domingo, 18 de dezembro de 2022

A arquitectura brasileira como modernidade

BAPTISTA BASTOS | b.bastos@netcabo.pt | 05 Agosto 2016


Considerar a favela objecto de atenção estética é um insulto, não só a quem lá vive como aos arquitectos e às pessoas de bem. Uma tese não só condenável como repugnante.
Há uns anos, alguém defendeu a tese absurda e abstrusa de que as favelas abriam um capítulo importante na história da arquitectura. A polémica surgiu. Vozes levantaram-se apoiando o argumento e outras reduziram-no a uma infantilidade. Até o velho Niemeyer ergueu o seu protesto, com a autoridade intelectual, profissional e ética que se lhe reconhece.

De uma vez por todas: a favela é o produto do desespero urbano, da fome e da miséria. É uma questão política e uma deformidade do sistema. As favelas são desurbanizadas, e o seu desenvolvimento e crescimento são absolutamente caóticos. Não possuem infra-estruturas, nem disciplina, nem rigor profissional. São edifícios amontoados, construídos com rapidez impressionante e motivados pelo desespero que faz dos pobres a matéria de todos os infortúnios.

Considerar a favela objecto de atenção estética é um insulto, não só a quem lá vive como aos arquitectos e às pessoas de bem. A "snoberia" falsamente intelectual propôs a tese, alheando-se dos conteúdos sociais e políticos que a favela envolve e determina. Uma tese não só condenável como repugnante. Os pobres não precisam de absurdos desta natureza para adquirirem um estatuto social e artístico. Leia-se, por exemplo, Georges Steiner, acaso "As Lições dos Mestres", para se perceber a falácia e liquidar o embuste.

Actualmente, existem programas de requalificação das janelas que poderão ter êxito. Como uma cirurgia reconstrutiva, tentam melhorar os modos de viver e a existência dos favelados. Mas o problema, o grande problema, continua a ser a vertente política.

A arquitectura brasileira sofreu grande influência do Movimento Modernista e de Le Corbusier. No Rio de Janeiro, sobretudo, esse tipo de arquitectura é visível. Baseia-se, fundamentalmente, no nacionalismo ou na pesquisa das raízes culturais do país, até à cultura índia, para se associar, ou justapor, à urgência e às necessidades sociais. Os nomes dessa tendência são, entre outros, Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha e Vilanova Artigas. Todos eles têm uma forte conotação ideológica com o marxismo e com as correntes mais progressistas que, nos começos do século XX, percorriam boa parte do mundo, particularmente na Europa.

Niemeyer viveu no Rio de Janeiro, os outros em São Paulo. É nesta última cidade que o debate é mais intenso. São Paulo, pela sua tendência fortemente politizada que se mantém até hoje, é, de certo modo, oposta à concepção comunal do espaço, cuja estética é menos ligeira e mais espartana. Não é de estranhar: São Paulo é a cidade dos grandes editores, dos grandes jornais, dos grandes escritores - e onde as polémicas são mais profundas e mais acesas. Porém, a relação que as duas cidades têm, em termos estéticos, éticos e políticos, com os laços sociais são muito semelhantes.

Não podemos em consciência dizer que há duas escolas de arquitectura no Brasil: uma no Rio, outra em São Paulo. Podemos, isso sim, acentuar o carácter da invasão da esfera particular pela esfera pública. Não nos esqueçamos de que Brasília resulta da descentralização do "eu" (como muito bem definiu Lúcio Costa) e de um impulso político adversário da frivolidade "que destrói o sentido das coisas". Os arquitectos de Brasília tiveram a sua hora única e exemplar, e o Presidente Kubitschek a sua inspiração gloriosa. Mas uns e outros, não o esqueçamos, também foram violentamente atacados e vilipendiados, não apenas por forças políticas adversas, como, igualmente, por grandes artistas e intelectuais, que consideravam o projecto uma "aberração" megalómana.

Claro que Brasília conferiu uma nova projecção à arquitectura brasileira. Contudo, abriu identicamente novos e fascinantes problemas de lógica filosófica, de moral, de história e de técnica. Porque a arquitectura, quando tomada na sua exacta dimensão, envolve e exige a participação de todo o conhecimento humano.

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