São as manifestações cívicas que se seguiram ao massacre e que mobilizaram milhões, que nos dão a esperança de que os europeus serão capazes de construir a unidade cidadã, recusando os nacionalismos identitários.
Começam a aparecer alguns textos a dizer “Je ne suis Pas Charlie” – porque os seus autores não se quererem identificar com as caricaturas do Charlie Hebdo. Se a liberdade de imprensa fosse apenas para os que partilham os nossos pontos de vista, não teríamos liberdade. A liberdade de imprensa é um valor essencial, e deve ser garantida sobretudo para os que não pensam como nós. Hoje somos Charlie como ontem fomos americanos, por solidariedade para com as vítimas de um crime abominável. Tal não impede que alguns considerem que algumas das caricaturas podem contribuir para criar uma imagem estereotipada dos muçulmanos e, por essa via, para alimentar a islamofobia. Num Estado de Direito, essas questões resolvem-se nos tribunais, aos quais, aliás, já recorreram, sem êxito, organizações das comunidades muçulmanas de França.
A islamofobia é hoje a grande ameaça à democracia europeia, plenamente enraizada numa ideologia da extrema-direita cuja sombra vai alastrando por toda a Europa- mesmo na Alemanha como denunciou, com muita coerência, Angela Merkel. Convém não esquecer que a extrema-direita ganhou as eleições para o Parlamento europeu em França e na Dinamarca. A islamofobia confunde-se, em muitos casos, com uma retórica anti-imigração fazendo dos que para a Europa vieram trabalhar o bode expiatório das frustrações dos europeus.
Mas, o que é particularmente grave, a islamofobia banalizou-se e ressurge com força no debate sobre o massacre de Paris. O racismo islamofóbico identifica os muçulmanos como uma raça incompatível com a democracia, que quer dominar a Europa e propensa à violência – por isso Marine Le Pen, Murdoch e outros consideram os muçulmanos responsáveis pelo extremismo jihadista e, como tal, a eles competiria a sua resolução. Vêem o islamismo radical como um fenómeno religioso e racial, quando é, na essência, político.
Um debate essencial é saber quem são os extremistas que em Madrid, Londres e agora Paris semearam o terror. A resposta simplista é, como fez Sarkozy, considerar que são uma quinta coluna estrangeira, de preferência migrante que ameaça a Europa! Seria provavelmente mais fácil se assim fosse, mas são cidadãos europeus, que se radicalizaram na Europa. São, antes de tudo, um problema europeu.
Os Islamistas violentos são uma ínfima minoria; desenraizados das comunidades muçulmanas, muitas vezes sem emprego e de bairros pobres e periféricos, com um sistema escolar deficiente; em muitos casos passaram pelas prisões europeias e aí foram endoutrinados para uma versão deturpada do Islão, que lhes deu uma justificação para os seus crimes. São impulsionados pelo mesmo nacionalismo identitário dos que perpetraram o massacre dos muçulmanos de Srebrenica e não são muito diferentes de Breivik, o radical de extrema-direita norueguês que assassinou 77 jovens e que declarou ter agido para salvar a “ Europa Ocidental do marxismo cultural e da invasão muçulmana”.
Os extremistas islamitas colocam também um desafio externo, na medida em que encontram inspiração e apoio nos mais radicais dos Jihadistas que combatem nas guerras civis que alastram nos estados falhados do Médio Oriente. O ISIS pode consolidar-se no estado falhado que é hoje a Síria, massacrada pelo regime de Assad, e no Iraque, depois da invasão americana, e começa a encontrar apoios na Líbia das mil milícias e das centenas de milhares de armas em venda livre.
A comunidade internacional devia e podia fazer muito mais para por termo à tragédia humanitária na Síria, que é um poderoso factor de radicalização de jovens europeus e do Médio Oriente. Os que intervieram na Líbia para proteger as populações e derrubar Kadhafi têm, também, agora a responsabilidade de garantir a construção de um estado e por termo à guerra civil.
o atentado contra Paris, onde vivi nos últimos 7 anos, é um crime contra uma cidade onde um multiculturalismo se impôs, apesar do Estado o não reconhecer oficialmente .É a diversidade humana, religiosa, cultural que faz da cidade-luz uma cidade-mundo, uma torre de Babel – foram assassinados cristãos, judeus, muçulmanos e não-crentes.
Em Paris vivem, trabalham, vão à escola, emancipam-se de tradições conservadoras, homens e mulheres, franceses, cujos antepassados emigraram para França (muitos das antigas colónias, nomeadamente do Magrebe) à procura de uma vida melhor ou em busca de refúgio perante a brutalidade de regimes ditatoriais.
A multiculturalidade faz conviver o anticlericalismo radical do Charlie Hebdocom o rap dos banlieus que Tony Morrison fez entrar no Louvre. Faz conviver conservadores, de todas as crenças, com movimentos defensores dos direitos dos homossexuais. Esta diversidade cultural é vista, por alguns, como uma ameaça à concepção que a França tem da sua unidade. Assumi-la significa aceitar que o que pode unir hoje os franceses não é uma história comum e nem mesmo uma concepção radical e singular do secularismo, mas sim os direitos fundamentais para todos, uma comunidade cidadã que garanta os direitos culturais e religiosos das minorias.
Garantir a convivência pacífica de todos os cidadãos europeus é retomar o sonho de fraternidade que, depois da tragédia da II Guerra Mundial, inspirou os fundadores da comunidade europeia.
A manifestação de políticos do mundo inteiro contra o terrorismo em Paris não pode deixar de lembrar a solidariedade do pós-11 de Setembro, que Bush instrumentalizou para a sua guerra contra o terror. Como hoje sabemos bem, outro caminho é necessário e possível: o da hospitalidade, da justiça e da democracia. O terrorismo não se combate com instrumentos da guerra, mas sim com as armas do Estado de Direito e da defesa dos Direitos Humanos. A democracia não se constrói, no sul do Mediterrâneo, excluindo e perseguindo os partidos islamistas que recusam a violência.
São as manifestações cívicas que se seguiram ao massacre e que mobilizaram milhões, um pouco por toda a França, que nos dão a esperança de que os europeus serão capazes de construir a unidade cidadã, recusando os nacionalismos identitários.
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