quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Nan Goldin: “Sempre quis ser cineasta. Sempre gostei mais do cinema do que da fotografia”

 

Nan Goldin PHIL PENMAN/GETTY IMAGES

Uma das mais amadas artistas vivas e referência para as gerações que se lhe seguiram encontra hoje na remontagem das suas fotografias a sua forma de lidar com a perene evidência da perda.


Francisco Noronha 25 de Novembro de 2022
“Honra”. Talvez não tenha sido a primeira palavra de que o público presente na primeira exposição realizada por Nan Goldin, em 1973, em Boston, se lembrou perante as fotografias de exultantes drag queens. E seria certamente a última na cabeça da sociedade americana conservadora de então, na ressaca do movimento hippie e pronta a reorganizar os códigos tradicionais que haviam sido perigosamente sacudidos. “Honra” era a dos grandes heróis americanos, a começar em John Wayne e a acabar nos regressados do Vietname, os reais e os que Hollywood glorificou até à ameaçadora aterragem dos movie brats nos anos 1970. E, porém, é essa palavra, “Honra”, Honoris mais exactamente, que, quase 50 anos volvidos, acompanha a vinda da fotógrafa norte-americana (n. 1953, filha de pais judeus de classe média) para a 12.ª edição do Multiplex, iniciativa da Universidade Lusófona do Porto (ULP).

Entre 28 e 30 de Novembro, Goldin estará presente para receber o doutoramento Honoris Causa (dia 28, 17h, ULP) e dar uma masterclass no Porto (dia 29, 15h, Teatro Nacional São João) e em Lisboa (5 de Dezembro, Universidade Lusófona de Lisboa). Em simultâneo, um programa de cinema (entrada livre) que inclui quatro títulos da sua lavra: Fire Leap (2011) e o icónico The Ballad of Sexual Dependency (1985), a peça que a fez artista de culto, são exibidos a 29 de Novembro (15h, Rivoli), com a presença da artista; no dia 30 (18h), sessão tripla composta por Sirens (2019-2020), The Other Side (1994-2019) e Memory Lost (2019-2021).

Nos últimos anos, Goldin tem sido vista em alguns dos museus mais relevantes do mundo, mas sob uma forma diferente da habitual, já não atrás, mas à frente da câmara. Através do grupo Prescription Addiction Intervention Now (PAIN), por si fundado em 2017, tem denunciado, através de acções de protesto surpresa no interior de museus, a poderosa família Sackler, responsável pelo fabrico e comercialização do fármaco OxyContin. Lançado em 1995, o opióide é conhecido por criar uma adição a tal ponto severa que a sua carência provoca mais dor e efeitos nocivos do que a que é suposto amenizar (bem como distúrbios do foro mental). São milhares os pacientes vitimados ao longo dos anos (nomeadamente, suicídios). Goldin, ex-consumidora de drogas duras e posteriormente de OxyContin, tendo dispondo dos meios financeiros que faltam à maioria dos pacientes, é, por isso, uma sobrevivente (como é das drogas, do HIV…). Muitos dos elementos do PAIN são pais e irmãos dos que não ficaram para contar a história. O grupo tem conseguido que alguns dos museus mais importantes do mundo recusem o astronómico mecenato dos Sackler e a remoção das placas com o seu nome das paredes. Goldin e os outros membros do PAIN foram mesmo constituídos testemunhas no processo judicial movido contra a família americana, o qual terminou em 2021 com um acordo pela qual os Sacklers ficaram obrigados no pagamento de 4,5 mil milhões de dólares aos queixosos em troca de imunidade em qualquer acção judicial futura. A este respeito, lamenta-se o facto de não se encontrar incluído no programa a decorrer no Porto All The Beauty And The Bloodshed (2022), o recente documentário realizado por Laura Poitras (ou co-realizado…) que venceu o Leão de Ouro de Veneza. Teria sido a cereja no topo do bolo, na medida em que grande parte do filme é centrada na acção do PAIN, com imagens in loco dos protestos. O filme estreou há pouco no Leffest (e tem distribuição assegurada nas salas portuguesas), o mesmo lugar onde, em 2014, Goldin e Poitras se conheceram e o projecto germinou.

Sem prejuízo da relação de amizade entre as duas, a concepção do filme não terá sido fácil, entre o receio de Goldin em abrir-se a alguém que não era do seu círculo próximo, a sua preocupação em controlar a montagem final e a autonomia da autora Poitras.

“Adoro filmes de ficção, narrativos, adoro o medium do cinema em si, que é diferente do da fotografia. Na verdade, já não fotografo. Não estou mais interessada nas fotografias em si mesmas, mas em como montá-las”

Nan Goldin vem de um período intenso, um mês na montagem de uma retrospectiva inaugurada no Museu de Arte Moderna de Estocolmo, intitulada This Will Not End Well. Composta pelos seus filmes (ou slideshows, como lhes prefere chamar) exibidos em formato instalativo, a exposição distribui-se por seis salas desenhadas pelo arquitecta franco-libanesa Hala Wardé, havendo de rumar depois para vários museus europeus.

A artista regressou há poucos dias a Nova Iorque. A… “casa”? Talvez, embora a cidade esteja radicalmente diferente daquela que a fotógrafa, embora captando cenas de interiores, projectou para o mundo nos seus trabalhos dos anos 70/80. Como diferente está o seu círculo de amigos: a esmagadora maioria foi levada ao longo dos anos pelo HIV e pela heroína. Sobretudo o núcleo duro que essas fotografias imortalizaram: Greer Lankton (que Nan conheceu ainda antes de iniciar o processo de transição sexual), Cookie Muller (actriz, crítica e uma das Dreamlanders de John Waters), Sharon Niesp (actriz e namorada de Cookie) e, claro, David Armstrong, o anjo que lhe apareceu ainda na adolescência quando abandonou a casa dos pais.

Se, hoje, gerações inteiras devem a Goldin uma imagem mental da sub-cultura queer nova-iorquina desse tempo, é curioso como ela foi forjada através de fotografias captadas dentro de quatro paredes (quartos, salas, cozinhas, quartos de banho, bares, discotecas). Como Proust, a criação de toda uma paisagem física e emocional, um state of mind mesmo, sem se sair do quarto — eis o olhar de Nan Goldin, eis, enfim e ainda, a potência da fotografia.


Foi no final dos anos 70 que se mudou para Nova Iorque, iniciando a série que se viria a materializar em The Ballad of Sexual Dependency: “As fotografias mantêm os meus amigos vivos, é isso que elas fazem. Para mim, é o mais importante que elas têm”


The Ballad of Sexual Dependency

Goldin tem sentido nos últimos anos, aliás, desconforto com as parangonas que se referem ao seu retrato do “mundo de drogas e sexo” da Nova Iorque de então, donde a perspicácia no gesto de programar para a mesma sessão no Rivoli The Ballad emparelhado (contrastado?) com Fire Leap, slideshow de incursão pela infância no qual, sem prejuízo da doçura, as crianças são captadas como gente grande, sem as abonecar.

Voltando ao desconforto… Uma imagem “romantizada” da época? Com certeza, mas apenas no sentido de que o céu e o inferno constituem as páginas de um mesmo romance que os deuses intitularam de aventura humana. Depois de, em 2002, ter feito a retrospectiva Ainda na Terra em Serralves, a artista volta à cidade do Porto — era na terra, sim, mas havia uma sala designada Devil’s Playground… Vinte anos depois, Nan Goldin ainda está…. onde?

2022 marca os vinte anos da sua primeira vinda a Portugal. Still on Earth era o nome da exposição. Inaugurou uma enorme retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Estocolmo, This Will Not End Well. Raccord interessante, este, entre os dois títulos, nomeadamente se lido à luz da crise climática actual. Há pessimismo no título da retrospectiva, mas também humor.
Um dia, estava a ter uma discussão com uma pessoa e alguém disse: “This will not end well”. Pensei que seria um bom título para a retrospectiva da minha carreira (risos). Quero dizer… Isto não termina bem para ninguém, certo?... Entre a nossa própria mortalidade e o desastre planetário, trata-se de um título realista. Mas também pretende ser irónico… Acho que é um título engraçado para a retrospectiva de alguém que começou a carreira no final dos anos 70.

A sua carreira é um bom exemplo de algo que permanece muito bem. Isto é, perturbador, vital.
Bom, sim, mas… O meu legado é uma coisa, o eu-estar-aqui é outra. Não consigo imaginar algo parecido com uma reforma, de todo. Enquanto estiver viva, trabalharei. Hoje não, mas, na maioria dos dias, sinto-me muito forte. Sinto que o meu trabalho é muito forte. A exposição na Suécia é talvez a melhor que já fiz na minha vida.

 
Se, hoje, gerações inteiras devem a Nan Goldin uma imagem mental da sub-cultura queer nova-iorquina, é curioso como ela foi forjada através de fotografias captadas dentro de quatro paredes (quartos, salas, cozinhas, quartos de banho, bares, discotecas)


The Ballad of Sexual Dependency

Que memórias tem da passagem pelo Porto em 2002?
Foi maravilhoso. Divertimo-nos muito a instalar a exposição. Lembro-me de irmos a uma casa de fados, de nadar à noite no terraço de um hotel… Eram tempos loucos. Gostei muito do Porto, lembro-me bem.

2022 tem sido um ano importante. Antes da retrospectiva em Estocolmo, All the Beauty and the Bloodshed venceu o Leão de Ouro em Veneza. Menos conhecido, porém, é um documentário autobiográfico que co-realizou em 1996, I’ll Be Your Mirror. Nesse filme, ouvia-se-lhe em off que as fotografias constituem o diário visual da sua vida que permite que os outros leiam; que as pessoas talvez pudessem ter outras versões da sua história mas que queria ter uma em que ninguém pudesse tocar. Mais de vinte anos depois, foi difícil ter outra pessoa a contar a sua história?
Obviamente que é difícil chegar a um filme de duas horas que é tão revelador de todos os aspectos da minha vida. Muito complicado. Foi uma colaboração, montei o filme. Na fase final, acabei a editar a minha voz em off e muitas das imagens do filme. Laura deu-me muito controlo. O filme é uma colaboração e ela percebeu isso. Os meus amigos, o movimento PAIN e eu já tínhamos começado a filmar há um ano e meio. Muitas das imagens vêm daí, sobretudo as das acções de protesto.

Uma curiosidade. A certa altura, no filme, recorda como, no início dos anos 70, depois de conhecer David Armstrong e se mudarem para Provincetown, trabalhou numa roulotte de cachorros de portugueses. Do que se recorda?
Lembro-me de serem muito homofóbicos. Já não vou a Provincetown há muitos anos, mas, naquela altura, a cidade era metade portugueses, metade gays, e os portugueses não eram tolerantes com a comunidade gay. Foi nos anos 70, não sei se hoje ainda é assim.

Esperemos que não.
Sim, esperemos. (risos)


Já afirmou que os seus slideshows são a sua forma de fazer filmes com stills. Antes de abandonar a casa dos seus pais, qual foi o cinema com que cresceu?
Lembro-me da primeira vez que vi um filme em criança, era sobre um cão, chamava-se Old Yeller [western de 1957 realizado por Robert Stevenson e produzido por Walt Disney]. Devia ter uns cinco anos e foi uma epifania. Desde aquele momento, o cinema tornou-se importante para mim. A maioria dos filmes que vi foi depois de sair de casa. Andava numa escola hippie que tinha um modo de ensino livre. Não tínhamos aulas e íamos ao cinema todos os dias, foi aí que vi Godard, Rivette, Antonioni, toda a Nova Vaga francesa, as velhas estrelas de Hollywood: Marilyn, Marlene, Barbara Stanwyck... Vi Flaming Creatures de Jack Smith, todos os filmes de Warhol. Tive uma educação a sério.

Tentou fazer cinema por essa altura?
Sempre quis ser cineasta. E sempre gostei mais do cinema do que da fotografia. Ainda gosto. Desde muito nova que quis fazer filmes, simplesmente não aconteceu… Comecei a fotografar com máquinas Polaroid que a escola nos dava e fiquei obcecada pela fotografia. Depois, nos anos 70, comecei a fazer os slideshows. Na retrospectiva em Estocolmo, apresentaram-me como realizadora. Mas agora quero fazer um filme a sério.

Tal como uma longa de ficção?
Sim, um filme com um argumento. E tenho uma ideia…

Que ideia é essa?
É de um livro que descobri nos anos 80, e logo aí quis fazer um filme. É sobre a mundanidade da violência, e de como não é erótica, nem excitante ou técnica. A violência é a estupidez. Quando acontece, é algo de que nos arrependemos para o resto das nossas vidas. O livro explora isto de forma particular. Eu gosto de trabalhar com outras pessoas, pelo que o cinema é maravilhoso nesse sentido, exige muita gente.


The Ballad of Sexual Dependency

Foi no final dos anos 70 que se mudou para Nova Iorque, iniciando a série que se viria a materializar em The Ballad of Sexual Dependency. É uma década que traz um terramoto a Hollywood, enfim, à ideia que o país fazia de si próprio. Chegavam os movie brats e Cimino, Friedkin ou Scorsese revolucionavam a indústria a partir de dentro, os mitos nacionais eram colocados de pernas para o ar e a América volvia-se num país sujo, violento, excitante, sensual. Acompanhava os filmes da que estreavam à época e discutia-os com os amigos? Tiveram influência no seu trabalho?
Andávamos a ver os filmes de Scorsese, Kubrick e, em especial, Cassavetes. Mas tínhamos a nossa própria cena, aquilo a que se chamou de No Wave. Vivienne Dick, Jarmusch, Sara Driver, Betty Gordon, John Lurie estavam no centro desse movimento. Esses filmes, particularmente os de Vivienne Dick, tiveram enorme influência em The Ballad. Eram mais radicais do que aquilo que estava a sair de Hollywood.

No seu processo criativo, em que é que uma imagem em movimento é diferente de uma imagem estática, exactamente?
Os slideshows são compostos por stills que podem ser constantemente alterados e remontados. Cada um dos slideshows evolui comigo. Fiz um slideshow em 1983 que estive a remontar agora para Estocolmo. Isto é um luxo de que os realizadores não gozam. E adoro fazê-lo. Claro que os meus slideshows não são “filmes”, mas possuem narrativas baseadas nas letras das canções. Agora tenho trabalhado com compositores que me permitem ter outra profundidade emocional, e com vozes… Memory Lost é um trabalho ambicioso com gravações de chamadas telefónicas, entrevistas, vídeos, filmes em Super 8… Não são só fotografias. Mas adoro filmes de ficção, narrativos, adoro o medium do cinema, que é diferente do da fotografia. Na verdade, já não fotografo. Não estou mais interessada nas fotografias em si mesmas, mas em como montá-las.

Que movimento interior a impele nesse trabalho de remontagem dos slideshows?
Quero torná-los mais precisos e acrescentar-lhes alguma coisa do que é a minha vida actualmente. As alterações actualizam o slideshow relativamente a quem sou hoje, mesmo se as fotografias forem dos anos 80 e 90. Neste momento, considero que o meu trabalho mais importante é Memory Lost, o último que fiz.

Quando começou, não havia ninguém a fazer o tipo de fotografia, nem a olhar a intimidade, como em The Ballad. “Só havia fotografias a preto-e-branco, na vertical”, diz em All The Beauty...
O primeiro trabalho que fiz com as queens foi muito baseado em moda. Eu digo apenas “queens”, não “drag”. Além de Antonioni e Jack Smith, interessava-me pelo trabalho de Guy Bourdin, Helmut Newton, Louise Dahl-Wolfe. Eu adorava fotografia de moda, era isso que queria fazer com as queens com quem vivia. Mas, tecnicamente, não era suficiente boa, além de que ninguém usava queens ou gays em revistas de moda nesse tempo. Depois conheci o trabalho de Larry Clark, August Sander, Weegee [Arthur Fellig], Diane Arbus, e foi aí que me comecei a interessar pela fotografia enquanto forma artística. Também fui influenciada por Peter Hujard, embora as minhas fotografias não tenham qualquer semelhança com as minhas influências. Fazem parte da minha mentalidade, mas não da minha linguagem visual.

Se tivesse feito cinema nos anos 70/80, os seus filmes teriam semelhanças com as fotografias que fez nesse período? Filmaria as mesmas pessoas, lugares, os mesmos ambientes e cenas que vemos em The Ballad, por exemplo? E que tipo de filme poderia resultar daí? Documentário, ficção?
Não faço ideia. Ninguém tinha câmaras de filmar naquela altura. Foi difícil para a Laura [Poitras] encontrar footage de vídeo daquele período. Não era sequer normal as pessoas tirarem fotografias. Eu era uma das poucas pessoas a fotografar constantemente. Se tivesse uma câmara de filmar naquele tempo, tenho a certeza de que teria feito coisas diferentes, mas não consigo dizer o quê.


Em All the Beauty, recorda o período em que trabalhou como barwoman no Tin Pan Alley, lugar mítico da cena queer e underground nova-iorquina. Na série The Deuce [HBO, escrita por David Simon e George Pelecanos, criadores de The Wire], faz um cameo, como fotógrafa, no bar “Hi-Hat”, que é baseado no Tin Pan. Quando conversei com Bette Gordon [cineasta, autora de Variety, filme de 1983 que tem cenas filmadas no Tin Pan e para o qual Nan Goldin foi fotógrafa de cena], disse-me que tinha achado a série “irrealista”, uma versão hollywoodesca de Times Square dessa época, porque pouco crua. Disse ainda que as suas fotografias eram um documento muito mais fiel daquele tempo. O que achou da série?
Não concordo com a análise de Betty. Não acho que a série seja totalmente fiel porque ninguém consegue reencarnar Maggie Smith, a mulher que geria o bar. Muitos dos diálogos são perfeitos. Betty está errada. Trabalhei no Tin Pan e os diálogos entre os dois irmãos [gémeos, ambos interpretados por James Franco, baseados nos irmãos Steve e Johnny d’Agrosa] são absolutamente fiéis. Obviamente que a série não está alinhada com a realidade porque tudo é encenação, as ruas são encenadas, aqueles locais já não existem mais. Algumas coisas irritaram-me, outras não. Mas não penso que a série seja demasiado soft… Bom, os filmes da Betty também são soft. Como é que alguém consegue chegar à dureza de Times Square daquela altura?

Maggie Smith era a gerente do Tin Pan. Fala dela com enorme admiração e carinho no filme.
Maggie era uma pessoa muito complicada. E brilhante. Não sinto que a actriz [Margarita Levieva] a tenha compreendido. A sua interpretação não tem densidade suficiente. Foi o que mais me incomodou na série, porque eu adorava Maggie e conhecia-a profundamente.

Como se conheceram?
O dono do Tin Pan era um homem, mas só trabalhavam lá mulheres. Foi uma dessas mulheres que me levou ao bar. Maggie e eu desenvolvemos uma relação chegada. Sempre me preocupei muito com a opinião dela sobre o meu trabalho. Foi a primeira pessoa a dizer-me que o meu trabalho era político. Isto em 1980. Ela fez-me ver as coisas através dos seus olhos… Andávamos juntas no ballet e depois eu trabalhava para ela no bar. Maggie era intrépida. Enfrentava os homens todos, pessoas que vinham roubar, chulos que tratavam mal as prostitutas… Não tinha medo de nada nem de ninguém. Tal como eu, ficou fascinada por Times Square e quis trazer isso para o Tin Pan. A maioria dos clientes antigos do Tin Pan era gente que trabalhava no bairro e que não gostou muito dessa invasão. Para mim, Times Square era o que mais se parecia com a vida real. Por muito que eu gostasse do mundo artístico e da downtown da cidade, achava-os muito distantes da realidade da maioria das pessoas. Times Square era real.

Já disse várias vezes como os seus amigos e o círculo afectivo daí resultante constituíram a sua verdadeira família. Ao longo dos anos, perdeu muitos amigos para a droga e para a sida e…
Não tanto para as drogas, mas para a sida.

… em I’ll Be Your Mirror, David [Armstrong] e Greer [Lankton] referem como sentem uma survivor’s guilt por não terem sido infectados com o HIV, uma vez que haviam vivido tudo o que os outros, entretanto falecidos, viveram.
Não vejo o filme há tantos anos… David e Greer dizem isso?

Sim.
Pois… Eu própria digo isso…

Era a questão que lhe ia colocar, justamente.
Sim, sinto muito isso. Desde os anos 80. David e Greer morreram [Greer em 1996, ano em que o filme estreou na Berlinale, David em 2014]. Duas das pessoas mais importantes na minha vida que eu perdi.

 
Fundadora do grupo Prescription Addiction Intervention Now (PAIN), tem denunciado, através de acções de protesto surpresa no interior de museus, a poderosa família Sackler, responsável pelo fabrico e comercialização do fármaco OxyContin Erik McGregor/LightRocket via Getty Images


Conseguiu ir reconstruindo esse círculo de amigos, a sua família, ao longo dos anos?
Já não existem pessoas como aquelas. Restam muito poucos. Era suposto eu ter envelhecido com eles… Também tenho amigos agora, mas a mentalidade é diferente da do mundo em que eu vivi, do espaço mental que criámos. Era tudo muito mais livre, menos contraído e compartimentado. Era uma diversão! O humor era um trunfo, enquanto agora é temido. As pessoas estão sempre preocupadas se vão dizer algo errado. Creio que se os meus amigos tivessem continuado a viver, o mundo hoje seria um lugar realmente diferente.

Tem-se cruzado e relacionado com jovens, nomeadamente, os do PAIN.
Algumas das pessoas do PAIN ainda são as que conheci nos anos 80. Não estava tanto a falar das pessoas do PAIN, dessas sinto-me muito próxima. São pessoas que partilham da minha sensibilidade e forma de ver o mundo. Também sou muito próxima de pessoas em Lisboa, na Turquia, Itália. Os meus amigos mais próximos não estão necessariamente em Nova Iorque. Mas referia-me à atmosfera geral das gerações que vieram depois de mim.

The Ballad tornou-se o seu trabalho mais conhecido. Hoje, quando olha para as fotografias, ainda encontra algo que a surpreenda?
[pausa] As fotografias mantêm os meus amigos vivos, é isso que elas fazem. Para mim, é o mais importante que elas têm.

Nova Iorque é uma cidade diferente da que fotografou nos anos 70/80. A Nan Goldin de hoje também se sente muito diferente da pessoa que era nesse tempo?
Não sei. Bom, sim, sinto, a minha vida é muito diferente. Os últimos cinco anos da minha vida trouxeram mudanças… Temos de aceitar que envelhecemos e crescemos mentalmente, psicologicamente, fisicamente. As minhas prioridades mudaram.


The Ballad e Fire Leap integram várias fotografias de crianças nuas. Recentemente, tem-se assistido a uma onda censória contra obras de arte representando crianças nuas. É o caso do quadro Therése Dreaming, de Balthus, relativamente ao qual circulou uma petição a pedir a sua remoção do MET. Quando houve uma retrospectiva sua no Brasil há uns anos, as fotografias de crianças incluídas em The Ballad foram removidas da exposição. O que é ilustrativo do tempo em que vivemos é o facto de aqueles que agora pediram a remoção do quadro de Balthus estarem, alegadamente, no campo político oposto daqueles que, no passado, se sentiram incomodados no Brasil com as suas fotografias. Conservadores e ditos “progressistas” unidos no mesmo puritanismo.
Terrível, absolutamente terrível. Houve uma grande exposição de Alice Neel no MET onde se incluíam quadros de crianças e idosos nus. O trabalho dela está relacionado com o corpo. O MET colocou avisos ao lado dos quadros do tipo: “Não se preocupe, a pintora conhecia os pais destas crianças e teve autorização deles para as pintar”. Há esta constante necessidade de pedir desculpa por se estar a representar a humanidade em toda a sua diversidade. Toda a gente já foi criança, toda a gente já andou nua em algum momento. Considero isso assustador, este tipo de censura. Tal como censurar artistas por causa das suas vidas pessoais. Não é possível julgar à luz de hoje o modo como alguém viveu no seu tempo. Isso não invalida o seu trabalho.

Falou da atmosfera de compartimentação. Hoje não faltará quem afirme que só queens podem fotografar queens.
São coisas diferentes. The Ballad foi censurada no Brasil, Inglaterra e noutros lugares por causa das fotografias de crianças, e só peço a Deus que isso não volte a acontecer. Mas, de alguma forma, concordo com a ideia de que as pessoas devem fotografar aquilo que conhecem, e que trans e gay devem fotografar pessoas da sua comunidade. Uma vez, quando estava a dar aulas em Yale, tive uma aluna que queria fotografar prostitutas. Disse-lhe: “Tens de trabalhar como prostituta se queres fazer isso”. Sempre acreditei nisto.

Acha que deve valer como regra?
Há excepções. Christer Strömholm e a Brassaï fizeram fotografias magníficas de queens. Mas eles foram ao fundo das coisas. Eram amigos dessas pessoas, estavam a fotografar os seus amigos.

Voltando às fotografias como o diário visual da sua vida que escolhe deixar os outros lerem. O que não faltam hoje são pessoas a utilizarem as redes sociais para publicarem o “diário visual” do seu dia-a-dia. Dá-se o caso de fotógrafos que utilizam essas redes para publicar fotografias do seu trabalho e, simultaneamente, do que jantaram. E selfies, claro. Como se se preocupassem com o estatuto da fotografia durante a manhã e o descartassem à noite. Enquanto fotógrafa e alguém que captou a sua intimidade e a dos seus próximos, como olha para estes fenómenos?
Eu não estou nas redes sociais. As redes não têm nada que ver com o que procurei ao fazer um diário da minha vida. Era um trabalho muito mais profundo e consciente do que postar fotografias do que se está a comer ou a vestir. Publico no Instagram muito de longe em longe, na maioria dos casos algo político. Deixei de usar as redes sociais, são uma armadilha. Não conheço esses fotógrafos porque é um lugar que não frequento. (risos)

Citações


 “O passado é um país estrangeiro, lá fazem-se as coisas de forma diferente”

L. P. Hartley

"Nunca ensino os meus alunos, apenas procuro que eles tenham condições para aprender."

Albert Einstein


Expressões curiosas usadas na Língua Portuguesa!


JURAR DE PÉS JUNTOS:

Mãe, eu juro de pés juntos que não fui eu. A expressão surgiu através das torturas executadas pelaSanta Inquisição, nas quais o acusado de heresias tinha as mãos e os pés amarrados (juntos) e era torturado para nada dizer além da verdade. Até hoje, o termo é usado para expressar a veracidade de algo que uma pessoa diz.

TIRAR O CAVALO DA CHUVA:

Pode ir tirando o seu cavalinho da chuva porque não te vou deixar sair hoje! No século XIX, quando uma visita iria ser breve, deixava o cavalo ao relento em frente à casa do anfitrião e, se fosse demorar, colocava o cavalo nos fundos da casa, num lugar protegido da chuva e do sol. Contudo, o convidado só poderia pôr o animal protegido da chuva se o anfitrião percebesse que a visita estava boa e dissesse: "pode tirar o cavalo da chuva". Depois disso, a expressão passou a significar a desistência de alguma coisa.

DAR COM OS BURROS NA ÁGUA:

A expressão surgiu no período do Brasil colonial, onde os tropeiros que escoavam a produção de ouro, cacau e café, precisavam ir da região Sul ao Sudeste sobre burros e mulas. O facto era que muitas vezes esses burros, devido à falta de estradas adequadas, passavam por caminhos muito difíceis e regiões alagadas, onde os burros morriam afogados. Daí em diante o termo passou a ser usado para se referir a alguém que faz um grande esforço para conseguir algum feito e não consegue ter sucesso.

GUARDAR A SETE CHAVES:

No século XIII, os Reis de Portugal adoptavam um sistema de arquivo de jóias e documentos importantes da corte através de um baú que possuía quatro fechaduras, sendo que cada chave era distribuída a um alto funcionário do reino. Portanto, eram apenas quatro chaves. Onúmero sete passou a ser utilizado devido ao valor místico atribuído ao mesmo, desde a época das religiões primitivas. A partir daí começou-se a utilizar o termo "guardar a sete chaves" para designar algo muito bem guardado...

OK:

A expressão inglesa "OK" (okay), que é mundialmente conhecida para significar
que está tudo bem, teve a sua origem na Guerra da Secessão, no EUA. Durante a guerra, quando os soldados voltavam para as bases sem nenhuma baixa, escreviam numa placa "0 killed" (nenhum(zero) morto), expressando a sua grande satisfação, daí surgiu o termo "OK".

ONDE JUDAS PERDEU AS BOTAS:

Existe uma história não comprovada, de que após trair Jesus, Judas enforcou-se numa árvore sem nada nos pés, já que havia posto o dinheiro que ganhou por entregar Jesus dentro das suas botas. Quando os soldados viram que Judas estava sem as botas, saíram em busca delas e do dinheiro da traição. Nunca ninguém soube se encontraram as botas de Judas. A partir daí surgiu à expressão, usada para designar um lugar distante, desconhecido e inacessível.

PENSANDO NA MORTE DA BEZERRA:

A história mais aceitável para explicar a origem do termo é proveniente das tradições hebraicas, onde os bezerros eram sacrificados a Deus como forma de redenção de pecados. Um filho do rei Absalão tinha grande apego a uma bezerra que foi sacrificada. Assim, após o animal morrer, ele ficou-se lamentando e pensando na morte da bezerra. Após alguns meses o garoto morreu.

PARA INGLÊS VER:

A expressão surgiu por volta de 1830, quando a Inglaterra exigiu que o Brasil aprovasse leis que impedissem o tráfico de escravos. No entanto, todos sabiam que essas leis não seriam cumpridas, assim, essas leis eram criadas apenas "para inglês ver". Daí surgiu o termo.

RASGAR SEDA:

A expressão que é utilizada quando alguém elogia grandemente outra pessoa, surgiu através da peça de teatro do teatrólogo Luís Carlos Martins Pena. Na peça, um vendedor de tecidos usa o pretexto de sua profissão para cortejar uma moça e começa a elogiar exageradamente a sua beleza, até que a moça percebe a intenção do rapaz e diz: "Não rasgue a seda, que se esfiapa."

O PIOR CEGO É O QUE NÃO QUER VER:

Em 1647, em Nimes, França, na universidade local, o doutor Vicent de Paul D`Argent fez o primeiro transplante de córnea num aldeão de nome Angel. Foi um sucesso da medicina da época, menos para Angel, que assim que passou a ver ficou horrorizado com o mundo que via. Disse que o mundo que ele imaginava era muito melhor. Pediu ao cirurgião que arrancasse os seus olhos. O caso foi acabar no tribunal de Paris e no Vaticano. Angel ganhou a causa e entrou para a história como o cego que não quis ver.

ANDAR À TOA:

Toa é a corda com que uma embarcação reboca a outra. Um navio que está à toa é o que não tem leme nem rumo, indo para onde o navio que o reboca determinar.

QUEM NÃO TEM CÃO, CAÇA COM GATO:

Na verdade, a expressão, com o passar dos anos, adulterou-se. Inicialmente dizia-se quem não tem cão caça "como" gato, ou seja, esgueirando-se, astutamente, traiçoeiramente, como fazem os gatos.

VAI TOMAR BANHO:

Em "Casa Grande & Senzala", Gilberto Freyre analisa os hábitos de higiene dos índios versus os do colonizador português. Depois das Cruzadas, como corolário dos contactos comerciais, o europeu contagiou-se de sífilis e de outras doenças transmissíveis e desenvolveu medo ao banho e horror à nudez, o que muito agradou à Igreja. Ora, o índio não conhecia a sífilis e lavava-se da cabeça aos pés nos rios, além de usar folhas de árvore para limpar os bebés e lavar no rio as redes nas quais dormiam. Ora, o cheiro exalado pelo corpo dos portugueses, abafado em roupas que não eram trocadas com frequência e raramente lavadas, aliado à falta de banho, causava repugnância aos índios. Então os índios, quando estavam fartos de receber ordens dos portugueses, mandavam que fossem "tomar banho".


Expressões Populares - Sua origem...!


ERRO CRASSO


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Significado: Erro grosseiro.

Origem: Na Roma antiga havia o Triunvirato: o poder dos generais era dividido por três pessoas. No primeiro destes Triunviratos , tínhamos: Caio Júlio, Pompeu e Crasso. Este último foi incumbido de atacar um pequeno povo chamado Partos. Confiante na vitória, resolveu abandonar todas as formações e técnicas romanas e simplesmente atacar. Ainda por cima, escolheu um caminho estreito e de pouca visibilidade. Os partos, mesmo em menor número, conseguiram vencer os romanos, sendo o general que liderava as tropas um dos primeiros a cair.
Desde então, sempre que alguém tem tudo para acertar, mas comete um erro estúpido, dizemos tratar-se de um "erro crasso".

TER PARA OS ALFINETES



Significado: Ter dinheiro para viver.

Origem: Em outros tempos, os alfinetes eram objecto de adorno das mulheres e daí que, então, a frase significasse o dinheiro poupado para a sua compra porque os alfinetes eram um produto caro. Os anos passaram e eles tornaram-se utensílios, já não apenas de enfeite, mas utilitários e acessíveis. Todavia, a expressão chegou a ser acolhida em textos legais. Por exemplo, o Código Civil Português, aprovado por Carta de Lei de Julho de 1867, por D. Luís, dito da autoria do Visconde de Seabra, vigente em grande parte até ao Código Civil actual, incluía um artigo, o 1104, que dizia: «A mulher não pode privar o marido, por convenção antenupcial, da administração dos bens do casal; mas pode reservar para si o direito de receber, a título de alfinetes, uma parte do rendimento dos seus bens, e dispor dela livremente, contanto que não exceda a terça dos ditos rendimentos líquidos.»


DO TEMPO DA MARIA CACHUCHA


Significado: Muito antigo.

Origem: A cachucha era uma dança espanhola a três tempos, em que o dançarino, ao som das castanholas, começava a dança num movimento moderado, que ia acelerando, até terminar num vivo volteio. Esta dança teve uma certa voga em França, quando uma célebre dançarina, Fanny Elssler, a dançou na Ópera de Paris. Em Portugal, a popular cantiga Maria Cachucha (ao som da qual, no séc. XIX, era usual as pessoas do povo dançarem) era uma adaptação da cachucha espanhola, com uma letra bastante gracejadora, zombeteira.


À GRANDE E À FRANCESA


Significado: Viver com luxo e ostentação.

Origem: Relativa aos modos luxuosos do general Jean Andoche Junot, auxiliar de Napoleão que chegou a Portugal na primeira invasão francesa, e dos seus acompanhantes, que se passeavam vestidos de gala pela capital.

COISAS DO ARCO-DA-VELHA


Significado: Coisas inacreditáveis, absurdas, espantosas, inverosímeis.
Origem: A expressão tem origem no Antigo Testamento; arco-da-velha é o arco-íris, ou arco-celeste, e foi o sinal do pacto que Deus fez com Noé: "Estando o arco nas nuvens, Eu ao vê-lo recordar-Me-ei da aliança eterna concluída entre Deus e todos os seres vivos de toda a espécie que há na terra." (Génesis 9:16)

Arco-da-velha é uma simplificação de Arco da Lei Velha, uma referência à Lei Divina.

Há também diversas histórias populares que defendem outra origem da expressão, como a da existência de uma velha no arco-íris, sendo a curvatura do arco a curvatura das costas provocada pela velhice, ou devido a uma das propriedades mágicas do arco-íris - beber a água num lugar e enviá-la para outro, pelo que velha poderá ter vindo do italiano bere (beber).

DOSE PARA CAVALO


Significado: Quantidade excessiva; demasiado.

Origem: Dose para cavalo, dose para elefante ou dose para leão são algumas das variantes que circulam com o mesmo significado e atendem às preferências individuais dos falantes.

Supõe-se que o cavalo, por ser forte; o elefante, por ser grande, e o leão, por ser valente, necessitam de doses exageradas de remédio para que este possa produzir o efeito desejado.

Com a ampliação do sentido, dose para cavalo e suas variantes é o exagero na ampliação de qualquer coisa desagradável, ou mesmo aquelas que só se tornam desagradáveis com o exagero.

DAR UM LAMIRÉ


Significado: Sinal para começar alguma coisa.

Origem: Trata-se da forma aglutinada da expressão «lá, mi, ré», que designa o diapasão, instrumento usado na afinação de instrumentos ou vozes; a partir deste significado, a expressão foi-se fixando como palavra autónoma com significação própria, designando qualquer sinal que dê começo a uma actividade. Historicamente, a expressão «dar um lamiré» está, portanto, ligada à música (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

Nota: Escreve-se lamiré, com o r pronunciado como em caro.


MEMÓRIA DE ELEFANTE


Significado: Ter boa memória; recordar-se de tudo.

Origem: O elefante fixa tudo aquilo que aprende, por isso é uma das principais atracções do circo.

LÁGRIMAS DE CROCODILO


Significado: Choro fingido.

Origem: O crocodilo, quando ingere um alimento, faz forte pressão contra o céu da boca, comprimindo as glândulas lacrimais. Assim, ele chora enquanto devora a vítima.

NÃO PODER COM UMA GATA PELO RABO


Significado: Ser ou estar muito fraco; estar sem recursos.

Origem: O feminino, neste caso, tem o objectivo de humilhar o impotente ou fraco a que se dirige a referência. Supõe-se que a gata é mais fraca, menos veloz e menos feroz em sua própria defesa do que o gato. Na realidade, não é fácil segurar uma gata pelo rabo, e não deveria ser tão humilhante a expressão como realmente é.

MAL E PORCAMENTE


Significado: Muito mal; de modo muito imperfeito.

Origem: «Inicialmente, a expressão era "mal e parcamente". Quem fazia alguma coisa assim, agia mal e eficientemente, com parcos (poucos) recursos.

Como parcamente não era palavra de amplo conhecimento, o uso popular tratou de substituí-la por outra, parecida, bastante conhecida e adequada ao que se pretendia dizer. E ficou " mal e porcamente", sob protesto suíno.»(1)

(1) in A Casa da Mãe Joana, de Reinaldo Pimenta, vol. 1 (Editora Campus, Rio de Janeiro)

JÁ A FORMIGA TEM CATARRO


Significado: Diz-se a quem pretende ser mais do que é, sobretudo dirigido a crianças ou inexperientes.

FAZER TIJOLO


Significado: Morrer.

Origem: Segundo se diz, existiu um velho cemitério mouro para as bandas das Olarias, Bombarda e Forno do Tijolo. O almacávar, isto é, o cemitério mourisco, alastrava-se numa grande extensão por toda a encosta, lavado de ar e coberto de arvoredo.

Após o terramoto de 1755, começando a reedificação da cidade, o barro era pouco para as construções e daí aproveitar-se todo o que aparecesse.

O cemitério árabe foi tão amplamente explorado que, de mistura com a excelente terra argilosa, iam também as ossadas para fazer tijolo. Assim, é frequente ouvir-se a expressão popular em frases como esta: 'Daqui a dez anos já eu estou a fazer tijolo '.

in 'Dicionário de Expressões Correntes' ; Orlando Neves

FILA INDIANA


Significado: enfiada de pessoas ou coisas dispostas uma após outra.

Origem: Forma de caminhar dos índios da América que, deste modo, tapavam as pegadas dos que iam na frente.

ANDAR À TOA


Significado: Andar sem destino, despreocupado, passando o tempo.

Origem: Toa é a corda com que uma embarcação reboca a outra. Um navio que está "à toa" é o que não tem leme nem rumo, indo para onde o navio que o reboca determinar.

EMBANDEIRAR EM ARCO


Significado: Manifestação efusiva de alegria.

Origem: Na Marinha, em dias de gala ou simplesmente festivos, os navios embandeiram em arco, isto é, içam pelas adriças ou cabos (vergueiros) de embandeiramento galhardetes, bandeiras e cometas quase até ao topo dos mastros, indo um dos seus extremos para a proa e outro para a popa. Assim são assinalados esses dias de regozijo ou se saúdam outros barcos que se manifestam da mesma forma.

CAIR DA TRIPEÇA



Significado: Qualquer coisa que, dada a sua velhice, se desconjunta facilmente.

Origem: A tripeça é um banco de madeira de três pés, muito usado na província, sobretudo junto às lareiras. Uma pessoa de avançada idade aí sentada, com o calor do fogo, facilmente adormece e tomba.

FAZER TÁBUA RASA


Significado: Esquecer completamente um assunto para recomeçar em novas bases.

Origem: A tabula rasa, no latim, correspondia a uma tabuinha de cera onde nada estava escrito. A expressão foi tirada, pelos empiristas, de Aristóteles, para assim chamarem ao estado do espírito que, antes de qualquer experiência, estaria, em sua opinião, completamente vazio. Também John Locke (1632 1704), pensador inglês, em oposição a Leibniz e Descartes, partidários do inatismo, afirmava que o homem não tem nem ideias nem princípios inatos, mas sim que os extrai da vida, da experiência. «Ao começo», dizia Locke, «a nossa alma é como uma tábua rasa, limpa de qualquer letra e sem ideia nenhuma. Tabula rasa in qua nihil scriptum. Como adquire, então, as ideias? Muito simplesmente pela experiência.»

AVE DE MAU AGOURO


Significado: Diz-se de pessoa portadora de más notícias ou que, com a sua presença, anuncia desgraças.

Origem: O conhecimento do futuro é uma das preocupações inerentes ao ser humano. Quase tudo servia para, de maneiras diversas, se tentar obter esse conhecimento. As aves eram um dos recursos que se utilizava. Para se saberem os bons ou maus auspícios (avis spicium) consultavam-se as aves. No tempo dos áugures romanos, a predição dos bons ou maus acontecimentos era feita através da leitura do seu voo, canto ou entranhas. Os pássaros que mais atentamente eram seguidos no seu voo, ouvidos nos seus cantos e aos quais se analisavam as vísceras eram a águia, o abutre, o milhafre, a coruja, o corvo e a gralha. Ainda hoje perdura, popularmente, a conotação funesta com qualquer destas aves.

VERDADE DE LA PALISSE


Significado: Uma verdade de La Palice (ou lapalissada / lapaliçada) é evidência tão grande, que se torna ridícula.

Origem: O guerreiro francês Jacques de Chabannes, senhor de La Palice (1470-1525), nada fez para denominar hoje um truísmo. Fama tão negativa e multissecular deve-se a um erro de interpretação.

Na sua época, este chefe militar celebrizou-se pela vitória em várias campanhas. Até que, na batalha de Pavia, foi morto em pleno combate. E os soldados que ele comandava, impressionados pela sua valentia, compuseram em sua honra uma canção com versos ingénuos:

"O Senhor de La Palice / Morreu em frente a Pavia; / Momentos antes da sua morte, / Podem crer, inda vivia."

O autor queria dizer que Jacques de Chabannes pelejara até ao fim, isto é, "momentos antes da sua morte", ainda lutava. Mas saiu-lhe um truísmo, uma evidência.
Segundo a enciclopédia Lello, alguns historiadores consideram esta versão apócrifa. Só no século XVIII se atribuiu a La Palice um estribilho que lhe não dizia respeito. Portanto, fosse qual fosse o intuito dos versos, Jacques de Chabannes não teve culpa.

Nota: Em Portugal, empregam-se as duas grafias: La Palice ou La Palisse.


TER OUVIDOS DE TÍSICO

Significado: Ouvir muito bem.

Origem: Antes da II Guerra Mundial (l939 a l945), muitos jovens sofriam de uma doença denominada tísica, que corresponde à tuberculose. A forma mais mortífera era a tuberculose pulmonar.

Com o aparecimento dos antibióticos durante a II Guerra Mundial, foi possível combater esta doença com muito maior êxito.

As pessoas que sofrem de tuberculose pulmonar tornam-se muito sensíveis, incluindo uma notável capacidade auditiva. A expressão «ter ouvidos de tísico» significa, portanto, «ouvir tão bem como aqueles que sofrem de tuberculose pulmonar».

COMER MUITO QUEIJO


Significado: Ser esquecido; ter má memória.

Origem: A origem desta expressão portuguesa pode explicar-se pela relação de causalidade que, em séculos anteriores, era estabelecida entre a ingestão de lacticínios e a diminuição de certas faculdades intelectuais, especificamente a memória.

A comprovar a existência desta crença existe o excerto da obra do padre Manuel Bernardes "Nova Floresta", relativo aos procedimentos a observar para manter e exercitar a memória: «Há também memória artificial da qual uma parte consiste na abstinência de comeres nocivos a esta faculdade, como são lacticínios, carnes salgadas, frutas verdes, e vinho sem muita moderação: e também o demasiado uso do tabaco».

Sabe-se hoje, através dos conhecimentos provenientes dos estudos sobre memória e nutrição, que o leite e o queijo são fornecedores privilegiados de cálcio e de fósforo, elementos importantes para o trabalho cerebral. Apesar do contributo da ciência para desmistificar uma antiga crença popular, a ideia do queijo como alimento nocivo à memória ficou cristalizada na expressão fixa «comer (muito) queijo».

ACORDO LEONINO


Significado: Um «acordo leonino» é aquele em que um dos contratantes aceita condições desvantajosas em relação a outro contratante que fica em grande vantagem.
Origem: «Acordo leonino» é, pois, uma expressão retórica sugerida nomeadamente pelas fábulas em que o leão se revela como todo-poderoso.

QUE MASSADA*!


Significado: Exclamação usada para referir uma tragédia ou contra-tempo.

Origem: É uma alusão à fortaleza de Massada na região do Mar Morto, Israel, reduto de Zelotes, onde permaneceram anos resistindo às forças romanas após a destruição do Templo em 70 d.C., culminando com um suicídio colectivo para não se renderem, de acordo com relato do historiador Flávio Josefo.


PASSAR A MÃO PELA CABEÇA


Significado: perdoar ou acobertar erro cometido por algum protegido.

Origem: Costume judaico de abençoar cristãos-novos, passando a mão pela cabeça e descendo pela face, enquanto se pronunciava a bênção.


GATOS-PINGADOS


Significado: Tem sentido depreciativo usando-se para referir uma suposta inferioridade (numérica ou institucional), insignificância ou irrelevância.

Origem: Esta expressão remonta a uma tortura procedente do Japão que consistia em pingar óleo a ferver em cima de pessoas ou animais, especialmente gatos. Existem várias narrativas ambientais na Ásia que mostram pessoas com os pés mergulhados num caldeirão de óleo quente. Como o suplício tinha uma assistência reduzida, tal era a crueldade, a expressão "gatos pingados" passou a denominar pequena assistência sem entusiasmos ou curiosidade para qualquer evento.

METER UMA LANÇA EM ÁFRICA

Significado: Conseguir realizar um empreendimento que se afigurava difícil; levar a cabo uma empresa difícil.

Origem: Expressão vulgarizada pelos exploradores europeus, principalmente portugueses, devido às enormes dificuldades encontradas ao penetrar o continente africano. A resistência dos nativos causava aos estranhos e indesejáveis visitantes baixas humanas. Muitas vezes retrocediam face às dificuldades e ao perigo de serem dizimados pelo inimigo que eles mal conheciam e, pior de tudo, conheciam mal o seu terreno. Por isso, todos aqueles que se dispusessem a fazer parte das chamadas "expedições em África", eram considerados destemidos e valorosos militares, dispostos a mostrar a sua coragem, a guerrear enfrentando o incerto, o inimigo desconhecido. Portanto, estavam dispostos a " meter uma lança em África".

QUEIMAR AS PESTANAS


Significado: Estudar muito.

Origem: Usa-se ainda esta expressão, apesar de o facto real que a originou já não ser de uso. Foi, inicialmente, uma frase ligada aos estudantes, querendo significar aqueles que estudavam muito. Antes do aparecimento da electricidade, recorria-se a uma lamparina ou uma vela para iluminação. A luz era fraca e, por isso, era necessário colocá-las muito perto do texto quando se pretendia ler o que podia dar azo a " queimar as pestanas".


Ditados mal interpretados


HOJE É DOMINGO PÉ DE CACHIMBO....

e eu imaginava como seria um pé de cachimbo, quando o correcto é:

HOJE É DOMINGO PEDE CACHIMBO...

Domingo é um dia especial para relaxar e fumar um cachimbo ao invés do tradicional cigarro (para aqueles que fumam, naturalmente...).

E pensamos que repetimos correctamente os ditados populares.

Diz-se:

Este miúdo não pára quieto, parece que tem bichos carpinteiros.

Foi uma grande dúvida na minha infância.... Mas que bicho carpinteiro é esse ? um bicho pode ser carpinteiro ?

O correcto é:
Este miúdo não pára quieto, parece que tem bichos no corpo inteiro.

Aí está a resposta ao meu dilema de infância!

Batatinha quando nasce, esparrama pelo chão.

Mas o correcto é:
Batatinha quando nasce, espalha a rama pelo chão.

Se a batata é um tubérculo subterrâneo, ou seja, nasce enterrada, como ela se esparramaria pelo chão se ela está debaixo dele"

Cor de burro quando foge.

O correcto é:
Corro de burro quando foge!

Este é o pior de todos!
O burro muda de cor quando foge? e de que cor fica.! Porque mudaria de cor.!!

Outro em que todos erram:

Quem tem boca vai a Roma.

Bem, esse eu achava que percebia, de um modo errado, mas percebia!

Pensava que quem sabia comunicar ia a qualquer lugar.

O correcto é:
Quem tem boca vaia Roma. (Isso mesmo, do verbo vaiar).

Outro que toda a gente diz de forma errada:
Cuspido e escarrado - quando alguém quer dizer que é muito parecido com outra pessoa.

O correcto é:
Esculpido em Carrara. (Carrara é um tipo de mármore)

Mais um famoso....

Quem não tem cão, caça com gato.

Entendia também, de forma errada, mas entendia! Se não tem um cão para ajudar a caçar, utiliza um gato! Embora o gato só faça o que quer, pode ser que nesse dia esteja de bom humor.

O correcto é:
Quem não tem cão, caça como gato, ou seja, sozinho!


 

Acordo Ortográfico - NÃO TEMOS QUE APRENDER A FALAR «BRASILEIRO»

 

NÃO SÃO OS PORTUGUESES QUE TEM DE ESCREVER E FALAR «BRASILEIRO».
ESTE (DES)ACORDO NÃO PODE NEM DEVE SER IMPLEMENTADO,
A BEM DA "LÍNGUA DE CAMÕES".
Já não é só o Centro Cultural de Belém, instituição de direito privado, sem tutela pública. Ou Serralves. Ou a Casa da Música. Já não são só a generalidade dos jornais que o ignoram: Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Público, Diário Económico e Jornal de Negócios, além da revista Sábado.
Já não só os angolanos que se demarcam ou os moçambicanos. Ou até os macaenses. Sem excluir os próprios brasileiros.
Por cá também já se perdeu de vez o respeitinho pelo Acordo Ortográfico. Todos os dias surge a confirmação de que não existe o consenso social mínimo em torno deste assunto.
São os principais colunistas e opinadores da imprensa portuguesa. Pessoas como Anselmo Borges, António-Pedro Vasconcelos, Baptista-Bastos, Frei Bento Domingues, Eduardo Dâmaso, Helena Garrido, Inês Pedrosa, Jaime Nogueira Pinto, João Miguel Tavares, João Paulo Guerra, João Pereira Coutinho, Joel Neto, José Cutileiro, José Pacheco Pereira, Luís Filipe Borges, Manuel António Pina, Manuel S. Fonseca, Maria Filomena Mónica, Miguel Esteves Cardoso, Miguel Sousa Tavares, Nuno Rogeiro, Pedro Lomba, Pedro Mexia, Pedro Santos Guerreiro, Ricardo Araújo Pereira, Vasco Pulido Valente e Vicente Jorge Silva.
É o ex-líder socialista, Francisco Assis, que se pronuncia sem complexos contra este «notório empobrecimento da língua portuguesa».
É o encenador Ricardo Pais, sem papas na língua.
É José Gil, um dos mais prestigiados pensadores portugueses, a classificá-lo, com toda a propriedade, de «néscio e grosseiro».É a Faculdade de Letras de Lisboa que recusa igualmente impor o acordo. Que só gera desacordo.
Um acordo que pretende fixar norma contra a etimologia, ao contrário do que sucede com a esmagadora maioria das línguas cultas. Um acordo que pretende unificar a ortografia, tornando-a afinal ainda mais díspar e confusa. Um acordo que pretende congregar mas que só divide. Um acordo que está condenado a tornar-se letra morta, no todo ou em parte. Depende apenas de cada um de nós.

A afronta de nos tomarem por parvos

 

O secretário de Estado quer-nos convencer de algo muito mais grave: é de que não deu por ela que lhe faltavam os números do dinheiro que ia para os offshores.
JOSÉ PACHECO PEREIRA 25 de Fevereiro de 2017
A mentira, seja sob forma directa ou rebuscada, em matérias públicas é inaceitável. Sobre isso não vale a pena dizer mais nada. Os governantes não tem obrigação de dizer a verdade — sim, há razões de Estado que podem implicar a mentira — mas nenhuma cobre os casos recentes. Mentir pode ser legítimo, por exemplo, para esconder, até ao momento do seu anúncio, uma desvalorização da moeda, ou quando está em curso uma qualquer operação com riscos para as pessoas ou para o Estado, sensível à revelação irresponsável da verdade. São excepções, mesmo muito excepcionais, e precisam de ser muito explicadas a posteriori, quando finalmente se pode saber a verdade sem custos. Há matérias delicadas cobertas pelo segredo do Estado que justificam que um governante, quando interrogado directamente, tenha que mentir. Não deixa de ser mentira no momento em que é proferida, mas trata-se de uma mentira instrumental, destinada a proteger um bem maior. É um estatuto que pode ser alvo de abuso, e é-o muitas vezes, mas os limites éticos do dilema verdade/mentira não se aplicam neste tipo de “sombras”.
Mas não é, de todo, o caso da história dos SMS, nem do misterioso caso das estatísticas dos offshores, que nada justifica serem cobertos por qualquer “manto diáfano” de mentiras, meias-mentiras, sugestão de mentiras e omissões da verdade. A cabeça de um ministro ou a honra de há muito perdida de um ex-governo estão em causa? Não mentissem, nem nos enganassem. Mas, dito isto, também é preciso ter muito cuidado, para que a mediatização medíocre das redes sociais e de alguma imprensa não confunda questões sérias com outras de menor gravidade. E o caso Centeno e os milhões dos offshores não são comparáveis em importância, sendo que toda a gente já percebeu o que se passou no primeiro caso, e ainda muito pouco se percebeu do segundo.
O que sabemos sobre o dinheiro saído para os offshores durante a governação PSD-CDS? Sabemos que foi muito, muitos milhares de milhões de euros, de que os dez mil milhões de que se fala agora são apenas uma parte. Sabemos que uma parte saiu legalmente e também sabemos, por vários processos em curso, que outra parte saiu ilegalmente. Vamos deixar para já a parte ilegal, de dinheiro de pagamento de subornos, de corrupção, de negócios à margem da lei, e vamos apenas falar do que saiu legalmente, e nessa parte podemos apenas ficar-nos por esta magra fatia de dez milhares de milhões que não foram devidamente incluídos nas estatísticas e sobre os quais não sabemos ainda até que ponto os procedimentos de verificação habituais pelo fisco se realizaram, ou seja, se são resultado de actividades legais sem mácula fiscal. Por que é que isso aconteceu e o que é que isso significa?
Vamos seguir a mais benévola das hipóteses, de que tudo estava legal, e que apenas não se fez o registo estatístico. Comecemos por um ponto prévio que é verdade para todas as histórias que envolvem offshores. Já ouvi dezenas de explicações esforçadas para justificar por que razão as pessoas e as empresas colocam o dinheiro nos offshores, desde a fuga ao conhecimento do património nos divórcios milionários até à protecção de património face a credores, aos pagamentos a jogadores de futebol, passando pelas necessidades de pagamentos no comércio internacional. Tudo é coberto por dois mantos: um é de que se trata de processos legais, por isso incontestáveis pela crítica; o outro é que, havendo paraísos fiscais em qualquer outra parte exótica do mundo, não é possível acabar com eles em qualquer outro sítio. Mas isso não implica que se considere normal o uso de offshores e, numa sociedade em que os governantes se indignam com os direitos “adquiridos” dos mais fracos, tenham uma soberana indiferença face a práticas dos mais ricos que roçam a ilegalidade e que prejudicam, e não pouco, a riqueza do país. E quando isto se passa em tempos em que os governantes fazem um discurso de austeridade contra os que não podem fugir aos impostos e aos cortes, e são indiferentes às práticas dos mais ricos de tirar dinheiro, riqueza, do seu país, revolta. Este é o pano de fundo em que podemos discutir esta questão, e aplica-se como uma luva ao Governo PSD-CDS, onde o ataque aos mais fracos foi a regra, e a complacência com os mais poderosos foi também a regra.
No fundo, no fundo, o núcleo duro de ideias sobre a sociedade e a economia do Governo Passos-Portas foi que a recuperação do país passava pelo aumento da riqueza dos mais ricos, que traria por arrasto uma melhoria das condições de vida dos mais pobres. Era em cima que deveria haver “liberdade”, enquanto em baixo deveria haver “ajustamento” e cortes, até porque os de baixo já estavam mais acima do que deviam e tinham que ser postos na ordem e devolvidos “às suas posses habituais”. Da legislação laboral ao “ajustamento”, este era o programa. Dêem as voltas que derem, esta era a concepção e ainda o é, como se vê na questão do salário mínimo. Qualquer ideia, aliás na base do ideário social-democrata, de que o Estado deveria garantir um equilíbrio social, era e é tida como uma violação das regras da “economia”, com os de baixo a quererem mais do que a “economia” lhes pode dar. Em cima, não há essas restrições e, por isso, a indiferença face ao que acontece com os offshores é completamente natural.
Este é, insisto, o pano de fundo da interpretação mais benévola da falta de dados sobre os offshores: que saíssem dezenas de milhares de euros do país, não interessava aos governantes porque não estava no centro das suas preocupações, como estava cortar reformas e salários e levar o fisco até aos cabeleireiros e aos biscates. Tratava-se de uma prática normal da “economia”. Mas se esta é a interpretação mais benévola, não é a mais sensata, como se vê pelas explicações atabalhoadas que governantes do tempo do PSD-CDS têm vindo a dar sobre o que aconteceu. E aqui é que, como no caso de Centeno, entendo que é uma afronta para os portugueses tomá-los por parvos, só que neste caso num assunto muito mais grave.
Desde Passos Coelho, furioso e malcriado na Assembleia, até ao passa-culpas do anterior secretário de Estado dos Assuntos Fiscais Paulo Núncio, até ao silêncio da ex-ministra das Finanças que acha que não é nada com ela, todos estão a tomar-nos por parvos. Afinal, a culpa foi dos serviços que não fizeram a estatística devida, ou dos procedimentos informáticos, que, pelos vistos, foram modernizados só para um dos lados do escalão de rendimentos, mas que parecem funcionar muito mal no topo dos rendimentos, porque, tanto quanto eu saiba, não foram os funcionários públicos, nem os reformados, nem os empregados do comércio, nem os operários, nem os enfermeiros, nem os polícias, que colocaram o dinheiro em offshores. Aliás, já não é a primeira vez que este tipo de implausibilidades acontecem nas finanças do Governo PSD-CDS, como foi o caso da “lista VIP”, já muito esquecido.
Mas há pior: o secretário de Estado quer-nos convencer de algo muito mais grave: é de que não deu por ela que lhe faltavam os números do dinheiro que ia para os offshores. Das duas, uma: ou foi grossa negligência, ou preferiu olhar para o lado, visto que os números eram incómodos para o Governo. Mas, mesmo que seja assim, de novo a mera sensatez obriga-nos a considerar como absolutamente implausível que ele, responsável pelo fisco, nunca se tenha perguntado, mesmo numa conversa casual: “Olhe lá, senhor director-geral, quanto dinheiro está a sair do país para os offshores?”. E Passos e a ministra também nunca sentiram sequer curiosidade sobre esse aspecto crucial da nossa economia, para verificarem que, afinal, não havia a estatística?
Presumir que tenha sido assim é tomar-nos por parvos, insisto. E eu não gosto.

A cabisbaixa feira portuguesa

Baptista Bastos

A cabisbaixa feira portuguesa


BAPTISTA BASTOS | b.bastos@netcabo.pt | 09 Junho 2016

Na minha malvada ingenuidade, pensava que Marcelo não enfileiraria no cortejo subserviente que costuma ir ao beija-mão de Merkel.
Marcelo Rebelo de Sousa foi a Berlim, caminhou pela passadeira vermelha, conversou, durante meia hora, com a senhora Merkel, e regressou muito feliz com o que a alemã lhe dissera. E o que lhe disse a alemã para o deixar tão feliz? Esta frase módica: "Compreendo Portugal." Quanto a essa "compreensão", é um enigma que comporta tudo: até a mais atroz ignorância. Despachou o expedito Presidente com o mais expedito dos comentários, configurando a imperatriz das cortes antigas, que nada diziam quando nada queriam dizer.

Há qualquer coisa de ignominioso nesta e em outras cenas semelhantes. E Portugal poderia muito bem passar em claro esta visita tão absurda como subalterna. Consta por aí, com os gritantes alaúdes da Direita, que Portugal vai ser sancionado não se sabe bem porquê. Quem manda nesta Europa amolgada e desacreditada é o Partido Popular Europeu, agremiação que reúne (nunca é excessivo dizê-lo) o que de pior existe nessa área, e à qual pertencem o PSD e o CDS. Marcelo teria ido lá pedir alteração nas datas da punição. O que não deixa de ser vergonhoso e desacreditante, para um país cansado de sanções e de exigências. Na minha malvada ingenuidade, pensava que Marcelo não enfileiraria no cortejo subserviente que costuma ir ao beija-mão de Merkel, que não passa de um factótum de interesses que se não revelam, e que transformaram a Europa num condomínio privado do capitalismo mais perigoso porque a pode conduzir a um cataclismo de resultados imprevisíveis.

Podemos hoje dizer que somos europeus livres? Não. Estamos a soldo e a mando de regras que nada têm que ver com a natureza específica de cada nação. Marcelo sabe-o muito bem. Ele mesmo, quando comentador, dissolveu a senhora Merkel num amontoado de absurdos: na ocasião, ela não passava de uma ignorante sem grandeza nem destino, provinda de uma toca misteriosa e sombria. Referia-se, certamente, à ex-RDA onde a senhora nascera e fora criada. A verdade é que, ao longo dos anos, sem escrutínio, sem eleição, por livre arbítrio, Angela foi transformada na dona de um império que tem, sobretudo, servido a Alemanha, e deixado de rastos muito países, como aquele de que o seu Presidente foi pedir não se sabe o quê.

A situação na Europa está a tornar-se cada vez mais ameaçadora, e não é com salamaleques dos governos à Alemanha que as coisas vão melhorar. Não sou somente eu a advertir destes perigos. Jornais importantes como o The Guardian não se cansam de repetir a natureza desses perigos e o que eles comportam. O capitalismo, tal como hoje está, aguerrido e beligerante, é uma organização tenebrosa pelos seus mistérios, que, inclusive, tem levado o Papa Francisco a tomar sérias posições de aviso.

Há ameaças cada vez mais visíveis no horizonte das nossas vidas.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Os “momentos de glória” do grego Vangelis

Compositor que recebeu um Óscar pela banda sonora de Momentos de Glória, foi um pioneiro da música electrónica. Morreu aos 79 anos.

Rodrigo Nogueira 19 de Maio de 2022


O compositor grego Vangelis tinha 79 anos GEMS/REDFERNS/GETTY IMAGES

O grego Vangelis, pioneiro da música electrónica e músico a solo que subiu à fama como teclista da banda de rock progressivo Aphrodite's Child, morreu esta terça-feira, aos 79 anos. A notícia, desta quinta-feira, foi dada pela Agência de Notícias Grega, citada pela Reuters. Não se sabe a causa da morte, mas o portal noticioso Greek Reporter​ avança que o músico estava hospitalizado com covid-19 em França.

Nascido Evángelos Odysséas Papathanassíou em 1943, na pequena cidade de Agria, na Tessália, Vangelis, músico maioritariamente auto-didacta, formou a primeira banda em 1963, os Forminx, que tocavam a música pop-rock em voga na altura, tendo depois passado a produzir e a compor por encomenda, para outros artistas e para banda sonoras. Foi nessa mesma década que formou os Aphrodite's Child, assentes na voz de Demis Roussos. Tiveram um êxito europeu com Rain and Tears, gravada em França, tendo-se mudado depois para Londres. A banda lançou apenas três álbuns, o último dos quais, 666, é um influente álbum duplo de rock progressivo e psicadélico que foi conceptualizado por Vangelis e baseado no Apocalipse, o livro da Bíblia.

♫ Aphrodite's Child ♪ Rain And Tears ♫ Video & Audio Restored HD

Na década seguinte, Vangelis voltou a dedicar-se aos filmes e à televisão, trabalhando em bandas sonoras como L'Apocalypse Des Animaux, uma série documental francesa de Frédéric Rossif, com quem continuo a trabalhar.​ Rejeitou um convite para se juntar à banda de rock progressivo britânica Yes, onde iria substituir o teclista Rick Wakeman. Em Londres, onde montou um estúdio, começou a lançar mais música a solo.


Vangelis - Chariots Of Fire

A década de 1970 foi a de discos como Earth​, ainda assinando como Vangelis O. Papathanassiou e ainda no mundo do rock progressivo. Com um som mais próximo da música clássica, fez Heaven and Hell ou Albedo 0.39, que depois viriam a fazer parte da banda sonora da série de televisão Cosmos, apresentada por Carl Sagan. No final dessa mesma década, acabou por se juntar ao vocalista dos Yes, Jon Anderson, para quatro álbuns sob o nome Jon and Vangelis, com quem já tinha colaborado em Heaven and Hell. Juntos fizeram o álbum The Friends of Mr. Cairo, que inclui I'll Find My Way Home e State of Independence, que foi depois um êxito europeu na voz de Donna Summer. Em 1979 lançou também um disco a meias com a sua compatriota Irene Papas, actriz e cantora.


Jon & Vangelis - I'll Find My Way H

Em 1981, compôs e gravou a banda sonora de Momentos de Glória, o filme sobre dois atletas nas Olimpíadas de 1924 realizado por Hugh Hudson. Valeu-lhe um Óscar de Melhor Banda Sonora original e trouxe também um dos maiores êxitos da sua carreira, ainda hoje reconhecido, bem como lugar cativo em vários espectáculos dos Jogos Olímpicos ao longo das décadas posteriores. No ano seguinte, deu música a dois filmes. O primeiro foi Missing - Desaparecido, do seu compatriota Costa-Gavras, o vencedor da Palma de Ouro em Cannes sobre a culpa do Governo americano no golpe de Augusto Pinochet no Chile e a morte de cidadãos norte-americanos. Apesar de a banda sonora nunca ter sido editada, o tema principal teve uma vida paralela em vários anúncios. O outro foi o futurista Blade Runner - Perigo Iminente​, de Ridley Scott, sendo a sua banda sonora uma parte fulcral da criação da Los Angeles do – na altura longínquo – ano 2019.


Missing • Main Theme • Vangelis

Foram também dele as bandas sonoras de filmes como Antarctica, o êxito japonês de Koreyoshi Kurahara, ​Revolta no Pacífico, de Roger Donaldson, Lua de Mel, Lua de Fel, de Roman Polanski, 1492: Cristóvão Colombo, de Ridley Scott ou Alexandre, o Grande, de Oliver Stone, bem como séries documentais de Jacques Cousteau. Nem só de filmes e televisão foram feitas as suas bandas sonoras. No final dos anos 1990, um amigo seu, o neurocirurgião Stergios Tegos, editou uma série de vídeos educativos para estudantes de medicina com banda sonora original de Vangelis, cuja música, redescoberta anos depois, está disponível na internet sob o nome Tegos Tapes.

Além dos Óscares, foi também nomeado para três Grammy. O seu derradeiro álbum, Juno to Jupiter, inspirado pela sonda homónima da NASA – que tem o mesmo nome de um sintetizador por ele usado, o Juno-106 da Roland.