RAQUEL VARELA 13/11/2014
O que Angela Merkel não disse, mas parece cada vez mais claro, é que os portugueses não têm nada que saber tocar piano. Devem é adaptar-se como força de trabalho às necessidades das empresas alemãs.
Angela Merkel disse recentemente que um dos problemas de Portugal e Espanha seria termos “demasiados licenciados”, o que obstaculizaria “a formação vocacional”. “Para cada braço uma enxada”, disse Salazar, na sua imensa erudição, em 1953. Em 2014, na sabedoria de Merkel, talvez cada português precise antes de uma chave de porcas para fabricar componentes para a Volkswagen.
Associa-se unicamente a origem da democratização do ensino às lutas sociais encabeçadas por movimentos de trabalhadores. A história é mais complexa. A reforma Veiga Simão é o primeiro sopro de ampliação do acesso ao ensino, ainda durante o Estado Novo, porque a expansão industrial era bloqueada, entre outros factores, pela baixíssima formação média dos trabalhadores. As fábricas, no modelo de mestre para aprendiz, não conseguiam formar à velocidade a que se expandiam. E essa formação representava um custo para a empresa. Custos – é aqui que quero chegar – que agora são quase todos assumidos pelos próprios trabalhadores. Estes financiam o Estado social e a sua própria educação através de impostos (superavitários), taxas, etc. E são mesmo convencidos a ampliar a sua formação em sucessivos cursos de formação privada.
A Revolução impôs o ensino unificado, um princípio revolucionário que dizia que a uns não podia caber o pão e a outros a poesia. Todos, pobre ou ricos, deviam ter acesso ao mesmo tronco comum de conhecimento (9.º ano): línguas e literatura, ciências, música, “trabalhos manuais”…
O conhecimento dos trabalhadores portugueses foi ampliado desde a década de 70: há hoje 1 milhão e 300 mil licenciados no país e mais doutorados do que havia licenciados em 1970. Não só mas também por isso, a produtividade do trabalho aumentou 430%. Mas o ensino vive esmagado entre pressões contraditórias. Todas as sociedades têm de produzir e bem, mas o quê e como é discutível.
O que Angela Merkel não disse, mas parece cada vez mais claro, é que os portugueses não têm nada que saber tocar piano. Devem é adaptar-se como força de trabalho às necessidades das empresas alemãs. Cada um no seu lugar! Provavelmente para, com os aumentos salariais na China (superiores a 20%), deslocalizar para o Sul da Europa parte das linhas de montagem que estão hoje na Ásia – uma hipótese humanamente desastrosa. O que há no modelo de produção chinês que possa ser exemplo? Os horários de trabalho de 16 horas? Os salários de 70 dólares? O compromisso assinado pelos trabalhadores da Foxconn em como a família não recebe indemnizações se eles se suicidarem?
A formação profissional era em tempos suportada pelos mercados, isto é, as empresas, e é hoje custeada pelos trabalhadores. A inovação dava-se no seio das empresas e é hoje em grande medida transferida para as universidades, públicas, com os projectos e exigirem mesmo a criação de “um produto” e as empresas a exigirem cursos superiores ultra-especializados em vez de suportarem essa especialização dentro da empresa. E o universal da universidade desapareceu sob um manto de conhecimento superficial e fragmentado, funcional para as empresas e disfuncional para a sociedade. Cereja em cima do bolo, uma parte da ciência é simplesmente mercantilizada, no âmbito de parcerias público-privadas que garantem à empresa, fundação privada, etc., uma renda fixa – investigadores privados pagos pelo orçamento público.
Esta adaptação aos mercados é moldada pelo ritmo do retorno dos investimentos que hoje é de cerca de 18 meses em Inglaterra, por exemplo. Na política científica, este tempo, que é o da remuneração veloz dos investimentos, sem qualquer estratégia produtiva a longo prazo, bloqueia a produção: raros são os projectos científicos que são financiados a mais de dois anos em Portugal (cinco na União Europeia).
Nesta desordem destrutiva há uma ostracização das ciências fundamentais – burlesca. A separação entre ciência fundamental e aplicada ou entre ciências sociais e exactas é fictícia e do ponto de vista produtivo regressiva.
Modelos complexos de economia para estudar uma determinada variável social são hoje criados e analisados por físicos teóricos e matemáticos. Um médico não pode fazer investigação em diabetes se não parte do pressuposto de que o salário médio do trabalhador não permite ter acesso a quantidades suficientes de proteína animal e ele ingere sobretudo hidratos de carbono. A forma como nos relacionamos com os outros e que nos distingue como humanos é a linguagem, que se tornou tão complexa como as sociedades. Um problema de matemática mal enunciado na sintaxe é incompreensível para uma criança. Quem domine mal a linguagem não consegue fazer nada. Nem história.
Uma greve no primeiro quartel do século XX pode ter tido um sector contra e outro a favor, mas é muito provável que a história seja mais complexa: pode ter havido um sector que lhe deu escasso apoio, outro que lhe deu apoio tácito, outro que apoiou em palavras mas bloqueou em actos, os que que apoiaram entusiasticamente… Quem não conhece as palavras não escreve história. Quem conhece história sabe que as medidas anticíclicas durante a grande crise iniciada em 1929 foram inúteis e a taxa de desemprego nos EUA só regressou aos valores de 1929 em 1941, quando as fábricas paradas para evitar descidas de preços (e da taxa de lucro) se reciclaram em fábricas de armamento e os desempregados em soldados…
Precisamos de formar pessoas com um ensino global e amplo, incluindo poetas. Se tivéssemos mais poetas, talvez tivesse soado aos ouvidos de Merkel um velho escrito de Brecht: “No momento de marchar, muitos não sabem / Que o seu inimigo marcha à sua frente. / A voz que comanda / É a voz do seu inimigo. / Aquele que fala do inimigo / É ele mesmo o inimigo.”
Historiadora, Universidade Nova de Lisboa e IISH (Amesterdão)
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