Acácio Gouveia, Teófilo Carvalho Santos, Abranches Ferrão acumulavam uma advocacia próspera com a liderança virtual da oposição democrática ao regime e Adriano Moreira fez aí o seu estágio, não pela escolha consciente de quem escolhe um patrono ideologicamente próximo, mas, como nos explica, pela dificuldade de encontrar um patrono para o seu estágio.
Como é sabido, as más companhias têm os seus efeitos: pouco tempo depois, ao jovem advogado Adriano Moreira era confiada a defesa dos generais no golpe falhado de 1947, uma história ainda mal conhecida com contornos únicos. O Golpe militar – não realizado porque à última hora, como quase sempre sucedia, os oficiais menos comprometidos recuavam – tinha uma capa legal.
O Gen. Marques Godinho, Almirante Mendes Cabeçadas (do 5 de Outubro e do 28 de Maio) e outras altas patentes que se tinham passado da ala republicana do regime para a oposição ao mesmo iriam, em conjunto, falar com o Marechal Carmona e pedir-lhe que demitisse Salazar. Era meio verdade (em Belém, de Carmona a Craveiro Lopes, havia sempre uma conspiração latente e nunca realizada) e era a história para contar no tribunal depois do golpe falhar.
A reacção do regime – o semi-envolvimento de Carmona e as suas patentes davam aos envolvidos a convicção que não seriam tratados como os comunistas ou os anarco-sindicalistas – foi inesperadamente feroz. Carmona (com uma longa história de recuos e traições aos seus antigos companheiros) deve-se ter acobardado. Um seu primo (o almirante Carmona) foi testemunha dos conspiradores com uma posição muito incerta.
O homem forte do regime para os militares, o então Cor. Santos Costa, manda transferir os militares presos do Hospital Júlio de Matos (ainda por inaugurar e transformado numa centro de detenção adequado para os galões dos militares envolvidos) para a Prisão Militar da Trafaria. Não para Caxias, como no caso de Beja, mas para uma prisão militar. O drama surge porque o Gen. Marques Godinho está com problemas cardíacos e os médicos desaconselham a transferência. Adriano Moreira tenta obter das autoridades militares o adiamento da transferência, mas já ninguém tem coragem para fazer frente a Santos Costa: a tolerância tradicional em relação a militares envolvidos em conspirações tinha acabado. Com Santos Costa na defesa, os militares iriam transformar-se na guarda pretoriana do regime e não havia lugar para mais divergências ou tolerância para conspiradores.
O Gen. Marques Godinho é transferido e morre com um ataque de coração.
Aqui tem Adriano Moreira o seu momento de verdade: os filhos do defunto general (dois dos quais oficiais do exército) querem apresentar uma queixa crime contra Santos Costa que responsabilizam pela morte do seu pai. Adriano Moreira concorda e trata das questões jurídicas que suportam a queixa (que deveria ser apresentada na Polícia Judiciária) e oferece-se como testemunha.
A reacção do regime é brutal e o que se segue é a debandada: os filhos do Gen. Godinho, ameaçados com o fim imediato das suas carreira militares, deixam de ser autores da queixa que é apresentada pela sua mãe, a viúva do Gen.. Godinho, supostamente ao abrigo da repressão do regime. Quando esta é presa pela PIDE, toda a gente percebe que a dissidência no regime de Salazar implica risco e riscos muito sérios.
Aqui entra Marcelo Caetano cuja rivalidade com Santos Costa data desse tempo. Segundo Adriano Moreira, o Gen. Godinho tinha em seu poder cartas de Santos Costa do tempo da II Guerra Mundial, que este não queria ver divulgadas por terem posições «germanófilas». Seria interessante saber-se onde param estas cartas. Adriano Moreira revela também que os militares, em retirada completa perante a ferocidade de Santos Costa, terão pedido desculpa ao ministro porque teria sido Marcelo Caetano quem teria induzido o autor a apresentar a tal queixa contra ele. Tudo isto seria parte da guerra palaciana entre os dois. Marcelo Caetano (As Minhas Memória de Salazar, Viseu, 1977) tem uma versão distinta destes acontecimentos. Nega, naturalmente, que tivesse sido o autor moral da queixa que terá explicado Santos Costa (embora este achasse que sim). Conta que ele próprio teve de explicar ao Ministro do Interior qual o seu papel em tudo isto. E fala-nos de uma visita de um Adriano Moreira em pânico perante o recuo dos seus antigos constituintes em que ele, Marcelo Caetano, censura paternalmente o jovem advogado pela sua atitude precipitada e sem observância das devidas formas legais.
Tudo isto vai acabar com Adriano Moreira no Aljube e com Marcelo Caetano (segundo a versão deste) a pleitear pelo jovem advogado inexperiente junto do Ministro do Interior (Cancela de Abreu). A prisão durou pouco mas realizou plenamente a sua função dissuasória: Adriano Moreira parece ter tirado as suas conclusões sobre as vantagens e desvantagens de defender gente com problemas com o regime e dá novos rumos à sua carreira. Os implicados no golpe iriam encontrar outros defensores. O autor iria iniciar, passo a passo, o caminho que o conduziu ao poder na pasta do ultramar. Porque um outro golpe que também nos descreve bem – o golpe obstinadamente legal e falhado de Botelho Moniz em 1962 – foi derrotado por Salazar, no Diário de Governo, com a demissão dos conspiradores.
Tudo isto está ainda mal estudado e insuficiente descrito. As memórias de Adriano Moreira ajudam-nos a perceber melhor a época. Mais do que a perceber o memorialista cujas ambiguidades essenciais estão tão bem ilustradas por este livro.
Biografia de José Luís Saldanha Sanches.
O labirinto das reformas: Adriano Moreira e a resposta política à Guerra Colonial
Depois de ter sido lançado por Salazar como ministro do Ultramar e perante a escalada de acções independentistas violentas no Norte de Angola, no início de 1961, Adriano Moreira fez aprovar um conjunto de medidas legislativas para tentar inverter o rumo dos acontecimentos. Foi há 60 anos. E foi em vão.
Pedro Aires Oliveira 12 de Setembro de 2021
No ano de todos os desafios à ordem colonial portuguesa, Adriano Moreira impôs-se como uma das figuras emblemáticas da contra-ofensiva desencadeada por Salazar no rescaldo do golpe falhado de Botelho Moniz, em abril de 1961. Através de um conjunto vasto de iniciativas legislativas, o então jovem ministro do Ultramar (n. 1922) procurou restituir espaço de manobra a um regime acossado em várias frentes. Nos seus discursos, e depois em ensaios, textos memorialísticos e entrevistas concedidas ao longo de toda uma vida (sobretudo depois de 1974), procurará defender o seu legado, apresentando-o como uma tentativa — mal sucedida, em parte porque “sabotada” por dentro — de trilhar um caminho alternativo. Como diria mais tarde, Salazar revelou-se avesso a compromissos de qualquer espécie, insensível à ideia de que reformas feitas a tempo poderiam prevenir a “orgia da violência” das revoluções.
Tendo cunhado uma fórmula que pôs de sobreaviso a ala integrista do regime — a “autonomia progressiva e irreversível” — e associado o seu nome a um decreto com enorme impacto simbólico — a revogação do Estatuto dos Indígenas —, Moreira ganhou uma aura especial na conjuntura crítica de 1961-62 (um dos “jovens turcos” do regime, segundo o historiador René Pélissier). Que sentidos encontra hoje a historiografia para a sua rápida mas segura ascensão nos meandros da academia e da política colonial na década de 50? Haveria realmente margem para uma auto-reforma imperial nos moldes imaginados por Moreira? Que balanço é possível fazer da sua passagem pelos corredores do poder salazarista?
A ascensão de um “jovem turco”
Numa nota crítica às memórias de Moreira (A Espuma dos Dias, 2008), o fiscalista — e antigo militante antifascista — Saldanha Sanches referiu-se às facetas ambíguas que marcam várias fases do trajecto do antigo ministro, um transmontano de origens modestas que, pouco depois do fim da II Guerra Mundial, viu abrirem-se-lhe as portas dos escritórios de conceituados advogados oposicionistas.
O exercício da advocacia irá conduzi-lo à defesa de alguns dos implicados na chamada “Abrilada de 1947”, uma malograda tentativa de golpe de Estado que procurava capitalizar o descontentamento do pós-guerra. Uma das figuras do movimento, o general Marques Godinho, que era doente cardíaco, faleceria no Hospital Militar da Estrela, depois de transferido do presídio da Trafaria, circunstância que levaria Moreira a processar o então ministro da Guerra, Santos Costa, por homicídio involuntário. A iniciativa deu azo a uma retaliação violenta das autoridades, com a detenção dos familiares e do próprio advogado. Moreira, que havia assinado as listas do Movimento de Unidade Democrática, cumpre dois meses de detenção no Aljube. O episódio, como observou Saldanha Sanches, sinalizou-lhe de forma particularmente brutal os custos de qualquer atitude que pudesse ser entendida como um enfrentamento de figuras poderosas do salazarismo
Adriano Moreira ganhou uma aura especial na conjuntura crítica de 1961-62 ARCHIVO REGIONAL DE LA COMUNIDAD DE MADRID
Embora nunca se filiando na União Nacional, a verdade é que os anos seguintes acabariam por coincidir com uma aproximação do jovem advogado ao universo “situacionista”, primeiro através de revistas jurídicas de prestígio, depois da universidade e, finalmente, dos assuntos ultramarinos.
Ter patronos influentes era um trunfo importante, se não mesmo decisivo, e a este respeito pode dizer-se que Moreira não se saiu mal. Na Escola Superior Colonial, onde começa a lecionar em 1950, gozará da confiança do seu director, Mendes Correia, deputado à Assembleia Nacional, presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, figura que comandava vasta influência institucional.
A sua ascensão a professor ordinário (o topo da carreira à época) dá-se em apenas quatro anos, e resultaria de uma colaboração muito concreta com o Ministério do Ultramar, então dirigido por um outro transmontano, Sarmento Rodrigues, o mentor da revisão semântica da constituição colonial (doravante “ultramarina”) em 1951. A dissertação com que se apresentou a concurso beneficiou das observações colhidas no âmbito de um périplo por várias colónias africanas, destinado à preparação da reforma dos serviços prisionais ultramarinos. A Colónia Penal do Tarrafal, recorde-se, estava na iminência de ser encerrada, e o regime não tinha ainda ideias claras sobre as modalidades de “vigilância e punição” que poderia vir a pôr em prática numa África já tocada pelos “ventos da mudança”. Uma das sugestões de Moreira consistiu em encorajar as colónias penais agrícolas, onde os sentenciados (separados do convívio com os “delinquentes políticos” metropolitanos) poderiam adquirir formação rudimentar, a manter famílias monogâmicas e encetar o (lento) caminho da “assimilação”.
Embora nunca se filiando na União Nacional, a verdade é que os anos seguintes acabariam por coincidir com uma aproximação do jovem advogado ao universo “situacionista”, primeiro através de revistas jurídicas de prestígio, depois da universidade e, finalmente, dos assuntos ultramarinos.
Ter patronos influentes era um trunfo importante, se não mesmo decisivo, e a este respeito pode dizer-se que Moreira não se saiu mal. Na Escola Superior Colonial, onde começa a lecionar em 1950, gozará da confiança do seu director, Mendes Correia, deputado à Assembleia Nacional, presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, figura que comandava vasta influência institucional.
A sua ascensão a professor ordinário (o topo da carreira à época) dá-se em apenas quatro anos, e resultaria de uma colaboração muito concreta com o Ministério do Ultramar, então dirigido por um outro transmontano, Sarmento Rodrigues, o mentor da revisão semântica da constituição colonial (doravante “ultramarina”) em 1951. A dissertação com que se apresentou a concurso beneficiou das observações colhidas no âmbito de um périplo por várias colónias africanas, destinado à preparação da reforma dos serviços prisionais ultramarinos. A Colónia Penal do Tarrafal, recorde-se, estava na iminência de ser encerrada, e o regime não tinha ainda ideias claras sobre as modalidades de “vigilância e punição” que poderia vir a pôr em prática numa África já tocada pelos “ventos da mudança”. Uma das sugestões de Moreira consistiu em encorajar as colónias penais agrícolas, onde os sentenciados (separados do convívio com os “delinquentes políticos” metropolitanos) poderiam adquirir formação rudimentar, a manter famílias monogâmicas e encetar o (lento) caminho da “assimilação”.
Instalação provisória do campo de concentração do Tarrafal, Cabo Verde, numa imagem captada cerca de 1937/38. Adriano Moreira estudou a forma como os serviços prisionais ultramarinos deveriam ser reformados DGPC
Numa entrevista ao semanário Expresso pouco antes do lançamento das suas memórias, Moreira referir-se-ia a essa digressão ultramarina como a sua primeira “queda do mundo”. Com isso queria referir-se à enorme disparidade entre as leis e a propaganda oficial e as realidades sociais que pôde observar nos territórios africanos de Portugal.
A “segunda queda” ocorreria na sequência da sua imersão nos circuitos internacionais do colonialismo, nos quais se estreia primeiro como membro de delegações universitárias, depois enquanto consultor dos ministérios do Ultramar e dos Negócios Estrangeiros. Podendo reclamar ter sido um dos primeiros observadores a levar a sério o impacto global da Conferência de Bandung (como demonstra uma palestra que deu na Sociedade de Geografia em Junho de 1955), Moreira adquire então uma apreciável rodagem internacional. Frequenta os grandes fóruns interimperiais africanos; participa em reuniões do agora designado Instituto Internacional das Civilizações Diferentes (o antigo Instituto Colonial Internacional) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), além de tomar parte das assembleias gerais da ONU logo após a admissão de Portugal na organização.
Foram anos vertiginosos. A Guerra Fria entrava numa fase em que a competição entre as superpotências cada vez mais se transferia para a arena imperial, nomeadamente após a débâcle anglo-francesa do Suez. A política colonial ganhou então uma fluidez inédita. Os impulsos de modernização económica no pós-guerra — ou, se preferirmos, de maximização da extracção colonial — haviam revolvido as estruturas tradicionais das sociedades africanas e criado inúmeros desafios aos poderes imperiais. Reivindicações laborais e de cidadania não tardaram a confundir-se, em algumas partes, com aspirações independentistas. No caso das potências imperiais democráticas estes problemas foram enfrentados com uma mistura de repressão, acenos de recompensa social e concessões políticas. A independência do Gana, em 1957, galvanizaria outras lutas independentistas, mesmo se nas colónias de “povoamento branco”, da Argélia ao Quénia, a reacção dos colonos europeus era pouco propícia ao compromisso.
Nas últimas duas décadas, a historiografia que se ocupa deste período tem colocado em evidência o modo como o regime e as suas instituições procuraram posicionar-se para enfrentar a conjuntura adversa. A necessidade de dotar as instâncias de decisão com informação fiável sobre as populações esteve na base da criação de novos centros de pesquisa em que as fronteiras entre o saber universitário e a expertise burocrática eram muito porosas. Neste contexto, Adriano Moreira surge como uma figura-chave, alguém que tira partido das redes em que se insere e da confiança que ia granjeando junto do poder político para acumular influência institucional.
Um dos marcos do seu protagonismo é a criação do Centro de Estudos Políticos e Sociais (1956), vinculado à Junta de Investigações do Ultramar. As “missões de estudo” que o CEPS patrocinou às colónias, bem como os encontros científicos e as publicações que se realizaram sob a sua égide, conferiram à investigação um impulso assinalável, mobilizando figuras consagradas (como Orlando Ribeiro ou Jorge Dias), mas também talentos mais jovens, como os economistas Silva Lopes e Alfredo de Sousa.
Embora a sua “cooptação” para a maquilhagem da empresa colonial fosse um pouco mais antiga, Gilberto Freyre, o grande mentor do “luso-tropicalismo”, será também envolvido nestas iniciativas; aliás, seria sob o impulso de Moreira que o Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (nova designação da Escola Superior Colonial) viria a promover a consagração científica da “luso-tropicologia”, que se torna na ideologia oficiosa do tardo-colonialismo português. Interessante, além disso, é verificar que esta política de “atracção de talentos” não excluía também figuras africanas independentes, como o futuro presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane, à época funcionário da ONU. Em 1957, Mondlane contribuiria para um volume colectivo do CEPS — prefaciado por Sarmento Rodrigues —significativamente intitulado Inquérito sobre o Anticolonialismo.
Esta colaboração com Mondlane, propiciada pelo conhecimento travado nas Nações Unidas, evoluiria depois para um diálogo que se manteria até 1961, tendo estado em cima da mesa um convite ao moçambicano para ocupar uma posição de docência no ISEU, cuja direcção Moreira havia assumido em 1958. A hipótese nunca se concretizou, mas não deixa de sugerir algo quanto ao crédito de que Moreira poderia gozar junto de alguns sectores da intelligentsia africana.
Adriano Moreira (...) tira partido das redes em que se insere e da confiança que ia granjeando junto do poder político para acumular influência institucional
Pedro Aires Oliveira
Em Março de 1960, a sua nomeação como subsecretário de Estado da Administração Ultramarina não terá constituído uma surpresa, mas representou a assunção de um compromisso mais sério com o regime. No âmbito do processo de saneamento que lhe foi instaurado pelo Ministério da Educação e Cultura a seguir ao 25 de Abril, o antigo ministro procuraria justificar-se, alegando que a sua participação num Governo de Salazar ocorrera num domínio em que a defesa do império se confundia com o “interesse nacional”, sendo que uma das suas motivações teria residido na “defesa de uma justiça social que eliminasse todo o colonialismo interior”. Agindo como um patriota “acima das contingências pessoais”, admitia que o mesmo não sucedera com o regime, que se deixara capturar pelos “interesses de grupo”.
Enquanto simples subsecretário, Moreira dificilmente teria margem para fazer avançar um programa estruturado de reformas — que, de resto, ninguém ainda lhe conhecia. Aliás, essa apetência reformista não parece ter sido a motivação de Salazar para o chamar à esfera do Governo. O mais provável é que ao ditador tenha agradado a apologia da “firmeza” que Moreira vinha fazendo nos seus ensaios sobre a conjuntura internacional, em especial os que versavam a erosão da influência ocidental na ONU, prenunciadora de uma investida nacionalista em África em 1960.
No entanto, seria exactamente o deflagrar da contestação armada em Angola, nos primeiros meses de 1961, que iria tornar premente a necessidade de uma resposta política às insurgências e à pressão internacional a favor de mudanças.
A promoção de Moreira a ministro ocorre em circunstâncias bem conhecidas: a remodelação precipitada pelo abortado golpe de Botelho Moniz. É claramente um Governo de combate aquele que Salazar constitui, tendo como palavra de ordem andar para Angola “rapidamente e em força”. No elenco ministerial, figuravam nomes que em breve se constituiriam como rivais de Moreira nos corredores do poder: Gonçalo Correia de Oliveira (ministro da Presidência) e Franco Nogueira (Negócios Estrangeiros).
Nos últimos anos, a investigação histórica tem sido capaz de fazer uma reconstituição fina de toda a trama que esteve por detrás desta “segunda Abrilada” e das movimentações de bastidores que se desenrolaram nos meses subsequentes.
As sugestões, ou exigências, de medidas reformistas que aplacassem as críticas à política colonial portuguesa vinham de vários quadrantes — externos e internos — e chegavam em catadupa. A obsessão tipicamente salazarista de evitar ser visto a ceder estabeleceu limites claros à atuação de Moreira, pelo menos enquanto as Forças Armadas não conseguissem estabilizar a situação em Angola.
Tomada de posse dos novos ministros no Palácio de Belém, em Abril de 1961, com Adriano Moreira como ministro do Ultramar, ao centro, ao lado de Salazar
Mas um aceno favorável à aspiração dos colonos de assumirem um papel mais activo na governação local seria dado em 12 de Junho, com a promulgação de um decreto que instituía um regime municipalista no ultramar, prevendo a eleição de “moradores” para os órgãos de poder local. Para apaziguar os sempre inquietos integracionistas, esta última reforma seria apresentada num discurso intitulado Política de Integração, todo ele impregnado de referências historicistas e laivos providencialistas. Ela somava-se a outras medidas (como a criação dos “corpos de voluntários”) que visavam enquadrar a actuação dos “vigilantes” brancos em Angola e, ao mesmo tempo, encorajar um envolvimento dos colonos na segurança do território — era a recuperação do imaginário da Reconquista e do espírito de “fronteira” da colonização através da figura das milícias e dos soldados-agricultores.
A prioridade securitária estaria, aliás, patente noutras medidas mais discretas, como a criação dos serviços de centralização e coordenação de informação em Angola e Moçambique, bem como na portaria de 17 Junho que instituiu a reabertura do Tarrafal (“Campo de Trabalho de Chão Bom”), agora destinado a acolher os presos nacionalistas angolanos. Tal medida viria a ser-lhe recordada, de forma constrangedora, quando, em 2011, a Universidade de Cabo Verde decidiu atribuir ao antigo ministro um doutoramento honoris causa.
Juntamente com outros diplomas aprovados ao longo de 1962, elas constituiriam o cerne do impulso reformista de Moreira. A 6 de Setembro desse ano, sete decretos (alguns deles com importantes intróitos) preenchiam as páginas do Diário do Governo, tocando questões como a revogação do indigenato, a ocupação e concessão de terras no ultramar, a criação das Juntas Provinciais de Povoamento e do regime de regedorias, um sistema de salvaguarda de usos e costumes locais, a introdução de julgados municipais e de paz, a reorganização dos serviços de registo e notariado. Nos meses seguintes, um novo Código do Trabalho Rural seria publicado, e diplomas avulsos criariam institutos do trabalho, previdência e acção social, impulsionariam a expansão do ensino primário e lançariam as bases do ensino superior em Angola e Moçambique (criação dos Estudos Gerais Universitários, subtilmente “apadrinhados” pelas Universidade Técnica de Lisboa e de Coimbra).
A justificação destas medidas, bem como a resistência que algumas delas suscitaram, foi sendo oferecida por Moreira através de discursos e, depois, ensaios memorialísticos, onde ajustes de contas com os seus adversários dentro do próprio regime são feitos sem dó nem piedade (os já citados Correia de Oliveira e Nogueira, mas sobretudo Marcelo Caetano, com o qual a sua relação se deteriorara imensamente devido a disputas universitárias institucionais). Nestes textos, o seu programa reformista é apresentado como o produto de uma longa maturação, o corolário lógico do “colonialismo missionário” dos portugueses, ou ainda como um esforço exemplar de alinhamento com aspirações sociais generalizadas, como seria o caso da legislação laboral.
As circunstâncias da sua saída do Governo, em Dezembro de 1962, continuam sujeitas a diversas interpretações, com vários autores a revelarem-se relutantes em atender apenas às explicações dadas por Moreira, que insiste na pouca apetência de Salazar em deixá-lo prosseguir na senda das reformas.
Essas reformas, de resto, são hoje objecto de um debate muito mais intenso do que acontecia há uns anos, agora que a historiografia tem outros recursos à sua disposição. O alcance da revogação do indigenato, celebrada por Moreira como uma medida comparável aos decretos abolicionistas de Sá da Bandeira, por exemplo, tem sido questionado por Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto Cruz, que sublinham o facto de ela ter sido imediatamente acompanhada pela regulamentação do sistema de regedorias, uma nova modalidade de “acantonamento” das populações rurais africanas e de perpetuação da sua diferenciação jurídica. No fundo, uma espécie de reedição do “momento abolicionista” de meados/finais do século XIX, que, ao mesmo tempo que punha fim à escravatura, introduzia na legislação as figuras da “vadiagem” e da “obrigação moral” do trabalho. E isto para não mencionar o facto de que, numa estrutura imperial como a portuguesa, esta oferta de cidadania teria sempre um impacto menos relevante do que noutros contextos onde medidas equivalentes foram introduzidas, como foi o caso da França republicana em 1946.
Um balanço em profundidade ao impacto da nova legislação nas antigas “colónias de indigenato” (Guiné, Angola e Moçambique) está ainda por fazer, embora alguns investigadores com experiência no terreno, como René Pélissier, tenham encontrado evidências de melhorias pontuais na condição de muitos africanos; mas os indícios de que as populações não-europeias continuaram sujeitas a toda sorte de violências e discriminações, por motivos não apenas explicáveis pela situação de guerra, são igualmente abundantes.
Trabalhadores em explorações agrícolas controladas por empresas ou colonos portugueses em Angola; a revolta dos camponeses que trabalhavam para a Cotonang, na Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, é considerada um dos momentos fundadores da luta de libertação
Mas não deixa de ser significativo que, pelo menos até 1963, potências como os EUA demonstrassem disponibilidade para ajudar Portugal a sair gradualmente de África, o que lhe poderia abrir perspectivas de influência pós-colonial. Esse era o sentido do Plano Ball, sugerido pela administração Kennedy naquele ano, mas recebido com máxima desconfiança por Salazar.
O resto da história é conhecido. Como sentenciou Adriano Moreira, a “orgia da violência” seria mesmo o motor da mudança no Império Português.
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