JOSÉ DIOGO
QUINTELA
É MUITO ISTO
Sou só eu ou o Ébola é uma doença maçadora?
Nos anos 90, para apanhar o último
grande vírus mortífero, uma pessoa tinha
de ter relações sexuais ou drogar-se.
Que são actividades agradáveis. Mas hoje,
para alguém contrair o vírus da moda, é
preciso que lhe cuspam em cima. Ora, dentro de
uma prática sexual mais arrojada, o cuspo pode
até ter o seu espaço sem que seja considerado repugnante.
Pode, inclusive, ser encarado com folgança.
Mas se suceder no quotidiano é só javardo.
Não compensa uma virose.
Na sida, havia uma permuta com a diversão. Como
um escaldão depois de um estupendo dia de
praia. Uma espécie de senão que acompanhava
a bela. Já o Ébola é redundância de senãos, um
aborrecimento em cima de uma chatice. Não há
um trade off que o faça valer a pena. Com o Ébola
não há quid pro quo. Só quo quo.
“A Mónica cuspiu-me e ainda apanhei Ébola por
cima” tem muito menos graça do que: “A Mónica
participou comigo em actividade ribaldeira de alto
gabarito e, acontece, contraí sida. Mas já ninguém
me tira a ribaldaria com a Mónica!” Não estou a ver
alguém a dizer: “Tenho Ébola, mas já ninguém me
tira o perdigoto que a Mónica me mandou!”
Esta diferença na forma de contágio coloca-nos
uma questão fi losófi ca: que pecado é que os fanáticos
religiosos vão dizer que é culpado por isto? Os
zelotas censuram a falta de temperança e a luxúria,
pois proporcionam prazer. Mas porque é que
hão-de condenar a falta de critério na escolha de
amizades que leva alguém a dar-se com um sopinha
de massa que o enche de salpicos de saliva?
Só proporciona face humedecida.
Arranjar um culpado para a sida era fácil: as
prostitutas, os homossexuais e os toxicodependentes.
É da natureza da religião dizer que o sexo
e as substâncias estupefacientes ofendem a
Deus, que castiga a sensualidade.
Mas o que é que há
a reprovar a quem lhe cospe
em cima? “Vais penar com o
Ébola porque tens um amigo
com má colocação da posição
da língua, que causa um
sigmatismo cujo corolário é
a expelição descontrolada de
gotículas pela boca!” Mesmo
para um fundamentalista, é
capaz de ser demais.
Há passagens na Bíblia que
condenam coitos de vária ordem,
assim como a intoxicação,
mas não se consegue encontrar,
nem no Antigo nem
no Novo Testamento, uma
censura, ainda que implícita,
ao contacto involuntário com cuspo alheio. Sodoma
não foi destruída porque os seus habitantes
eram escarradores impenitentes.
Pelo contrário, sabemos que Jesus curava aplicando
o próprio cuspo nas mucosas dos enfermos.
Segundo São Marcos, quando um surdomudo
o procurou, “Jesus meteu-lhe os dedos nos
ouvidos e fez saliva com que lhe tocou a língua”
(Mc 7,33). O evangelista não revela se a primeira
coisa que o ex-mudo diz é: “Ui! Acho que apanhei
Ébola”, mas o procedimento de Cristo é justamente
o tipo de conduta que as autoridades sanitárias
proíbem.
Está a ser difícil apontar um comportamento
humano que possamos culpar pelo Ébola. E hoje
em dia é impossível acontecer alguma catástrofe
sem que o Homem tenha alguma coisa que ver
com isso.
Para já, o melhor é dizer que a culpa é do CO2.
Ou então do glúten.
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