Muammar Khadafi: O fim do coronel
Margarida Santos Lopes 20 de Outubro de 2011Em 2009, seis dias de extravagantes festividades, que incluíam um "show de mil camelos e 40 balões de ar quente", assinalaram quatro décadas de poder de Muammar Khadafi e a transformação da Líbia de pária em parceiro de europeus e americanos.
Na altura, a analista Molly Tarhuni, do Royal Institute of International Affairs (Chatham House), em Londres, descrevia as cerimónias como “um ponto de viragem", ou “a prova de que Khadafi é um sobrevivente e que muitos o subestimaram”. Ele pode ser um excêntrico, salientava Tarhuni, numa entrevista ao PÚBLICO, por telefone, mas o Ocidente precisa dele. “Porque a Líbia possui reservas confirmadas de petróleo que ascendem a 41,5 mil milhões de barris e de gás natural num total de 1490 biliões de metros cúbicos de gás natural entre as dez maiores do mundo. A sua importância económica, política e de segurança não se alterou em 40 anos.”
Foi, pois, um Ocidente embaraçado que primeiro assistiu e depois protestou contra a sanguinária repressão de milhares de manifestantes que, na sequência das revoluções contra Ben Ali, na Tunísia, e de Hosni Mubarak, no Egipto, se viraram contra o seu tirano. Quando o balanço de mortos já ultrapassava os 200, segundo a organização de direitos humanos Human Rights Watch, o filho favorito do líder, Saif al-Islam (Espada do Islão) Khadafi, foi à televisão prometer concessões, alertar para o risco de uma guerra civil, mas também deixar uma ameaça: o seu pai resistiria “até à última bala”. Observou um comentador citado pela Al-Jazira: “Khadafi mata ou morre”.
Foi a 1 de Setembro de 1969 que Khadafi, um capitão do Exército de 27 anos, tratado pelos amigos como al-jamil (o bonitão), derrubou a monarquia e instituiu uma “jamahiriya” (Estado de massas) um dos seus muitos neologismos. O rei Idris al-Sanussi estava em tratamento na Turquia e não regressou. O príncipe herdeiro, o sobrinho Hassan, foi obrigado a abdicar.
No dia 8, o chefe do novo governo era Sulayman al-Maghribi, um dos oficiais golpistas, mas, no dia 13, Khadafi, formado numa academia militar britânica, já era o "Líder Irmão" e "Guia da Revolução", os únicos títulos que reteve, a par da patente de coronel (recusou ser promovido a general).
A "revolução socialista", sem sangue, foi apresentada por Khadafi como reacção contra a corrupção da dinastia Sanussi e a sua "subserviência aos imperialistas" desde a independência, em 1951. Uma das primeiras decisões que tomou foi ordenar o encerramento das bases do Reino Unido e dos EUA, e a retirada das tropas. Seguiram-se expropriações e nacionalizações de outros interesses estrangeiros.
Como uma nova doutrina a que chamou "Terceira Teoria Internacional", nem capitalismo nem comunismo, Khadafi tentou mobilizar os árabes para o sonho de uma união, sob a liderança do seu ídolo, o egípcio Gamal Abdel Nasser. Os árabes viam nele "um louco" e recusaram segui-lo.
Desiludido, trocou o pan-arabismo pelo pan-islamismo, competindo com os sauditas pela influência muçulmana em África. Tinha muito dinheiro para gastar, e não só em mesquitas.
Também foi banqueiro da Organização de Libertação da Palestina (OLP) e da Frente Polisário; do IRA e de grupos rebeldes da Libéria e Serra Leoa; de Carlos, O Chacal, e de Abu Nidal.
Berlim, Lockerbie, Al-Qaeda
Os anos 1980 ficaram marcados por dois brutais atentados: em 1986, na discoteca La Belle, em Berlim (três mortos e 200 feridos, alguns soldados americanos); em 1988, na cidade escocesa de Lockerbie (270 mortos na explosão de um avião da Pan Am). Ronald Reagan amaldiçoou o "Mad Dog do Médio Oriente" e ripostou, mandando bombardear Trípoli e Benghazi. Morreram 60 militares e civis, incluindo a filha adoptiva de Khadafi.
No final dos anos 1990, submetido a quase uma década de sanções internacionais e enfrentando uma oposição islamista, o beduíno que corre o mundo na sua tenda mudou de rumo. Em 1998, foi o primeiro a pedir um mandado de captura para Bin Laden. Bill Clinton ignorou a sua proposta de cooperação, mas George W. Bush não lhe virou as costas. A 12 de Setembro de 2001, um dia depois dos ataques da Al-Qaeda, o então chefe dos serviços secretos líbios, Musa Kusa, contactou a CIA e disse-lhes: "Esta é a nossa lista de suspeitos." Em troca, teve autorização para os seus agentes interrogarem presos líbios em Guantánamo.
É claro que antes, em 1998, Khadafi já havia concordado em entregar os dois suspeitos de Lockerbie para serem julgados, e aceitara "responsabilidade" (mas não culpa) pelo ataque. Pagou 2,7 mil milhões de dólares em indemnizações às famílias das vítimas. No ano seguinte, após a suspensão das sanções, os investimentos estrangeiros na Líbia atingiram os 8000 milhões de dólares.
A 20 de Agosto, Khadafi conseguiu a libertação do único condenado, Abdel Basset al-Megrahi, supostamente, membro da sua tribo. Os britânicos invocaram "razões humanitárias" para Megrahi não cumprir 27 anos de uma pena perpétua sofre de cancro e tem "menos de três meses de vida", mas especula-se que foi trocado por lucrativos acordos comerciais com o mais próspero país do Norte de África.
A reabilitação
Em 2003, o imprevisível Khadafi tomou a mais inesperada das decisões: anunciou o fim do programa de armas químicas e nucleares. Seguiram-se cimeiras com Tony Blair (e um contrato com a British Petroleum/BP no valor de 90 milhões de dólares); com Nicolas Sarkozy (que assegurou acordos de 10 mil milhões, a maioria no sector da defesa); e com Silvio Berlusconi (que garantiu negócios de 5000 milhões e o controlo da imigração clandestina, após ter pedido perdão pelo período colonial italiano).
A Líbia atrai os europeus porque o custo de transportar o seu petróleo, pelo Mediterrâneo, é inferior ao dos países produtores do Golfo Pérsico. Os líbios, por seu turno, a dar os primeiros passos para uma economia de mercado (reduziram subsídios, privatizaram mais de cem empresas desde 2003 e pediram adesão à Organização Mundial do Comércio/OMC), estão sedentos de capitais para modernizar as suas obsoletas infra-estruturas e fazer face a um elevado desemprego.
Khadafi estava a colher os frutos de ter mudado de campo. "Hoje, a Líbia é membro não-permanente do Conselho de Segurança da ONU [dois anos de mandato iniciado em Janeiro], fez parte do conselho de governadores da Agência Internacional de Energia Atómica, participou na cimeira do G8 como presidente da União Africana, e vai ascender [em Setembro] à presidência da Assembleia Geral das Nações Unidas", notou Molly Tarhuni na entrevista ao PÚBLICO.
Ter chegado aqui foi mérito do coronel que tomava “todas as decisões, e tinha “a última palavra", acrescentou a analista. A grande questão que Tarhuni colocava não era se ele seria alguma vez derrubado – algo que ela considerava “muito improvável” num país com menos de seis milhões de habitantes, politicamente pouco activos e sob controlo rígido das forças de segurança – mas “o que vai acontecer quando ele sair de cena."
Khadafi não tinha um herdeiro designado, embora dois dos seus oito filhos estivessem, aparentemente, a preparar-se para lhe suceder.
Um era Seif al-Islam (cuja captura ou morte foi noticiada esta quinta-feira mas está ainda por confirmar), director de uma fundação de "caridade" internacional, que ajudou a negociar as indemnizações de Lockerbie e a libertação de cinco enfermeiras búlgaras e um médico palestiniano, condenados sob a acusação de terem "deliberadamente infectado" doentes de um hospital com o vírus da sida. Outro era Mutassim Billah, morto no mesmo ataque que o pai.
Mutassim tentou derrubar o pai num golpe militar mas escapou ao destino que tem sido reservado aos dissidentes (executados por esquadrões da morte). Foi perdoado, regressou de um esconderijo no Egipto e é agora o principal conselheiro de segurança nacional. Seif, Mutassim e os restantes irmãos estiveram entre os milhares convidados a assistir às festas em honra do filho de camponeses que, em 1969, destronou o rei Idris para, em 2009, se coroar a ele próprio "rei dos reis de África".
Na cidade natal de Khadafi não há muita esperança no futuro da Líbia
Em Sirte, muitos olham para a revolta de 2011 como uma conspiração estrangeira para destruir o país e têm saudades dos tempos mais calmos em que o ditador gastava muito dinheiro na cidade.
Angus McDowall, Ahmed Elumami e Ayman al-Warfali 26 de Junho de 2022
As pessoas que vivem nas ruínas da zona central 600 Block de Sirte esperam há anos por ajuda para remover destroços e reconstruir casas danificadas pela guerra, mas apesar de um novo governo fazer da cidade a sua sede, têm pouca esperança de que algo venha a mudar.
Vivem em apartamentos onde buracos de balas deixam entrar o frio do Inverno e o calor do Verão, em edifícios com buracos feitos por disparos de artilharia, que os fazem parecer estruturalmente pouco seguros.
“Cada governo aparece, tira fotografias dos danos, e não faz nada por nós”, disse Badr Omar, professor de inglês que vive em duas assoalhadas atrás de blocos de cimento sem revestimento – a parte da frente da casa ainda está destruída depois de ter sido atingida por um rocket.
As dificuldades de Omar numa cidade que tem sido governada por quase todas as facções poderosas da Líbia, uma após a outra, mostram como os executivos do país rico em petróleo têm estado menos concentrados em governar do que em lutar ou explorar recursos do Estado.
Este mês, quando o mais recente impasse político se intensificava, um dos dois governos rivais da Líbia instalou o seu quartel-general em Sirte, uma cidade costeira do centro do país onde a linha da frente se cristalizou depois do último grande conflito ter ficado suspenso, em 2020.
O facto de lá ter sido estabelecido o governo de Fathi Bashagha, nomeado pelo Parlamento, que é sobretudo apoiado pelas facções do Leste do país, traz um novo papel à cidade que sofreu algumas das reviravoltas mais negras da turbulenta história recente da Líbia.
O filho mais destacado de Sirte, o antigo ditador Muammar Khadafi, foi morto na cidade depois de ter fugido de Trípoli durante uma revolta apoiada pela NATO em 2011, que derrubou o seu regime e abriu caminho a anos de violência.
A conduta de esgoto onde revolucionários o encontraram, espancaram e depois mataram a tiro, perto do hotel em que Bashagha fica, foi bloqueado com entulho para desencorajar visitas de muitos dos partidários de Khadafi em Sirte, e agora está coberto de lixo e ervas daninhas.
Revolução, jihadistas, guerra
Bashagha está em Sirte porque o outro primeiro-ministro da Líbia, Abdul Hamid Dbeibé, que foi nomeado no ano passado através de um processo apoiado pela ONU, rejeitou as acções do Parlamento e recusa-se a ceder o cargo.
Incapaz de assumir o poder a capital, o governo de Bashagha instalou-se no complexo do Centro de Conferências de Ouagadougou em Sirte, onde decorreu a cimeira da União Africana de 1999.
Sobre a entrada, letras douradas proclamam que ali é a sede do governo, mas as laterais do edifício já não têm janelas e há enormes buracos nas estruturas.
Quando o Daesh tomou Sirte em 2015, os seus combatentes também fizeram ali a sua sede, hasteando a bandeira negra no topo da abóbada do edifício principal, até que foram derrotados, no ano seguinte.
O bairro onde Omar vive foi construído originalmente como alojamento para convidados da cimeira, que trouxe líderes de todo o continente e marcou um ponto alto, breve, na história da cidade.
Ficou danificado primeiro em 2011, e depois em 2016, na luta para afastar o Daesh, ficando então sob alçada do governo de Trípoli.
Depois, no início de 2020, o Exército Nacional Líbio, de Khalifa Haftar, conquistou Sirte numa ofensiva alargada cujo colapso, meses mais tarde, levou a um processo de paz que está agora sob intensa pressão.
Disparos
Um membro do parlamento com sede no Leste, Zaid Hadiya, disse que o governo de Bashagha representa a reconciliação nacional porque este tinha antes ajudado a liderar a resistência ao ataque de Haftar a Trípoli.
Mas enquanto um enorme cartaz com Haftar estava pendurado na parede, no gabinete do presidente da câmara de Sirte não havia imagens visíveis de Bashagha.
Entrevistado pela Reuters, Bashagha disse que estava a procurar financiamento para trabalhos de reconstrução em Sirte, mas que não tinha ainda conseguido ter acesso a verbas do Estado.
No bairro de Omar, outro residente, Abdulkarim al-Shahomi, 57 anos, tinha pouca esperança de que as mais recentes manobras políticas pudessem melhorar a sua vida.
“O Governo é como uma bola de futebol, a ser passada por cada lado conforme os seus próprios interesses. Vai ser agora que as coisas vão mudar? Não, não vai haver mudanças”.
Como todas as pessoas com quem a Reuters falou em Sirte, ele viu a revolta de 2011 como um complot estrangeiro para destruir a Líbia e expressou saudades dos tempos mais calmos em que Khadafi gastava muito dinheiro na cidade.
Antes de falar, ouviu-se um som de tiros, alguém a mostrar uma arma ou a celebrar, não a lutar – e Shahomi disse estar farto da presença de armas em todo o lado.
A escola em que Omar ensinava, e onde os nove filhos de Shahomi andaram, está em ruínas. Têm de andar quilómetros para chegar a outra.
O supermercado subsidiado onde Shahomi costumava fazer as compras fechou depois da resolução, como outros por toda a Líbia. Ainda está de pé, vazio, perto da rotunda em que o Daesh chegou a levar a cabo execuções públicas.
Em frente ao mar, a loja de pequenos electrodomésticos de Mohammed al-Gallai está virada para um Mediterrâneo cintilante. Mas o telhado está meio caído e apenas se pode usar o rés-do-chão.
“Quando há guerra, ela acontece em Sirte”, disse, preocupado com a possibilidade de uma escalada no impasse entre Bashagha e Dbeibé. “Não há nada na Líbia que me faça ser optimista.”
Reuters
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