletra. Aliás, as televisões pouco ou nada explicam, não cumprindo a vocação e a missão para que se criaram: ir mais ao fundo das questões, através de debates e de comentários realmente originais e estudados. O dr. Passos, há dias, disse que os banqueiros foram os mais sacrificados de todos nós. A pouca vergonha tornou-se instrumental e o ludíbrio intelectual e moral um caso de polícia de costumes.

Tudo indica que vamos sofrer abalões, mas nenhum dos partidos de Esquerda desce ao fundo dos problemas. Helena Garrido, neste jornal, tem advertido, com a prudência que a caracteriza e a reserva que a distingue, as ameaças que pairam nos nossos mais próximos horizontes. Devo dizer que, com Nicolau Santos e Pedro Santos Guerreiro, é um dos três comentadores que ouço, leio e aprecio, porque não impinge gato por lebre, recusa as grandes tiradas gestuais, como as faz o triste Costa Pinto ou o impante Ricardo Costa, que parece ninguém conseguir calar. O comentário português é uma "mixurufada" de vaidade, de incompetência e de ignorância da história. À carência de verticalidade, excede a pesporrência e a fatuidade.

Não digo uma anormalidade quando refiro a pobreza do jornalismo actual. Semelhante à pobreza como ideologia que Passos Coelho nos impôs devido à sua própria fragilidade política e intelectual. Um Presidente, um Governo e um Parlamento, a tese de Sá Carneiro, revelou-se um dos grandes pesadelos da nossa história, por constituir uma anomalia estrutural que conduz, inevitavelmente, ao autoritarismo e a uma mascarada da democracia. Está à vista.

Tudo correu pelo pior, no ano que vai embora. Estamos mais pequenos, mais pobres, mais desesperados e mais sem rumo. Endireitar o que estes senhores entortaram e amolgaram vai ser muito difícil. E quando certos sectores da sociedade portuguesa começam a falar em coligações entre o PS e o PSD, alguma coisa de tenebroso está em marcha. Não podemos permitir que isso, ou algo de semelhante, aconteça. Mas é lamentável que agrupamentos da "extrema-esquerda", ou assim disfarçados, tenham manifestado intenções de aprovar tal decisão.

Tudo parece diluir-se numa amálgama de interesses cavilosos, e o que era a dignidade e o carácter está a esboroar-se. A imprensa portuguesa deixou de o ser para se transformar numa massa apócrifa dominada por grupos económicos, inclusive estrangeiros, com "gestores" portugueses que mais não são do que factótuns invertebrados. Nos conselhos de administração, são colocados homens de mão, com larga experiência de saneamentos e de obediência ao dinheiro, e quem der mais é que é o patrão. A sociedade portuguesa está a ser dominada por esta gente, alguma da qual com relações familiares a altas figuras do Estado. A volta que as estruturas têm de levar é mesmo de alto a baixo. Minada e armadilhada como está a sociedade, as vozes livres são cada vez mais raras. O medo transformou-se num instrumento ideológico. Temos de resistir e de nos aguentar. Já passámos por pior. Ou não?

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Pensões de politicos duplicam aos 60 anos e são agora secretas?

MAN

Our Story In 2 Minutes

2 minutos (Uma rápida lição de História) Joe Bush, um jovem de 17 anos, recebeu um trabalho da escola para fazer um video.

Escolheu História, como tema, e inclui tudo em dois minutos.
Joe seleccionou fotos da Internet; acrescentou à trilha sonora“Mind Heis” de Zack Hemsey (do filme Interception) e fez isto.

BMW F30 3-Series Factory Production Tour (1080p HD, 15:00)

Pacheco Pereira - Especial Quadratura do Círculo (03 Dez 2014)

Como usar o instinto humano na manipulação de massas: A Experiência Milgram

BES As 63 perguntas que não podem ficar sem resposta


Durante os próximos meses, pelo menos 119 pessoas vão passar pela comissão parlamentar de inquérito ao BES. As audições arrancam esta segunda-feira e os primeiros a ser ouvidos serão o governador e o vice-governador do Banco de Portugal que tinha o pelouro da supervisão bancária. Ainda não há datas para as audições que se seguem. Sabe-se apenas que seguir-se-ão os responsáveis políticos e os representantes de instituições internacionais, só depois a família Espírito Santo e, no final, alguns dos funcionários do grupo. Na terça ainda havia deputados sem um único documento. O Grupo Espírito Santo (GES) era um mundo, as irregularidades sob suspeita são complexas e as dúvidas mais que muitas. Na impossibilidade de publicar as perguntas que devem ser feitas aos 119, o i escolheu 11 protagonistas e 63 perguntas essenciais para desvendar os segredos do GES Carlos Costa

Governador do Banco de Portugal

Pedro Duarte Neves
Vice-governador do BdP que tinha o pelouro da supervisão

Por que razão o supervisor alertou a 3 de Dezembro de 2013 para a insolvência da ESI e não intervencionou o BES logo nessa data?

Pedro Duarte Neves enviou a 3 de Dezembro de 2013 um plano exigente que dava 27 dias ao Grupo Espírito Santo (GES) para executar um plano de ring fencing e constituir uma conta bancária com o montante da dívida emitida pela ESI junto de clientes do banco. A 17 de Dezembro, Salgado falou numa reunião do Conselho Superior do GES em cedências e reduções. Como se explica isso?

Em vez de 27 dias, o GES teve seis ou sete meses para executar o plano de ring fencing? Por que razão o BdP alterou o plano inicial?

A 23 de Dezembro, oBdP impôs uma série de medidas ao BES que não foram cumpridas. Por que razão os portugueses só souberam depois da medida de resolução queo GES não tinha cumprido parte do plano que lhehavia sido imposto pelo supervisor?

Como se justifica que,tendo indícios fortes de manipulação de contas,só em Junho o BdPtenha decidido afastar a administração de Salgado?

• Como é que o senhor governador veio dizer que a ESI não estava debaixo da supervisão do BdP quando é sabido que interveio logo a 3 de Dezembro para tentar que o BES não fosse afectado pelo descontrolo das contas da holding?

• O BdP cedeu ou não cedeu ao pedido de mais tempo feito por Ricardo Salgado em Dezembro de 2013?

• A Direcção-Geral de Concorrência Europeia reporta a 30 de Julho a informação oficial de que ia ser necessária a intervenção no banco. Quando é que o BdP decidiu avançar para a medida de resolução?

• Por que razão Pedro Duarte Neves foi afastado do pelouro da supervisão?

• Se faltavam meios legais ao BdP, como é que substituiu Salgado por Vítor Bento no espaço de um fim-de-semana?

• Como é que, sabendo da dívida da ESI e do seu buraco, e sabendo que a equipa de Ricardo Salgado não estava a cumprir o plano, o BDP foi passandoa mensagem a clientes e accionistas do BES de queo banco estava sólido?

• Como é que, estando o supervisor a acompanharde perto o BES desde Dezembro de 2013, foi apanhado de surpresapelos actos praticados pela administração do BES nos dias anteriores à intervenção?

• Como se justifica queo BdP tenha escolhido para número 2 da administração de Vítor Bento José Honório, que tinha estadoa trabalhar para o BES como seu senior adviser?O BdP pode garantir que Honório está isento de responsabilidades na gestão do BES?

Carlos Tavares
Presidente da CMVM

• Em que condições autorizou o aumento de capital no BES?

• Que informações tinha a CMVM recebido do Banco de Portugal? Que informações não tinha e deveria ter tido?

• A CMVM foi pressionadapara aprovar o prospecto do aumento de capital? Se sim, por quem?

Ricardo Salgado
Ex-líder do BES

•Conseguiu ou não negociar mais tempo com o Banco de Portugal para executar o plano de ring fencing?

• Sentiu-se empurrado parao abismo com as medidas impostas pelo supervisor?

• Por que razão afirmou no final de 2013, numa reunião do Conselho Superior do GES, que o fundo de recapitalização para a banca poderia não ser suficiente para salvar o banco?

• Em que momento o BES começou a usar a Eurofin e para que fins?

• Para onde foram os milhões que saíram do BES nas últimas semanas da anterior gestão e que passaram por quatro sociedades off-shore?

• Falou ou não falou com Durão Barroso depois de essa proposta lhe ter sido feita por José Honório?

• Com que responsáveis políticos falou para tentar salvar o GES?

• Confirma que falou com Pedro Passos Coelho sobre a necessidade de um empréstimo da CGD eque este foi recusado?

• Tinha ou não tinha conhecimento de que as contas da ESI não eram as verdadeiras pelo menos desde 2008?

• Se não tinha, por que razão pediu no início do ano a elementos da família que protegessem o contabilista? Um banqueiro protege quem o trai?

• Por que razão em documentos entregues ao BdP Machado da Cruz afirmou que Ricardo Salgado, Manuel Fernando Espírito Santo e José Castella tinham conhecimento de que as contas não eram as verdadeiras?

• Forçou o comissaire aux comptes a assumir responsabilidades pelo buraco das contas e a demitir-se, como sugeriram elementos da família Espírito Santo em reuniões do Conselho Superior do GES?

• Por que razão, depois de ter pedido à família que protegesse o contabilista, se recusou a dar-lhe uma indemnização?

• Há alguma razão que justifique a emissão deduas cartas-conforto a investidores venezuelanos violando as determinações do BdP?

• Em que contexto cinco elementos da família Espírito Santo receberam5 milhões de euros de comissões no negócio dos submarinos?

• Como justifica que os principais representantes dos Espírito Santo tenham assinado uma carta em 2013 para justificar um acto de gestão de 2004?

• Além dos Espírito Santo, que outras pessoas receberam parte da comissão paga à Escom pelo consórcio alemão?

José Maria Ricciardi
Presidente do BESI

•A 11 de Novembro de 2013 ameaçou, numa reunião do Conselho Superior do GES, revelar publicamente as razões por que não tinha dado um voto de confiança a Ricardo Salgado. Que razões eram essas?

• Em que momento entrou em ruptura com Ricardo Salgado e porquê?

• De que irregularidades teve conhecimento e em que momento?

• A 24 de Julho disse, numa reunião do Conselho Superior do GES, que o Departamento Financeiro de Mercados e Estudos do BES tinha cometido “uma fraude” através do esquema da Eurofin. Que informações tem sobre o esquema e quem esteve envolvido?

• Que dados tem sobre a comissão paga a elementos da família Espírito Santo no âmbito do negócio dos submarinos?

Maria Luís Albuquerque
Ministra das Finanças

• Que informações foi tendo do Banco de Portugal ao longo de 2014 sobre a situação financeira do Grupo Espírito Santo?

• O que a levou a dizer em Julho que o BES era um banco sólido?

• Por que razão afastou a ideia de intervencionar o BES numa altura em que o BdP já sabia que o plano de ring fencingnão estava a ser cumprido, que as dívidas de algumas holdings do GES eram enormes e que havia indícios de manipulação das contasdo grupo?

• Por que razão recusouo pedido feito por cinco banqueiros na última semana de Julho de injectar dinheiro da linha da troika no BES?

• A medida de resolução trará ou não encargos para os contribuintes?

Carlos Moedas
Ex-secretário de Estado adjunto de Passos

• O que disse a Ricardo Salgado depois de ser contactado a 2 de Junho para ajudar o grupo?

• Teve ou não contactos com o ministro da Justiça do Luxemburgo?

• Alguma vez falou pessoalmente com Ricardo Salgado sobre planos para salvar o GES?

Pedro Queiroz Pereira
Presidente da Semapa

• Os documentos que entregou no Banco de Portugal apontavam para que tipo de irregularidades no GES?

• Tinha conhecimento de que a sua irmã Maude Queiroz Pereira tinha recebido um bónus de 5 milhões de euros do GES para vender a participação na Semapa?

José Honório

Ex-número dois da equipa de Vítor Bento

• Interveio junto de Durão Barroso para salvar o GES?

• Quando foi chamado a integrar a equipa de Vítor Bento, o BdP sabia que tinha trabalhado directamente com Salgado delineando um plano de salvação para o grupo?

• Essa situação permitia-lhe ser isento na nova administração?

• Quem pode ser responsabilizado pelo colapso do GES?

Amílcar Morais Pires
Ex-administrador financeiro do BES

• É apontado como um dos principais responsáveis pelo alegado esquema fraudulento com a Eurofin. Como funcionava, quando começou a ser usado e quem tinha conhecimento de que o mesmo existia?

• Qual o destino dos milhões retirados ao BES nas últimas semanas de Julhoe que terão passado por quatro sociedades offshore?

Francisco Machado da Cruz
Ex-contabilista da Espírito Santo International (ESI)

Foi forçado a assumir responsabilidades sobre o buraco das contas da ESI?

• Desde quando os relatórios não reflectiam as contas verdadeiras e quem é que sabia que não eram as correctas?

• Teve ordens para manipular as contas?

• Apresentou a demissão de sua livre vontade?

• Ricardo Salgado nomeou-o para algum outro cargo depois de ter apresentadoa demissão da ESI?

• Além das contas da ESI, tem conhecimento de manipulação de contas de outras holdings ou do próprio banco?

• Por que razão pediu uma indemnização ao Grupo Espírito Santo?

• Tem conhecimento de esquemas fraudulentos em Miami?

• De que maneira o banco contornou as determinações do BdP e continuou a emitir dívida do grupo junto de clientes do BES?

Experiência da Obediência de Stanley Milgram

A Cadeia de Obediência

DESIGUALDADES LEGAIS NO CAVAQUISTÃO


A Assembleia da República exigiu a devolução de quase um terço da subvenção estatal que tinha atribuído à candidatura presidencial de Cavaco Silva sem ter "base legal" para o fazer, sustenta a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP).

O relatório da auditoria efetcuada pela ECFP às contas da campanha das presidenciais de 2011 revela que a Assembleia da República pagou um total de 452.872 euros a Cavaco Silva em Fevereiro de 2011 e mandou devolver, em Julho, 158.424 mil euros. "Não tem a Assembleia da República base legal para mandar proceder à devolução da subvenção a que a candidatura tinha direito de acordo com os resultados eleitorais", defende a entidade presidida por Margarida Salema, no relatório da auditoria às contas da campanha presidencial de Aníbal Cavaco Silva, divulgado no final de Novembro no `site´ do TC. As contas indicam que a candidatura de Cavaco Silva, a única que teve que devolver dinheiro ao Estado, apurou uma receita total de 1.791.576 euros e uma despesa do mesmo montante, obtendo um resultado nulo com a campanha. O financiamento das despesas foi assegurado através de subvenção estatal em 294.448 euros, correspondente a 16% das despesas, e através de donativos de 1.497.128 euros, correspondente a 84%. No relatório, a ECFP presume que a AR tenha concluído pela devolução daquele montante "pelo facto de a despesa efectivamente realizada se encontrar coberta por receitas próprias em 1.497.128 euros, correspondentes ao montante dos donativos recebidos, numa interpretação que não tem base legal". Questionada no passado dia 10 pela Agência Lusa sobre as afirmações feitas pela ECFP no relatório da auditoria à campanha de Cavaco Silva, o gabinete do secretário-geral da Assembleia da República não respondeu até ao momento. A candidatura de Cavaco Silva ficou, em resultado da interpretação feita pela AR, numa situação de "clara desigualdade em relação às restantes candidaturas que, com resultados eleitorais inferiores e que com muito reduzidas receitas de angariação de fundos e donativos obtiveram uma muito maior subvenção estatal", lê-se, no relatório da Entidade. É que a lei do financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais estipula que 20 por cento da subvenção é distribuído por igual entre as candidaturas presidenciais e os restantes 80 por cento "em função dos resultados eleitorais". No acórdão 744/2014, que julgou as contas das presidenciais de 2011, o Tribunal Constitucional optou por não se pronunciar sobre esta divergência entre a AR e a ECFP, afirmando que a questão levantada pela Entidade "é alheia" aos autos e extravasa o âmbito da apreciação da regularidade ou legalidade das contas da campanha. No entanto, observou que a interpretação da lei que a Assembleia da República assumiu "pode ter influência no valor das subvenções pagas". A ECFP considera no relatório que as contas feitas pela AR só podem ser entendidas se os serviços da Assembleia tiverem interpretado os n.º 4 e 5.º do artigo 18.º da lei do Financiamento dos Partidos e das Campanhas Eleitorais tal como foram aprovados originalmente 2003. Aquele artigo estabelecia então que a subvenção não pode ultrapassar o valor das despesas orçamentadas e efectivamente realizadas, "deduzido do montante contabilizado como proveniente de acções de angariação de fundos´". Ou seja, anteriormente abatia-se ao valor da subvenção o valor do montante de angariação de fundos e só se pagava o que faltasse para cobrir as despesas realizadas. Foi o que aconteceu nas contas da campanha de Cavaco Silva, que tinha direito a uma subvenção de 452.872 euros. Com uma despesa total de 1.791.576 euros e donativos declarados de 1.497.128 euros, a AR decidiu entregar apenas o montante para cobrir o que faltava das despesas, ou seja, 294.448 euros. Contudo, sublinha a ECFP, este artigo foi alterado com a lei 55/2010 que se aplicou já nas presidenciais de 2011. Na opinião da ECFP, as duas alterações introduzidas ao artigo 18.º mudaram o sentido da lei, limitando-se agora o artigo a referir que a subvenção pública "não pode, em qualquer caso, ultrapassar o valor das despesas efectivamente realizadas". Por outro lado, o novo número 5 do artigo 18.º da lei diz que "o eventual excedente proveniente de acções de angariação de fundos, relativamente às despesas efectivamente realizadas, reverte para o Estado". Mas esta hipótese, colocada pela alteração aprovada em 2010, "nunca se configurou até hoje", ressalta a ECFP, classificando até como "bizarra" a formulação que ficou plasmada na lei.