Escrevia daquilo que conhecia, com compaixão e ternura, e assim tem sido até hoje. Quando me irrito e encolerizo, habitualmente é com os donos disto que o faço. Nada de mais.
Revejo-o, agora, debruçado no estirador, de manhã até ao fim da tarde, desenhando ilustrações diversas e diferentes, que irão embelezar textos para o seu jornal de sempre: o Diário Popular. José de Lemos possuía um talento profundo e inimitável, e uma modéstia que chegava a ser irritante. Pequeno, gentil, de hábitos modestos e amizades infinitas, devo-lhe o meu destino e o gosto de amar as coisas singelas. Foi o maior desenhador do Segundo Modernismo, mas nunca atribuiu ao facto importância de maior. Fundador do grande vespertino, só ao fim da vida lhe permitiram ser sócio do Sindicato dos Jornalistas, e receber um ordenado que apenas lhe dava para sobreviver. Nunca se queixou, nunca se lamuriou. Foi "colaborador" à peça, e só não se esfalfava a trabalhar porque amava aquilo que fazia como ninguém: desenhar. Sobretudo desenhar para crianças, seu enlevo e sua devoção. Mas ele ilustrou tudo o que havia e era possível ilustrar para jornal. Era um homem de outro tempo, afligia-o a algazarra, o conflito, o ruído em ou com nexo. O 25 de Abril surpreendeu-o porque adivinhou o termo de uma época e a indecisão do que aí vinha. O turbilhão que se seguiu, a ordem que foi alterada, os novos compromissos e a ascensão inusitada de um grupo de oportunistas horrorizaram-no. O jornal deixou de lhe pertencer, como aconteceu com outros, para ser uma mascarada do que fora.
Não hostilizou ninguém e ninguém o hostilizou: ele estava acima da misturada, e o seu universo não era o daquele mundo confuso e desagradável. Os seus amigos, entretanto, iam morrendo, e as ruas que percorrera, amando-as, já não eram as suas ruas. Por vezes, à tarde, parava na Bénard, saudando este e aquele, os que restaram do seu tempo. Depois, descia o Chiado, passeava um pouco pela Baixa, e ia para casa, em Campo de Ourique.
Foi na Página Infantil, do Popular, por ele dirigida e orientada, que comecei a escrever contos para miúdos. Falava dos bairros pobres onde vivia, e das pessoas pardas e tristes que os habitavam, sem horizontes e sem esperança. Escrevia daquilo que conhecia, com compaixão e ternura, e assim tem sido até hoje. Quando me irrito e encolerizo, habitualmente é com os donos disto que o faço. Nada de mais.
Pedia-lhe para ilustrar textos meus, e ele dizia "só se forem bondosos"; oferecia-mos e possuo dezenas deles. Mesmo em frente à banca onde escrevo estão alguns, que me observam atentos e sorridentes. Gosto de me sentir acompanhado pelo afecto que eles me transmitem, e me lembram o homem pequeno e gentil que os criou e era meu amigo deveras. Este homem afável e generoso, um dia comprou um chapéu, para o colocar na cabeça, como dizia, quando passava por uma igreja. Anticlerical sereno e cordato, só conheci essa sua tineta, o que não o impediu de ser amigo de alguns sacerdotes, como o padre Dinis da Luz, açoriano, homem de grande cultura e sabedoria, com o qual ele gostava de conversar. Dinis da Luz era do Benfica, redactor do jornal A Voz, e cuja fina ironia se tornava implacável para com os oportunistas. O padre Dinis da Luz deixou, tumularmente, dispersos pelas páginas de vários jornais, entre os quais o Diário Popular, textos admiráveis pelo conteúdo e pela beleza literária. Recordo, com emoção e orgulho, estes meus amigos inesquecíveis.
Assim como lembro José Casanova, antigo director do Avante!, membro do Comité Central do Partido Comunista Português, um dos políticos mais nobres, honrados e dignos que conheci. Foi, até ao remate final dos seus dias, um homem de convicções e de amizades inamovíveis. Há semanas, telefonou-me, para saber de mim, e conversámos durante um tempo das novidades e das indecisões em que vivíamos. Gostávamos um do outro e isso nos aproximava.
José Casanova. Adeus.
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