domingo, 11 de janeiro de 2015

Deus e Charlie RICARDO GARCIA 11/01/2015


Sou Charlie por todos os que morreram, que foram agredidos, presos, perseguidos, torturados, vítimas da intolerância.

Deus estranhou quando lhe apareci pela frente, sem marcação prévia.

- O que estás para aqui a fazer? Ainda não foste chamado.

- Eu sou Charlie – disse-lhe.

- Agora toda a gente diz isso…

- É verdade. Com certeza compreenderá porquê.

- Claro. Até eu, que vejo tudo, fiquei chocado. Diz-me uma coisa: tu alguma vez sentiste-te ameaçado?

- Duas vezes, com uma pistola à cabeça.

- Por aquilo que escreves?

- Não, assaltos.

- E por seres jornalista, alguma vez?

- Para falar a verdade, não realmente.

- Diz-me porque és Charlie?

- Eu sou Charlie por Wolinsky, Cabu, Charb, Tignous, Maris e todos os outros que foram mortos em Paris, por não abdicarem da liberdade.

- Parece-me bem.

- Também sou Charlie pelos jornalistas que foram mortos em 2014 enquanto investigavam corruptos, expunham fraudes, denunciavam máfias, cobriam guerras ou simplesmente exprimiam a sua opinião. Por Zubair Hatami, Anja Niedringhaus e Nils Horner, que morreram no Afeganistão. Por Sadrul Alam Nipul, que foi assassinado no Bangladesh. Por Pedro Palma, Santiago Ilídio Andrade e Marcos Guerra, no Brasil. Por Aung Kyaw Naing, na Brimânia, Camille Lepage, na República Centro-Africana, e Germain Kennedy Mumbere Muliwavyo, na República Democrática do Congo. Por Mayada Ashraf, no Egipto, e Facely Camara, na Guiné-Conacry. Por MVN Shankar e Tarun Kumar Acharya, na Índia. Por Leyla Yildizhan, Khalid Ali Hamada, Muthanna Abdel Hussein, Khaled Abdel Thamer e Firas Mohammed Attiyah, no Iraque. Por Simone Camilli, Sameh al-Aryan, Rami Rayan e Khaled Reyadh Hamad, em Israel e nos territórios ocupados. Por Muftah Bu Zeid, na Líbia, por Octavio Rojas Hernández e Gregorio Jiménez de la Cruz, no México. Por Irshad Mastoi, Ghulam Rasool e Shan Dahar, no Paquistão. Por Pablo Medina Velázquez, Edgar Pantaleón Fernández Fleitas e Fausto Gabriel Alcaraz Garay, no Paraguai. Por Rubylita Garcia, nas Filipinas. Por Mohamed Isaq, Abdulkadir Ahmed, Abdirizak Ali Abdi e Yusuf Ahmed Abukar, na Somália. Por Michael Tshele, na África do Sul. Por tantos na Síria: Mahran al-Deeri, Salem Khalil, Rami Asmi, Yousef el-Dous, Zaher Mtawe'e, Atallah Bajbouj, Mohammed al-Qasim, Steven Sotloff, James Foley, Mohamed Taani, Ahmed Hasan Ahmed, Al-Moutaz Bellah Ibrahim, Mouaz Alomar, Bilal Ahmed Bilal, Ali Mustafa, Omar Abdul Qader e Turad Mohamed al-Zahouri. Por Andrei Stenin, Anatoly Klyan, Igor Kornelyuk, Andrea Rocchelli e Vyacheslav Veremiy, na Ucrânia. Por Luke Somers, no Iêmen. E por muitos outros, mais de mil, que morreram nos anos anteriores enquanto contavam a sua história do mundo.

- Mais alguma coisa?

- Sou Charlie também por todos os outros que morreram, que foram agredidos, presos, aterrorizados, perseguidos, torturados, vítimas da intolerância em relação aos seus pensamentos, seus credos, seus escritos, seus desenhos, sua cor da pele, sua orientação política, seu clube de futebol, seu país, seu bairro, sua tribo, seu grupo de amigos. E por todos os que foram arrastados para estes conflitos, matando por instinto ou morrendo como moscas. Sou Charlie por todos eles, contra o ódio e pela liberdade.

- É tudo?

- Não. Vim aqui para lamentar nunca ter dito nada disto antes.

- Ok, está dito. Agora volta lá para baixo e vai trabalhar.




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