terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Rumo ao Abismo


Raquel Varela

E o incrível aconteceu…Foi hoje anunciado, depois de 8 mortos nas urgências – um número inusitado que não é uma mera flutuação estatística – que “as urgências privadas podem vir a tratar doentes do Serviço Nacional de Saúde em alturas de maior afluência aos hospitais”. Quem trabalha com contas públicas de forma séria sabe que era este o objectivo. As urgências no sector privado cresceram com a Troika 84%. Trata-se agora não de remunerar decentemente os profissionais de saúde no sector público para garantir a todos uma saúde digna – usando os impostos que pagamos para tal – mas de usar esses mesmos impostos para ampliar o mercado de urgências no sector privado. E a minha nota é que com esta medida, a médio prazo, vão morrer mais pessoas. A médio prazo, no sector privado não vamos ter nem bons cuidados de saúde, nem salários decentes, vai haver em consequência quedas da produtividade (uns fingem que pagam, outros fingem que trabalham) e por isso vamos ter – escrevo-o – mais mortos no futuro nas urgências nos hospitais privados do que hoje nos públicos. E é essencial dizê-lo que hoje há meios num país que produz de PIB 170 mil milhões de euros e em que quem vive do salário paga o maior volume de impostos de sempre, para garantir que no público estas situações serão de todo evitadas.

Porquê? Porque o sector público serve de bitola ao privado e está a ser desnatado. Com o fim dos consultórios privados pela queda do consumo interno, e o desmantelamento dos serviços públicos, e a queda do salário médio dos médicos no público, cai por arrastamento o salário destes no sector privado. Porque os médicos no privado deixam de ter força negocial para exigir boas condições laborais. Agora podem fazê-lo, e cada vez menos (já há indicadores de queda dos salários oferecidos pelo privado desde que caiu no público), porque ainda podem dizer “ou me dão condições aqui ou saio, de volta ao público ou ao consultório”. Quando estes deixam de existir ou estão tão degradados que não são moeda de troca para exigir condições de trabalho decentes nós vamos ter um serviço privado caro e caótico; vamos ter urgências caríssimas, 22 horas de espera no sector privado e médicos pauperizados e desmoralizados. A consequência desta política é lapidar: destrói-se o serviço público, amplia-se o negócio da saúde no sector privado, este vai fazer da saúde a máxima rentabilidade possível (aumentando o lucro, descendo o custo unitário do trabalho), o que resultará na diminuição drástica da qualidade dos cuidados de saúde prestados no sector privado. Iremos ver os Mellos desta vida, os hospitais com luz e sem luz, acabar como a PT e o BES – vão ser desmantelados, vamos pagar mais por piores serviços. Paulo Macedo estará com honras de Estado e desonras públicas ao lado de Ricardo Salgado e Zeinal Bava. Ninguém que tenha conhecimentos rudimentares de economia pode hoje, com sinceridade, negar esta evidência, esta forma peculiar de levar um país para o abismo. Como ninguém pode negar que os médicos e profissionais de saúde, com a força que têm hoje, podem travar esta nau de loucos que engolem os nossos impostos regurgitando capitais financeiros, com a ética de um Nero que ateia fogo e ri.

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