Nan Goldin PHIL PENMAN/GETTY IMAGES
Uma das mais amadas artistas vivas e referência para as gerações que se lhe seguiram encontra hoje na remontagem das suas fotografias a sua forma de lidar com a perene evidência da perda.
Francisco Noronha 25 de Novembro de 2022“Honra”. Talvez não tenha sido a primeira palavra de que o público presente na primeira exposição realizada por Nan Goldin, em 1973, em Boston, se lembrou perante as fotografias de exultantes drag queens. E seria certamente a última na cabeça da sociedade americana conservadora de então, na ressaca do movimento hippie e pronta a reorganizar os códigos tradicionais que haviam sido perigosamente sacudidos. “Honra” era a dos grandes heróis americanos, a começar em John Wayne e a acabar nos regressados do Vietname, os reais e os que Hollywood glorificou até à ameaçadora aterragem dos movie brats nos anos 1970. E, porém, é essa palavra, “Honra”, Honoris mais exactamente, que, quase 50 anos volvidos, acompanha a vinda da fotógrafa norte-americana (n. 1953, filha de pais judeus de classe média) para a 12.ª edição do Multiplex, iniciativa da Universidade Lusófona do Porto (ULP).
Nos últimos anos, Goldin tem sido vista em alguns dos museus mais relevantes do mundo, mas sob uma forma diferente da habitual, já não atrás, mas à frente da câmara. Através do grupo Prescription Addiction Intervention Now (PAIN), por si fundado em 2017, tem denunciado, através de acções de protesto surpresa no interior de museus, a poderosa família Sackler, responsável pelo fabrico e comercialização do fármaco OxyContin. Lançado em 1995, o opióide é conhecido por criar uma adição a tal ponto severa que a sua carência provoca mais dor e efeitos nocivos do que a que é suposto amenizar (bem como distúrbios do foro mental). São milhares os pacientes vitimados ao longo dos anos (nomeadamente, suicídios). Goldin, ex-consumidora de drogas duras e posteriormente de OxyContin, tendo dispondo dos meios financeiros que faltam à maioria dos pacientes, é, por isso, uma sobrevivente (como é das drogas, do HIV…). Muitos dos elementos do PAIN são pais e irmãos dos que não ficaram para contar a história. O grupo tem conseguido que alguns dos museus mais importantes do mundo recusem o astronómico mecenato dos Sackler e a remoção das placas com o seu nome das paredes. Goldin e os outros membros do PAIN foram mesmo constituídos testemunhas no processo judicial movido contra a família americana, o qual terminou em 2021 com um acordo pela qual os Sacklers ficaram obrigados no pagamento de 4,5 mil milhões de dólares aos queixosos em troca de imunidade em qualquer acção judicial futura. A este respeito, lamenta-se o facto de não se encontrar incluído no programa a decorrer no Porto All The Beauty And The Bloodshed (2022), o recente documentário realizado por Laura Poitras (ou co-realizado…) que venceu o Leão de Ouro de Veneza. Teria sido a cereja no topo do bolo, na medida em que grande parte do filme é centrada na acção do PAIN, com imagens in loco dos protestos. O filme estreou há pouco no Leffest (e tem distribuição assegurada nas salas portuguesas), o mesmo lugar onde, em 2014, Goldin e Poitras se conheceram e o projecto germinou.
Sem prejuízo da relação de amizade entre as duas, a concepção do filme não terá sido fácil, entre o receio de Goldin em abrir-se a alguém que não era do seu círculo próximo, a sua preocupação em controlar a montagem final e a autonomia da autora Poitras.
“Adoro filmes de ficção, narrativos, adoro o medium do cinema em si, que é diferente do da fotografia. Na verdade, já não fotografo. Não estou mais interessada nas fotografias em si mesmas, mas em como montá-las”
Nan Goldin vem de um período intenso, um mês na montagem de uma retrospectiva inaugurada no Museu de Arte Moderna de Estocolmo, intitulada This Will Not End Well. Composta pelos seus filmes (ou slideshows, como lhes prefere chamar) exibidos em formato instalativo, a exposição distribui-se por seis salas desenhadas pelo arquitecta franco-libanesa Hala Wardé, havendo de rumar depois para vários museus europeus.
A artista regressou há poucos dias a Nova Iorque. A… “casa”? Talvez, embora a cidade esteja radicalmente diferente daquela que a fotógrafa, embora captando cenas de interiores, projectou para o mundo nos seus trabalhos dos anos 70/80. Como diferente está o seu círculo de amigos: a esmagadora maioria foi levada ao longo dos anos pelo HIV e pela heroína. Sobretudo o núcleo duro que essas fotografias imortalizaram: Greer Lankton (que Nan conheceu ainda antes de iniciar o processo de transição sexual), Cookie Muller (actriz, crítica e uma das Dreamlanders de John Waters), Sharon Niesp (actriz e namorada de Cookie) e, claro, David Armstrong, o anjo que lhe apareceu ainda na adolescência quando abandonou a casa dos pais.
Se, hoje, gerações inteiras devem a Goldin uma imagem mental da sub-cultura queer nova-iorquina desse tempo, é curioso como ela foi forjada através de fotografias captadas dentro de quatro paredes (quartos, salas, cozinhas, quartos de banho, bares, discotecas). Como Proust, a criação de toda uma paisagem física e emocional, um state of mind mesmo, sem se sair do quarto — eis o olhar de Nan Goldin, eis, enfim e ainda, a potência da fotografia.
Foi no final dos anos 70 que se mudou para Nova Iorque, iniciando a série que se viria a materializar em The Ballad of Sexual Dependency: “As fotografias mantêm os meus amigos vivos, é isso que elas fazem. Para mim, é o mais importante que elas têm”
The Ballad of Sexual Dependency
Goldin tem sentido nos últimos anos, aliás, desconforto com as parangonas que se referem ao seu retrato do “mundo de drogas e sexo” da Nova Iorque de então, donde a perspicácia no gesto de programar para a mesma sessão no Rivoli The Ballad emparelhado (contrastado?) com Fire Leap, slideshow de incursão pela infância no qual, sem prejuízo da doçura, as crianças são captadas como gente grande, sem as abonecar.
Voltando ao desconforto… Uma imagem “romantizada” da época? Com certeza, mas apenas no sentido de que o céu e o inferno constituem as páginas de um mesmo romance que os deuses intitularam de aventura humana. Depois de, em 2002, ter feito a retrospectiva Ainda na Terra em Serralves, a artista volta à cidade do Porto — era na terra, sim, mas havia uma sala designada Devil’s Playground… Vinte anos depois, Nan Goldin ainda está…. onde?
2022 marca os vinte anos da sua primeira vinda a Portugal. Still on Earth era o nome da exposição. Inaugurou uma enorme retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Estocolmo, This Will Not End Well. Raccord interessante, este, entre os dois títulos, nomeadamente se lido à luz da crise climática actual. Há pessimismo no título da retrospectiva, mas também humor.
Um dia, estava a ter uma discussão com uma pessoa e alguém disse: “This will not end well”. Pensei que seria um bom título para a retrospectiva da minha carreira (risos). Quero dizer… Isto não termina bem para ninguém, certo?... Entre a nossa própria mortalidade e o desastre planetário, trata-se de um título realista. Mas também pretende ser irónico… Acho que é um título engraçado para a retrospectiva de alguém que começou a carreira no final dos anos 70.
A sua carreira é um bom exemplo de algo que permanece muito bem. Isto é, perturbador, vital.
Bom, sim, mas… O meu legado é uma coisa, o eu-estar-aqui é outra. Não consigo imaginar algo parecido com uma reforma, de todo. Enquanto estiver viva, trabalharei. Hoje não, mas, na maioria dos dias, sinto-me muito forte. Sinto que o meu trabalho é muito forte. A exposição na Suécia é talvez a melhor que já fiz na minha vida.
Se, hoje, gerações inteiras devem a Nan Goldin uma imagem mental da sub-cultura queer nova-iorquina, é curioso como ela foi forjada através de fotografias captadas dentro de quatro paredes (quartos, salas, cozinhas, quartos de banho, bares, discotecas)
The Ballad of Sexual Dependency
Que memórias tem da passagem pelo Porto em 2002?
Foi maravilhoso. Divertimo-nos muito a instalar a exposição. Lembro-me de irmos a uma casa de fados, de nadar à noite no terraço de um hotel… Eram tempos loucos. Gostei muito do Porto, lembro-me bem.
2022 tem sido um ano importante. Antes da retrospectiva em Estocolmo, All the Beauty and the Bloodshed venceu o Leão de Ouro em Veneza. Menos conhecido, porém, é um documentário autobiográfico que co-realizou em 1996, I’ll Be Your Mirror. Nesse filme, ouvia-se-lhe em off que as fotografias constituem o diário visual da sua vida que permite que os outros leiam; que as pessoas talvez pudessem ter outras versões da sua história mas que queria ter uma em que ninguém pudesse tocar. Mais de vinte anos depois, foi difícil ter outra pessoa a contar a sua história?
Obviamente que é difícil chegar a um filme de duas horas que é tão revelador de todos os aspectos da minha vida. Muito complicado. Foi uma colaboração, montei o filme. Na fase final, acabei a editar a minha voz em off e muitas das imagens do filme. Laura deu-me muito controlo. O filme é uma colaboração e ela percebeu isso. Os meus amigos, o movimento PAIN e eu já tínhamos começado a filmar há um ano e meio. Muitas das imagens vêm daí, sobretudo as das acções de protesto.
Uma curiosidade. A certa altura, no filme, recorda como, no início dos anos 70, depois de conhecer David Armstrong e se mudarem para Provincetown, trabalhou numa roulotte de cachorros de portugueses. Do que se recorda?
Lembro-me de serem muito homofóbicos. Já não vou a Provincetown há muitos anos, mas, naquela altura, a cidade era metade portugueses, metade gays, e os portugueses não eram tolerantes com a comunidade gay. Foi nos anos 70, não sei se hoje ainda é assim.
Esperemos que não.
Sim, esperemos. (risos)
Já afirmou que os seus slideshows são a sua forma de fazer filmes com stills. Antes de abandonar a casa dos seus pais, qual foi o cinema com que cresceu?
Lembro-me da primeira vez que vi um filme em criança, era sobre um cão, chamava-se Old Yeller [western de 1957 realizado por Robert Stevenson e produzido por Walt Disney]. Devia ter uns cinco anos e foi uma epifania. Desde aquele momento, o cinema tornou-se importante para mim. A maioria dos filmes que vi foi depois de sair de casa. Andava numa escola hippie que tinha um modo de ensino livre. Não tínhamos aulas e íamos ao cinema todos os dias, foi aí que vi Godard, Rivette, Antonioni, toda a Nova Vaga francesa, as velhas estrelas de Hollywood: Marilyn, Marlene, Barbara Stanwyck... Vi Flaming Creatures de Jack Smith, todos os filmes de Warhol. Tive uma educação a sério.
Tentou fazer cinema por essa altura?
Sempre quis ser cineasta. E sempre gostei mais do cinema do que da fotografia. Ainda gosto. Desde muito nova que quis fazer filmes, simplesmente não aconteceu… Comecei a fotografar com máquinas Polaroid que a escola nos dava e fiquei obcecada pela fotografia. Depois, nos anos 70, comecei a fazer os slideshows. Na retrospectiva em Estocolmo, apresentaram-me como realizadora. Mas agora quero fazer um filme a sério.
Tal como uma longa de ficção?
Sim, um filme com um argumento. E tenho uma ideia…
Que ideia é essa?
É de um livro que descobri nos anos 80, e logo aí quis fazer um filme. É sobre a mundanidade da violência, e de como não é erótica, nem excitante ou técnica. A violência é a estupidez. Quando acontece, é algo de que nos arrependemos para o resto das nossas vidas. O livro explora isto de forma particular. Eu gosto de trabalhar com outras pessoas, pelo que o cinema é maravilhoso nesse sentido, exige muita gente.
The Ballad of Sexual Dependency
Foi no final dos anos 70 que se mudou para Nova Iorque, iniciando a série que se viria a materializar em The Ballad of Sexual Dependency. É uma década que traz um terramoto a Hollywood, enfim, à ideia que o país fazia de si próprio. Chegavam os movie brats e Cimino, Friedkin ou Scorsese revolucionavam a indústria a partir de dentro, os mitos nacionais eram colocados de pernas para o ar e a América volvia-se num país sujo, violento, excitante, sensual. Acompanhava os filmes da que estreavam à época e discutia-os com os amigos? Tiveram influência no seu trabalho?
Andávamos a ver os filmes de Scorsese, Kubrick e, em especial, Cassavetes. Mas tínhamos a nossa própria cena, aquilo a que se chamou de No Wave. Vivienne Dick, Jarmusch, Sara Driver, Betty Gordon, John Lurie estavam no centro desse movimento. Esses filmes, particularmente os de Vivienne Dick, tiveram enorme influência em The Ballad. Eram mais radicais do que aquilo que estava a sair de Hollywood.
No seu processo criativo, em que é que uma imagem em movimento é diferente de uma imagem estática, exactamente?
Os slideshows são compostos por stills que podem ser constantemente alterados e remontados. Cada um dos slideshows evolui comigo. Fiz um slideshow em 1983 que estive a remontar agora para Estocolmo. Isto é um luxo de que os realizadores não gozam. E adoro fazê-lo. Claro que os meus slideshows não são “filmes”, mas possuem narrativas baseadas nas letras das canções. Agora tenho trabalhado com compositores que me permitem ter outra profundidade emocional, e com vozes… Memory Lost é um trabalho ambicioso com gravações de chamadas telefónicas, entrevistas, vídeos, filmes em Super 8… Não são só fotografias. Mas adoro filmes de ficção, narrativos, adoro o medium do cinema, que é diferente do da fotografia. Na verdade, já não fotografo. Não estou mais interessada nas fotografias em si mesmas, mas em como montá-las.
Que movimento interior a impele nesse trabalho de remontagem dos slideshows?
Quero torná-los mais precisos e acrescentar-lhes alguma coisa do que é a minha vida actualmente. As alterações actualizam o slideshow relativamente a quem sou hoje, mesmo se as fotografias forem dos anos 80 e 90. Neste momento, considero que o meu trabalho mais importante é Memory Lost, o último que fiz.
Quando começou, não havia ninguém a fazer o tipo de fotografia, nem a olhar a intimidade, como em The Ballad. “Só havia fotografias a preto-e-branco, na vertical”, diz em All The Beauty...
O primeiro trabalho que fiz com as queens foi muito baseado em moda. Eu digo apenas “queens”, não “drag”. Além de Antonioni e Jack Smith, interessava-me pelo trabalho de Guy Bourdin, Helmut Newton, Louise Dahl-Wolfe. Eu adorava fotografia de moda, era isso que queria fazer com as queens com quem vivia. Mas, tecnicamente, não era suficiente boa, além de que ninguém usava queens ou gays em revistas de moda nesse tempo. Depois conheci o trabalho de Larry Clark, August Sander, Weegee [Arthur Fellig], Diane Arbus, e foi aí que me comecei a interessar pela fotografia enquanto forma artística. Também fui influenciada por Peter Hujard, embora as minhas fotografias não tenham qualquer semelhança com as minhas influências. Fazem parte da minha mentalidade, mas não da minha linguagem visual.
Se tivesse feito cinema nos anos 70/80, os seus filmes teriam semelhanças com as fotografias que fez nesse período? Filmaria as mesmas pessoas, lugares, os mesmos ambientes e cenas que vemos em The Ballad, por exemplo? E que tipo de filme poderia resultar daí? Documentário, ficção?
Não faço ideia. Ninguém tinha câmaras de filmar naquela altura. Foi difícil para a Laura [Poitras] encontrar footage de vídeo daquele período. Não era sequer normal as pessoas tirarem fotografias. Eu era uma das poucas pessoas a fotografar constantemente. Se tivesse uma câmara de filmar naquele tempo, tenho a certeza de que teria feito coisas diferentes, mas não consigo dizer o quê.
Em All the Beauty, recorda o período em que trabalhou como barwoman no Tin Pan Alley, lugar mítico da cena queer e underground nova-iorquina. Na série The Deuce [HBO, escrita por David Simon e George Pelecanos, criadores de The Wire], faz um cameo, como fotógrafa, no bar “Hi-Hat”, que é baseado no Tin Pan. Quando conversei com Bette Gordon [cineasta, autora de Variety, filme de 1983 que tem cenas filmadas no Tin Pan e para o qual Nan Goldin foi fotógrafa de cena], disse-me que tinha achado a série “irrealista”, uma versão hollywoodesca de Times Square dessa época, porque pouco crua. Disse ainda que as suas fotografias eram um documento muito mais fiel daquele tempo. O que achou da série?
Não concordo com a análise de Betty. Não acho que a série seja totalmente fiel porque ninguém consegue reencarnar Maggie Smith, a mulher que geria o bar. Muitos dos diálogos são perfeitos. Betty está errada. Trabalhei no Tin Pan e os diálogos entre os dois irmãos [gémeos, ambos interpretados por James Franco, baseados nos irmãos Steve e Johnny d’Agrosa] são absolutamente fiéis. Obviamente que a série não está alinhada com a realidade porque tudo é encenação, as ruas são encenadas, aqueles locais já não existem mais. Algumas coisas irritaram-me, outras não. Mas não penso que a série seja demasiado soft… Bom, os filmes da Betty também são soft. Como é que alguém consegue chegar à dureza de Times Square daquela altura?
Maggie Smith era a gerente do Tin Pan. Fala dela com enorme admiração e carinho no filme.
Maggie era uma pessoa muito complicada. E brilhante. Não sinto que a actriz [Margarita Levieva] a tenha compreendido. A sua interpretação não tem densidade suficiente. Foi o que mais me incomodou na série, porque eu adorava Maggie e conhecia-a profundamente.
Como se conheceram?
O dono do Tin Pan era um homem, mas só trabalhavam lá mulheres. Foi uma dessas mulheres que me levou ao bar. Maggie e eu desenvolvemos uma relação chegada. Sempre me preocupei muito com a opinião dela sobre o meu trabalho. Foi a primeira pessoa a dizer-me que o meu trabalho era político. Isto em 1980. Ela fez-me ver as coisas através dos seus olhos… Andávamos juntas no ballet e depois eu trabalhava para ela no bar. Maggie era intrépida. Enfrentava os homens todos, pessoas que vinham roubar, chulos que tratavam mal as prostitutas… Não tinha medo de nada nem de ninguém. Tal como eu, ficou fascinada por Times Square e quis trazer isso para o Tin Pan. A maioria dos clientes antigos do Tin Pan era gente que trabalhava no bairro e que não gostou muito dessa invasão. Para mim, Times Square era o que mais se parecia com a vida real. Por muito que eu gostasse do mundo artístico e da downtown da cidade, achava-os muito distantes da realidade da maioria das pessoas. Times Square era real.
Já disse várias vezes como os seus amigos e o círculo afectivo daí resultante constituíram a sua verdadeira família. Ao longo dos anos, perdeu muitos amigos para a droga e para a sida e…
Não tanto para as drogas, mas para a sida.
… em I’ll Be Your Mirror, David [Armstrong] e Greer [Lankton] referem como sentem uma survivor’s guilt por não terem sido infectados com o HIV, uma vez que haviam vivido tudo o que os outros, entretanto falecidos, viveram.
Não vejo o filme há tantos anos… David e Greer dizem isso?
Sim.
Pois… Eu própria digo isso…
Era a questão que lhe ia colocar, justamente.
Sim, sinto muito isso. Desde os anos 80. David e Greer morreram [Greer em 1996, ano em que o filme estreou na Berlinale, David em 2014]. Duas das pessoas mais importantes na minha vida que eu perdi.
Fundadora do grupo Prescription Addiction Intervention Now (PAIN), tem denunciado, através de acções de protesto surpresa no interior de museus, a poderosa família Sackler, responsável pelo fabrico e comercialização do fármaco OxyContin Erik McGregor/LightRocket via Getty Images
Conseguiu ir reconstruindo esse círculo de amigos, a sua família, ao longo dos anos?
Já não existem pessoas como aquelas. Restam muito poucos. Era suposto eu ter envelhecido com eles… Também tenho amigos agora, mas a mentalidade é diferente da do mundo em que eu vivi, do espaço mental que criámos. Era tudo muito mais livre, menos contraído e compartimentado. Era uma diversão! O humor era um trunfo, enquanto agora é temido. As pessoas estão sempre preocupadas se vão dizer algo errado. Creio que se os meus amigos tivessem continuado a viver, o mundo hoje seria um lugar realmente diferente.
Tem-se cruzado e relacionado com jovens, nomeadamente, os do PAIN.
Algumas das pessoas do PAIN ainda são as que conheci nos anos 80. Não estava tanto a falar das pessoas do PAIN, dessas sinto-me muito próxima. São pessoas que partilham da minha sensibilidade e forma de ver o mundo. Também sou muito próxima de pessoas em Lisboa, na Turquia, Itália. Os meus amigos mais próximos não estão necessariamente em Nova Iorque. Mas referia-me à atmosfera geral das gerações que vieram depois de mim.
The Ballad tornou-se o seu trabalho mais conhecido. Hoje, quando olha para as fotografias, ainda encontra algo que a surpreenda?
[pausa] As fotografias mantêm os meus amigos vivos, é isso que elas fazem. Para mim, é o mais importante que elas têm.
Nova Iorque é uma cidade diferente da que fotografou nos anos 70/80. A Nan Goldin de hoje também se sente muito diferente da pessoa que era nesse tempo?
Não sei. Bom, sim, sinto, a minha vida é muito diferente. Os últimos cinco anos da minha vida trouxeram mudanças… Temos de aceitar que envelhecemos e crescemos mentalmente, psicologicamente, fisicamente. As minhas prioridades mudaram.
The Ballad e Fire Leap integram várias fotografias de crianças nuas. Recentemente, tem-se assistido a uma onda censória contra obras de arte representando crianças nuas. É o caso do quadro Therése Dreaming, de Balthus, relativamente ao qual circulou uma petição a pedir a sua remoção do MET. Quando houve uma retrospectiva sua no Brasil há uns anos, as fotografias de crianças incluídas em The Ballad foram removidas da exposição. O que é ilustrativo do tempo em que vivemos é o facto de aqueles que agora pediram a remoção do quadro de Balthus estarem, alegadamente, no campo político oposto daqueles que, no passado, se sentiram incomodados no Brasil com as suas fotografias. Conservadores e ditos “progressistas” unidos no mesmo puritanismo.
Terrível, absolutamente terrível. Houve uma grande exposição de Alice Neel no MET onde se incluíam quadros de crianças e idosos nus. O trabalho dela está relacionado com o corpo. O MET colocou avisos ao lado dos quadros do tipo: “Não se preocupe, a pintora conhecia os pais destas crianças e teve autorização deles para as pintar”. Há esta constante necessidade de pedir desculpa por se estar a representar a humanidade em toda a sua diversidade. Toda a gente já foi criança, toda a gente já andou nua em algum momento. Considero isso assustador, este tipo de censura. Tal como censurar artistas por causa das suas vidas pessoais. Não é possível julgar à luz de hoje o modo como alguém viveu no seu tempo. Isso não invalida o seu trabalho.
Falou da atmosfera de compartimentação. Hoje não faltará quem afirme que só queens podem fotografar queens.
São coisas diferentes. The Ballad foi censurada no Brasil, Inglaterra e noutros lugares por causa das fotografias de crianças, e só peço a Deus que isso não volte a acontecer. Mas, de alguma forma, concordo com a ideia de que as pessoas devem fotografar aquilo que conhecem, e que trans e gay devem fotografar pessoas da sua comunidade. Uma vez, quando estava a dar aulas em Yale, tive uma aluna que queria fotografar prostitutas. Disse-lhe: “Tens de trabalhar como prostituta se queres fazer isso”. Sempre acreditei nisto.
Acha que deve valer como regra?
Há excepções. Christer Strömholm e a Brassaï fizeram fotografias magníficas de queens. Mas eles foram ao fundo das coisas. Eram amigos dessas pessoas, estavam a fotografar os seus amigos.
Voltando às fotografias como o diário visual da sua vida que escolhe deixar os outros lerem. O que não faltam hoje são pessoas a utilizarem as redes sociais para publicarem o “diário visual” do seu dia-a-dia. Dá-se o caso de fotógrafos que utilizam essas redes para publicar fotografias do seu trabalho e, simultaneamente, do que jantaram. E selfies, claro. Como se se preocupassem com o estatuto da fotografia durante a manhã e o descartassem à noite. Enquanto fotógrafa e alguém que captou a sua intimidade e a dos seus próximos, como olha para estes fenómenos?
Eu não estou nas redes sociais. As redes não têm nada que ver com o que procurei ao fazer um diário da minha vida. Era um trabalho muito mais profundo e consciente do que postar fotografias do que se está a comer ou a vestir. Publico no Instagram muito de longe em longe, na maioria dos casos algo político. Deixei de usar as redes sociais, são uma armadilha. Não conheço esses fotógrafos porque é um lugar que não frequento. (risos)