domingo, 18 de dezembro de 2022

Os objectos da memória

 


JOSÉ PACHECO PEREIRA 23/01/2016

Uma interessante iniciativa do de Londres é aquilo a que chama “rapid response collection”, uma colecção de objectos triviais, mas que se associam a determinados eventos. Os objectos são mesmo triviais e não é o seu design, nem sequer o seu papel na história do consumo, nem do quotidiano, que os faz ir para o museu. Não são uma cadeira da Bauhaus, mesmo que nós não a reconheçamos como tal, nem o zip que fecha um blusão, nem um Big Mac de plástico, nem um isqueiro Zippo. São outro tipo de objectos que fizeram parte de um evento histórico ou simbólico qualquer, que torna a sua trivialidade especial, porque a história os tocou. A exposição num museu de “artes decorativas” passa a ter uma ala que está em permanente mudança, porque a história está permanentemente a “tocar” diferentes objectos.

Na colecção estão vários objectos como uma pistola feita numa impressora 3D, um computador destruído, um brinquedo do Ikea, uma série intitulada Les Nudes de sapatos de Christian Louboutin, uns jeans anódinos da Primark, um conjunto de pequenos cones de aço incrustados numa placa, por aí adiante. No entanto nenhum destes objectos é “inocente”. A pistola cujo modelo se chama FP-45 Liberator, podia fazer-se em casa a partir de planos que estiveram na Internet (foram descarregados 100.000 vezes) e que foram apreendidos a pedido do Departamento de Estado e, como se passa com muita coisa da Rede, continuam lá. Os jeans foram feitos numa fábrica do Bangladesh que funcionava num edifício que colapsou matando mais de 1000 pessoas. A história dos Louboutin é a que menos me interessa, mas os restos do computador esses vieram do Guardian, quando a polícia obrigou o jornal a destruir à martelada os computadores onde estavam os ficheiros com os documentos que Edward Snowden tinha trazido das agências de espionagem electrónica, revelando a amplitude das escutas mundiais que os EUA e o Reino Unido faziam. O jornal informou as autoridades de que não havia razão nenhuma para destruir os computadores, dado que os ficheiros estavam copiados em sítio seguro mas, mesmo assim, o acto teve que se realizar, como se uma martelada num disco duro e num teclado punisse um qualquer génio do mal que estivesse lá dentro. Os cones de aço são nem mais nem menos de que uma espécie de “anti-cama” para evitar que um sem-abrigo durma no espaço que eles demarcam no chão. O brinquedo do Ikea, um lobo chamado Lufsig, foi atirado num protesto a Leung Chun-ying, um político de Hong Kong. Logo a seguir os Lufsig esgotaram na cidade.

A “rapid response collection” interessa-me porque no meu trabalho de colector-recolector também tenho tentado obter alguns objectos deste tipo, quase sempre com sucesso visto que ninguém liga em Portugal a este tipo de “memória”. Mesmo nos objectos mais evidentes, em que a história “tocou” sem ou com pouca imaginação, - a escolha dos objectos do Museu Victoria e Alberto mostra um trabalho aturado de escolha e criatividade, - todos ficam ignorados e muitos desapareceram de vez na máquina trituradora do esquecimento, que em Portugal trabalha a pleno vapor. As actividades políticas são tão estereotipadas que não deixam nada que mereça ser lembrado, mas na vida cívica mais geral há vários objectos que podiam estar numa “rapid response collection” portuguesa. Falarei de alguns que, pelo menos eu guardei.

Já que não posso ter um contentor dos retornados, um dos objectos que marca a história da descolonização, com o nome, pintado em letras enormes, dos possuidores dos escassos bens que uma família portuguesa pode salvar de Angola, tenho uma genuína valise en carton. A humilde mala, imortalizada por Linda de Suza, simbolizou a saga dos emigrantes nos anos sessenta, na qual viajavam, muitas vezes à cabeça, os pouco pertences que se levavam para França. A que tenho na minha “rapid response collection” foi para lá levada por um emigrante e regressou cheia de recortes sobre a emigração, adquirida por José Carlos Ferreira de Almeida (1934-2009), um dos fundadores da moderna sociologia em Portugal e autor de vários estudos sobre a emigração, cujo espólio adquiri.

De antes do 25 de Abril, há um copiógrafo Gestetner, um conjunto de fitas de máquina e papéis químicos usados numa tipografia clandestina e que se destinavam a ser queimados. Era o tipo de objectos que não se podia deitar fora, visto que no papel químico de tirar cópias, mesmo que usado muitas vezes, ficavam partes do texto e nas fitas, a preto e vermelho, a mesma coisa. Há também um granada de gás lacrimogéneo, de origem americana, usada pela polícia numa manifestação, obviamente vazia. Foi apanhada para devolver à procedência, quando ainda fumegava, mas foram salvos, a granada e o alvo, pelas inscrições reveladoras da cumplicidade da polícia de cá com o “imperialismo americano”. Podia ser mais útil nessa denúncia, e acabou por não ser útil para nada, a não ser para a “rapid response collection”.

Outro objecto é um vulgar prego, daqueles com que antigamente se jogava na praia. Na verdade, podia ser um prego qualquer e nada atesta que também ele tenha sido “tocado” pela história, mas foi. No referendo sobre a independência em Timor em 1999, os timorenses que tinham uma elevada taxa de analfabetismo, não votavam preenchendo uma cruz, mas furando no sítio da cruz com o sim ou o não o boletim de voto. Faziam-no com um prego que estava preso nas cabines de voto, como hoje está uma esferográfica. Estive em Timor nesse dia e visitei várias mesas de voto, e, quando a votação terminou, guardei um desses pregos, instrumento de uma decisão histórica que deu ao mundo mais um país independente.

Destes tempos da “crise”, cuja memória tem sido tão descuidada, existem vários objectos que podiam fazer parte de uma “rapid response collection”, a começar por vários cartazes espontâneos, feitos em cartolina, onde um qualquer cidadão anónimo escreveu o seu protesto, muitas vezes com erros de ortografia e frases incompreensíveis, e que foram recolhidos do lixo depois das manifestações. Ou as ementas para os que “estavam fartos de coelho” de um restaurante de Lisboa, ou, por fim, um Zé Povinho, fazendo um manguito nem mais nem menos do que à agência de notação Moody’s.

A perda de materialidade da actividade política e cívica, um dos aspectos da nossa memória colectiva, faz com que no futuro não se possa “expor” mais do que páginas na Internet, o que, convenhamos, perde muito de força quando comparados com o terrível Lufsig do Ikea ou a “valise” cantada pela Linda de Suza. A deslocação da memória para dentro dos computadores, tablets e telefones, é inevitável e, em teoria, mais segura de conservar. Em teoria. Mas a perda de materialidade e do espaço físico, acaba por acelerar a destruição do rastro, apesar de tudo mais decisivo porque real e não virtual, da nossa memória. As calças Primark estão lá para recordar que o prédio que se abateu sobre a sweatshop era feito de cimento real e não virtual. Do mesmo modo, uma antiga máquina de escrever e um copiógrafo dizem que era tão difícil escrever um texto e reproduzi-lo e hoje é fácil fazer uma pistola Liberator. A memória, para ser real, precisa de objectos porque o tempo incorpora-se nos objectos de uma forma que contém as imperfeições. E a história gosta de imperfeições.

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