segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Naguib Mahfouz, a crónica íntima do Cairo onde nada é fútil

 

Naguib Mahfouz

O escritor Naguib Mahfouz nasceu há 110 anos, mas não é esse o pretexto para reeditar em Portugal o primeiro volume da Trilogia do Cairo, a obra maior do único árabe a ganhar o Nobel da Literatura. O motivo é estar esgotado há muito. Agora já temos Entre os Dois Palácios, um fresco sobre a intimidade de um mundo que ajuda a entender as tensões que o têm aprisionado. Imperdível.

Isabel Lucas 18 de Setembro de 2021

Talvez os intelectuais da minha geração tenham sido os últimos a acreditar realmente na democracia.” Estas palavras do egípcio Naguib Mahfouz, Nobel da Literatura em 1988, foram ditas um ano depois, quando a sua obra maior, a Trilogia do Cairo, conheceu finalmente tradução para inglês dando a conhecer ao Ocidente uma primorosa narrativa sobre o Egipto, um épico então comparado pela complexidade e riqueza estilística a romances como Guerra e Paz, centrado no quotidiano familiar, reconstituindo a vida de bairro na grande cidade para sublinhar os efeitos das ondulações políticas e sociais na teia intricada de vínculos que compõem uma sociedade então a querer libertar-se do domínio inglês. A obra viveu mais de trinta anos inacessível ao mundo ocidente que só a descobriu depois do Nobel que mudou para sempre a vida de Naguib Mahfouz. Passou de um dos segredos mais bem guardados da literatura árabe, para se tornar num escritor universal, um modernista num Egipto que hesitava violentamente entre a abertura e a ortodoxia.

Em 1988, quando o representante da Academia Nobel anunciou que o vencedor desse ano seria o egípcio Naguib Mahfouz seguiram-se alguns minutos de silêncio. Poucas pessoas, no mundo ocidental, reconheciam aquele nome. Para tentar justificar a decisão da Academia Nobel, o famoso orientalista Edward​ Said escreveu então nas páginas da London Review of Books que Naguib​ Mahfouz era o maior romancista árabe vivo, e deixava uma nota importante: “Não devemos esquecer (...) que o romance, tal como é conhecido no Ocidente, é uma forma relativamente nova na rica tradição literária árabe. E juntamente com isso devemos ter em mente que o romance árabe é uma forma empenhada, envolvida através dos seus leitores e autores nas grandes convulsões sociais e históricas do nosso século, partilhando os seus triunfos, bem como os seus fracassos”. E mais precisamente sobre Mahfouz, “o seu trabalho desde o final dos anos trinta (...) comprime a história do romance europeu num espaço de tempo relativamente curto. Ele não é apenas um Hugo e um Dickens, mas também um Galsworthy, um Mann, um Zola e um Jules Romains.”

O silêncio de Estocolmo chegou aos ouvidos de Naguib Mahfouz. O escritor não foi à Suécia receber o prémio. Alegou que estava pouco habituado a sair do seu país, pareceu-lhe uma viagem demasiado longa, mas enviou um discurso e as duas filhas para o representarem. Começou por dizer que o prémio era sobretudo para a língua árabe e, lembrando o tal mutismo suscitado pelo anúncio, pediu licença para se apresentar. “Sou o filho de duas civilizações que, num certo momento da história, formaram um casamento feliz. A primeira, com sete mil anos, é a civilização faraónica; a segunda, com mil e quatrocentos anos, é a islâmica.” Mahfouz tinha 77 anos e grande parte da sua obra, onde constam 35 romances, 350 contos, 25 guiões para filmes, centenas de crónicas e ensaios, estava escrita. Quando morreu, em 2006, com 94 anos, correu mundo a notícia de que tinha desaparecido o grande cronista da vida árabe.

Ao atravessar um dos séculos mais conturbados da história recente do Egipto, Naguib Mahfouz passou essas tensões em romances centrados na vida de gente comum, partilhando a sua linguagem, o seu quotidiano, nunca sendo óbvio quanto ao que expunha, optando pela ambiguidade, construindo personagens, pela sua diversidade e complexidade, capazes de dar um retrato o mais amplo e preciso do que é viver no tempo em que ele viveu, carregando a história que ele sentia carregar. “Talvez estejam a interrogar-se: como é que este homem vindo do terceiro mundo encontrou a paz de espírito para escrever histórias?”, interpelou Mahfouz na cerimonia em Estocolmo, e depois de traçar um retrato negro do continente de onde vinha, sintetizou: “Felizmente, a arte é generosa e simpática. Da mesma forma que vive com os felizes, não abandona os infelizes. Oferece a uns como a outros os meios convenientes para expressarem o que incha no seu seio.”

Quinze anos depois da sua morte e mais de trinta desde o Nobel, o nome de Mahfouz não causa o mesmo silêncio. A sua obra foi traduzida em todo o mundo, os elogios e comparações com nomes como Flaubert, Proust ou Tolstoi sucederam-se. Estes paralelos ajudam a conferir ordens de grandeza quando se está diante de uma novidade ou de um desconhecido. Mas depois de tudo isto, Mahfouz continua a ser pouco lido entre nós e as suas obras são difíceis de encontrar. A Civilização, editora que detinha os direitos do autor em Portugal, há muito que não põe livros no mercado. A última edição de um romance de Mahfouz é de 2012 (Miramar) e aquela que é considerada a sua obra maior, Trilogia do Cairo, estava indisponível desde que esgotou em pouco tempo a edição de 2008.

O Cairo entre a tradição e a modernidade

Até agora. No início deste Verão foi reeditado o primeiro volume, Entre os Dois Palácios​; os dois seguintes, Palácio do Desejo e O Jardim do Passado, vão chegar ao longo de 2022 e 2023, todos com tradução do árabe – a mesma da Civilização, mas revista – e com a chancela da E-Primatur.

É um livro/acontecimento, que acompanha três gerações da mesma família num bairro antigo da cidade do Cairo entre o protectorado britânico e a independência. Mais de 1500 páginas no original de que nos chegam agora mais de 600 correspondentes justamente ao primeiro volume: Entre os Dois Palácios​, título que remete para o lugar onde se situa a casa da família Gawwad, no bairro de Gamalya, o mesmo onde Mahfouz nasceu.

“A machrabiyya [varanda cercada por um gradeamento] situava-se diante da fonte de Bain el-Qasrain. Por baixo cruzavam-se a rua de en-Nahhasin, que desce para sul, e a rua de Bain el-Qasrain, que sobe para norte. À esquerda, a via parecia estreita e sinuosa, vedada por trevas que se condensavam na parte superior, ao longo das janelas das casas adormecidas, e que, mais abaixo, se descerravam devido às lâmpadas dos carros de mão, aos candeeiros dos cafés, e a algumas lojas que se mantinham abertas até de madrugada. À direita, onde não existiam cafés e onde as grandes lojas fechavam cedo as suas portas, o caminho embrenhava-se na noite. Aí, tirando os minaretes de Qalawun e Barquq, que emergiam quais visões de gigantes despertos sob as estrelas coruscantes, nada mais prendia a atenção. Era um cenário a que os seus olhos se haviam afeito, desde há um quarto de século. Nunca a entediara, talvez porque durante toda a sua vida, por mais monótona que fosse, houvesse ignorado o que era o tédio. Pelo contrário, aquele tornara-se uma companhia para a sua solidão e uma amizade para a desolação dos muitos anos que vivera como se não tivesse um companheiro, nem amigo íntimo.”

O romance começa desta forma, na perspectiva de Amina, segunda mulher de Ahmad Abdel Gawwad, comerciante, da classe média do Cairo, madrasta de Yassin, mãe de Khadiga, Fahmi, Aisha e Kamal. Três rapazes e duas raparigas que vivem aterrorizados com a autoridade paterna. Ahmad Abdel Gawwad é um déspota, que impõe uma disciplina cruel em casa, um hipócrita que se embebeda todas as noites, generoso e bem-humorado para os amigos, coleccionador de amantes que seduz entre as maiores beldades da noite do Cairo. Em casa, a cada meia-noite, Amina espera-o, de candeeiro na mão, para o ajudar a subir as escadas, a despir-se, a acompanhá-lo até que ele adormeça.
Fragilidades domésticas e sociais

Amina e Ahmad estão entre as personagens mais exemplares da obra de Mahfouz. Com elas, o escritor discorre sobre as fragilidades de uma sociedade e dos seus costumes num momento de transição entre o que se pensa ser uma abertura irredutível, defendida por uma elite de intelectuais que partilham de valores seculares, e as de uma tradição posta em causa não apenas por esses valores, mas por uma revolução política que ameaça ter consequências sociais. Com eles também, Mahfouz denuncia, sem nunca ser nisso evidente, o papel destinado à mulher nessa civilização em declínio onde a casa surge como lugar de exílio, transcorrendo, quando se alonga na ideia de exílio, essa condição para o domínio mais público, ao sublinhar a estranheza e o sofrimento dos que são obrigados a afastar-se por razões políticas ou religiosas da sua origem. E, em casa como na rua, à espera de um certo tipo de “perdão”, seja de um senhor, ou de uma comunidade.

Mahfouz foi educado no islamismo ortodoxo que só deixou em 1952. Ele conhece o mundo de que fala, os preceitos, os temores, e essa honestidade literária, como lhe chamaram, é uma das suas marcas Raphael GAILLARDE/Gamma-Rapho via Getty Ima

Publicado em 1956, três anos depois da proclamação da República do Egipto, o livro decorre em vésperas de outra revolução numa trilogia que atravessa as fases de nacionalismo do país e termina precisamente na independência em 1952. A luta pela independência do domínio britânico é assim narrada através da descrição, ao pormenor dos acontecimentos diários numa família egípcia de classe média. Refeições, escola, casamentos, desgostos amorosos, excessos, mentiras. Com isso, Mahfouz consegue um registo histórico único de um modo de vida entretanto extinto, seja pela ocidentalização, seja pelos avanços tecnológicos ou pelo extremismo religioso e político. É assim que, como têm sublinhado muitos estudiosos da obra de Mahfouz, e em particular desta trilogia, cada elemento da família cumpre um papel também na vida fora de casa, ou seja, os acontecimentos políticos da época entrelaçam-se na vida das muitas personagens que correspondem às principais tendências na vida política do Egipto: o partido Wafd [o Partido Nacionalista Liberal], de que Mahfouz foi militante, com os seus heróis Saad Zaghloul e Mustafa Nahhas, o movimento socialista ou os primórdios do fundamentalismo islâmico.

É isto que está no ar, na rua, é o que se respira em 1919, depois de a Inglaterra ganhar a Primeira Guerra Mundial e parecer impossível “expulsá-la” do Egipto. “O Egipto despertara, era um país novo que se amontoava para soltar a cólera por demasiado tempo”, lê-se no segundo terço do livro que parece ser também uma manifestação de um novo vigor narrativo depois da acção se ter concentrado nas tensões familiares. Agora, rua e família são mais indissociáveis do que nunca.

Narrado na terceira pessoa, o romance percorre a perspectiva dessa vivência por parte de todos os elementos da família – os de sempre e os que nela entram, porque a família árabe é um pólo de grande dinamismo social à volta da qual quase tudo acontece —, inclusive a do pequeno Kamal através dos seus olhos inquiridores e espantados de dez anos.

Estamos nos anos entre 1917 e 1919, fim da Primeira Guerra e início da chamada revolução Egípcia, uma revolução que, como Mahfouz chegou a dizer, não era pela democracia, mas contra o domínio britânico. Nessa altura, Mahfouz tinha a mesma idade que a sua personagem, Kamal, e tornou-a autobiográfica. Os olhos de um são feitos da memória do outro, o modo, por exemplo, como indaga acerca dos preceitos do casamento, como escuta atrás das portas para descobrir o que lhe está interdito, como no desespero, apesar do terror, desafia a autoridade do pai, como mente para conseguir o que quer, como se interroga acerca do activismo de Fhami, o seu amado e respeitável irmão cheio de bom senso. Como fantasiava acerca do que ia vendo, acrescentando a tudo uma boa dose de dramatismo. Por exemplo, nesse relato que ensaiava para contar à mãe vindo da rua: “Uma bala passou de raspão perto da minha cabeça, ainda oiço o seu silvo a zumbir-me aos ouvidos. Todos se debatiam como loucos e eu teria morrido como os outros se um homem não me tivesse empurrado para o interior de uma loja...”

O silêncio de Estocolmo chegou aos ouvidos de Naguib Mahfouz. O escritor não foi à Suécia receber o prémio. Enviou um discurso e as duas filhas para o representarem. Começou por dizer que o prémio era sobretudo para a língua árabe e pediu licença para se apresentar: “Sou o filho de duas civilizações que, num certo momento da história, formaram um casamento feliz. A primeira, com sete mil anos, é a civilização faraónica; a segunda, com mil e quatrocentos anos, é a islâmica.”

A linguagem privilegia o coloquialismo. Estamos em família, Mahfouz quer que isso fique sempre claro. Não uma família erudita, mas uma família respeitada de classe média com algumas prerrogativas face à maioria da população que vive ou na miséria ou pouco acima dela. Essas diferenças de classe são aqui essencialmente marcadas pelos criados de cada família, aqueles que não têm outra função a não ser servir em troca de alimento e um lugar onde dormir e a quem não é dado sequer o direito da fala, os que saem às ruas para cumprir uma função, mas são invisíveis. Estão aqui.

Um mundo sem heróis

E aqui não há heróis. Mahfouz não é um escritor de heróis. Já se disse que o que o atrai, literariamente, é a gente comum, personagens com defeitos que, como poucos o escritor sabe dissolver na vida comum, mostrando um país islâmico também cheio de grandes e pequenos pecadilhos: o álcool é comum, a prostituição, o consumo de drogas, o abuso sexual. Não há personagens lisas, a perfeição nem sequer é uma aspiração. Mesmo Amina, na sua profunda obediência a Alá e ao marido ousou desafiar a sua autoridade. E Fahmi, o filho exemplar, sente cólera, ciúme. Mas é esse Fahmi, no seu idealismo, aquele que mais se aproxima dessa ideia de herói. É dele o discurso mais fervoroso politicamente, amorosamente.

Eis Fahmi acerca do que levou os estudantes, como ele, às ruas: “Quase mais espantado pela forma como esta começara do que pela emoção que sentia pela manifestação em si, interrogava-se: ‘Como é que tudo isto aconteceu?’ Haviam passado somente poucas horas desde a manhã que se vira aviltado e desmoralizado e ali estava ele, pouco antes do meio-dia, a participar numa tumultuada manifestação onde cada coração ecoava o seu, repetindo cada grito e esconjurando-o com uma fé inquebrantável de prosseguir até ao fim. Que alegria a sua! Que entusiasmo o seu!”

E depois Fahmi em casa, nas mesmas horas, nos mesmos dias: “A sua mãe amassava! Nunca deixaria de amassar, manhã após manhã. Nunca um qualquer acontecimento a teria impedido de pensar em pôr a mesa, lavar a roupa, limpar os móveis. Os mais grandiosos acontecimentos não perturbavam os mais ínfimos labores! O coração da sociedade tem sempre espaço suficiente para as grandes coisas, bem como para as mais insignificantes, para contê-las e acolhê-las de forma harmónica umas ao lado das outras! Mas calma! Não era uma mãe às margens da sua vida, aquela que o havia dado à luz, pois que os filhos são o combustível da revolução e ela alimentava-o, porque o alimento é o combustível dos filhos! Na verdade, nada há na vida que seja fútil.”

Esta passagem ajusta-se ao entendimento que Mahfouz tem da literatura. No Cairo, onde nasceu, viveu e do qual pouco saiu, construiu um universo literário invulgar onde cada detalhe importa. Real, existencial, como os estilos em que fez grande parte da sua literatura, com um molde ajustado à sua essência: pertencer ao bairro então degradado de Gamalya, ser o mais novo de sete irmãos, ter vivido sempre no Cairo, no Egipto do século XX. Ao contrário das elites da época, fez todos os estudos no seu país. “Quando vou a Gamaliya, todo o tipo de imagens me vem à cabeça, e sinto-me novamente cheio. Um homem deve ter um lugar a que se agarrar, algo que o possa mover emocionalmente”, disse o escritor numa entrevista à New Yorker, em 1998, que voltará a ser aqui citada.

Gamalya não lhe faltou, pelo menos enquanto âncora literária. Os becos, as mesquitas, as lojas das ruelas apertadas, os pregões, as carroças, a sujidade das ruas, os dervixes, os tocadores de alaúde, os cegos. Está também no vislumbre de Amina, no seu único passeio pelo bairro até ao lugar sagrado que sempre ansiara visitar e agora estava ali, diante dela, pondo-a no lugar de uma luta nova. “Achou que a realidade ficava aquém do sonho, pois ela dilatara a imagem em largura e em altura, proporcionalmente ao lugar que ocupava no seu coração aquele a quem a mesquita fora dedicada. Todavia, este fosso entre a realidade e o produto da sua imaginação não podia de modo algum abalar a sua alegria perante este encontro, cuja embriaguez invadia os recessos do seu ser.”

Mahfouz foi educado no islamismo ortodoxo que só deixou em 1952. Ele conhece o mundo de que fala, os preceitos, os temores, e essa honestidade literária, como lhe chamaram, é uma das suas marcas profundas.

Islâmico, frequentou uma escola secular e licenciou-se em Filosofia. Terminou o curso em 1934, tornou-se funcionário público e, como era tradição viveu em casa dos pais até casar, aos 43 anos. A partir de 1971, reformou-se do seu emprego e passou a dedicar-se em exclusivo à escrita. Ao longo desse tempo saiu duas vezes do Egipto, foi à Jugoslávia e ao Iémen. Ainda à New Yorker disse: “Não viajei porque era pobre (...) Se tivesse viajado, como Hemingway, tenho a certeza de que o meu trabalho teria sido diferente. O meu trabalho foi moldado pelo meu ser muito egípcio”.

Sempre escreveu em árabe, moldando ao seu estilo a mescla de clareza e poesia que compõem essa língua, como sublinham alguns estudiosos da sua obra, conferindo-lhe um modernismo à la Flaubert, como sublinhou ainda Said. Nele ressaltam os detalhes que tornam possíveis as dinâmicas sociais e com ele entende-se como é que o Egipto preserva um sentimento tão antigo de nação. “O Egipto foi o primeiro país do nosso século a erguer-se contra a ocupação europeia. O povo, liderado pelo Wafd [o Partido Nacionalista Liberal], pôs fim ao protectorado [inglês] mas não conseguiu obter uma verdadeira independência, e, em qualquer caso, o Wafd não sabia governar numa democracia. A democracia não está profundamente enraizada na nossa cultura. Os egípcios fariam sacrifícios pela independência, mas não valorizavam a democracia, e assim, passo a passo, o nosso sistema desmoronou-se. A geração que veio depois da minha culpou a democracia pela corrupção da monarquia e pelos privilégios dos ricos. Creio que a culpa pertence realmente ao colonialismo britânico e aos reis do Egipto. Mas, quem quer que fosse o responsável, a maioria dos egípcios tinha concluído no início da Segunda Guerra Mundial que a democracia não oferecia nada — nem justiça social, nem liberdade, nem sequer independência total. Eles riram-se da democracia”.

Estas palavras foram ditas em 1998, mais uma vez quando Mahfouz ganhou uma voz no mundo. Elas continuam a encontrar um eco que esta trilogia, agora, vem reforçar. Num momento em que a literatura árabe já não é a estranha que era em 1988, mas continua a precisar de ser descoberta.

Convém relembrar, o prémio e as palavras têm mais de trinta anos e nesse tempo, nessa celebração de uma literatura naturalmente comprometida com um tempo porque nele foi escrita, Naguib Mahfouz despediu-se assim: “Apesar de tudo o que se passa à nossa volta, estou empenhado no optimismo até ao fim. Não digo com Kant que o Bem será vitorioso num outro mundo. O Bem está a alcançar a vitória todos os dias. Pode até acontecer que o Mal seja mais fraco do que imaginamos. À nossa frente está uma prova indelével: se não fosse o facto de a vitória estar sempre do lado do Bem, hordas de humanos errantes não teriam sido capazes de crescer e multiplicar-se face a animais e insectos, catástrofes naturais, medo e egoísmo. Não teriam sido capazes de formar nações, de se destacar na criatividade e na invenção, de conquistar o espaço exterior, e de declarar os Direitos Humanos. A verdade da questão é que o Mal é um deboche barulhento e turbulento, e que o Homem se lembra do que dói mais do que o que agrada.”

No romance Entre os Dois Palácios há uma breve definição de mal, na última frase, um detalhe do quotidiano numa canção de Kamal: “É mal abandonar de vez as pessoas.”

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