São o soft power da Turquia. Chegam a 400
milhões de espectadores em 75 países. Por causa
delas, o turismo vindo do Médio Oriente cresceu
exponencialmente. Histórias de amor, histórias
de acção, têm como pano de fundo um país islâmico
secular e moderno. Porquê, afinal, este
sucesso? Como se expressa esta influência? Que
visões do mundo e modos de vida veiculam?
Estás a ver as mulheres de burqa?
Não são de cá, são árabes”, diz-nos
uma amiga turca enquanto
caminhamos pela zona histórica
de Istambul, com a Mesquita Azul
no horizonte.
Há uns anos não se viam tantos
árabes em Istambul, garantem-nos
habitantes da cidade. Mas hoje, entre
os turistas que visitam aquela
que foi a capital do império otomano, os árabes
dominam — vêm da Arábia Saudita, dos
Emirados Árabes Unidos, da Jordânia, do Iraque,
da Síria, do Egipto... Perto das lojas em
áreas de comércio, como no bairro de Taksim,
apregoa-se em árabe.
Muitos chegaram por sugestão directa ou
indirecta das séries de televisão locais, o soft
power que a Turquia exporta para as regiões
vizinhas, influenciando, com enorme sucesso,
400 milhões de espectadores em 75 países,
segundo a Deloitte. O fenómeno é tal que, em
2008, o final da série Gumus (Noor em árabe) foi
vista por 85 milhões de espectadores no Médio
Oriente e Norte de África, deixando de boca
aberta os próprios produtores de uma série que
não teve assim tanto sucesso na Turquia.
De um milhão de dólares em 2007, a venda
internacional das séries turcas passou para
180 milhões em 2013, segundo o Ministério
da Cultura e do Turismo.
Nos últimos cinco
anos, as receitas das exportações aumentaram
15 vezes, revela a Deloitte. Foram as séries que
fizeram disparar o turismo na Turquia e há
estudos académicos sobre o tema que provam
essa relação directa (por exemplo, Impacts
of exported Turkish soap operas and visa-free
entry on inbound tourism to Turkey, de Faruk
Balli, Hatice Ozer Balli e Kemal Cebeci, 2013).
O número de turistas na Turquia aumentou
para mais do dobro desde 2002, segundo a Organização
Mundial do Turismo, e isso deve-se
à exportação das séries, defendem os autores
daquele estudo.
A qualquer hora, liga-se a televisão e lá está
uma série a passar. Séries que retratam histórias
de amor, mais próximas das telenovelas
latino-americanas (que passavam nas televisões
turcas antes de a produção nacional fl orescer).
Séries que falam de família, de jogos
de poder. Séries (poucas) que abordam temas
mais políticos. Neste momento, são mais de
60 em exibição.
“A Turquia está parcialmente no Médio
Oriente e desde a era republicana aquilo que
nos tem sido vendido é que é um país europeu.
Isto é uma questão de educação, de investimento,
de economia, de política internacional”,
analisa Sabiha Senyucel Gundogar,
directora do programa de relações internacionais
do think tank Turkish Economic and
Social Studies Foundation (que faz todos os
anos pesquisa sobre as percepções da Turquia
no exterior e vem detectando altas taxas de
reconhecimento das séries turcas). “Mas isso
tem começado a mudar nos últimos 15 anos.
A Turquia está a olhar para os parceiros do
Leste, Médio Oriente, etc. Não se trata apenas
de trocas económicas, há um aumento
das interacções sociais e com as séries há um
aumento gigante dessas interacções.” Ou seja,
as séries aumentam o soft power do país (expressão
cunhada pelo académico Joseph Nye
e que significa poder de atracção e persuasão
de um estado por meios não coercivos).
“A vida na Turquia é muito diversa e talvez
seja essa diversidade que as pessoas gostam”,
diz Sabiha Senyucel. “Fazemos este inquérito
sobre as percepções da Turquia e especialmente
entre as espectadoras é frequente
salientarem o papel das mulheres na vida:
acham que são retratadas de forma forte e
gostam disso.”
MULHERES MODERNAS
Chamam-lhe o Brad Pitt do Médio Oriente.
Só uma das páginas de fãs de Kivanc Tatlitug
no Facebook tem mais de 2,5 milhões de likes.
O rosto esguio, a pele morena, os olhos
e cabelos claros servem a comparação com o
actor americano. Vende séries como poucos
actores turcos.
Foi o protagonista de Gumus, o homem que
deixou muitos corações a suspirar. Na série,
ele perde a mulher num acidente de carro, fica
noivo de Gumus, mas o casamento é arranjado.
Acaba por se apaixonar por ela, mostrando-
lhe o seu amor de forma expressiva. Ela é
uma mulher talentosa, que constrói uma carreira
e tem vida própria. A série já tem quase
dez anos — estreou-se em 2005 —, de forma
que as imagens são um pouco datadas, mas dá
para perceber que a relação entre o par não é
muito diferente da que se vê em telenovelas
brasileiras ou mexicanas.
Há dez anos, quando criaram a história, as
argumentistas Sema Ergenekon,
38, e Eylem
Canpolat, 37, pensaram numa mulher que se
afi rma e “consegue que o homem se apaixone
por ela sem abdicar dos seus valores”. Isto
contam-nos sentadas no seu escritório no
bairro Bostanci (zona asiática de Istambul).
Nas várias séries que escreveram, quiseram
dar a imagem de mulheres com talento e uma
carreira profissional. Sobre Gumus, alguns
directores de canais de televisão do Dubai
disseram-lhes que “mostrou que a mulher
pode exigir ao marido que lhe preste mais
atenção, trabalhar fora de casa, que tem o
direito de pedir coisas”. Isso explica parte
do seu sucesso.
Como nesta, em várias das séries, a Turquia
aparece como um país moderno, muçulmano
e laico, distinto de alguns dos vizinhos que
seguem um islão onde é proibido beber álcool
e as mulheres andam com a cabeça coberta.
Porém, as argumentistas acham que o país se
está a tornar mais conservador.
Em Istambul, perto da Nova Mesquita, em
Eminonu, turcos misturam-se com turistas,
ao mesmo tempo que pedintes sírios, refugiados
da guerra, tentam receber uns trocos
de quem passa.
A saudita Bodoor Al-Bakram, 35 anos, usa
uma burqa negra, só se vêem os olhos, e ela
dá-nos pistas para explicar o fascínio pelas
séries turcas: são “uma lufada de ar fresco”,
desabafa. “Na nossa sociedade, mulheres e
homens estão separados. Por isso, as séries
dão-nos perspectivas diferentes de forma positiva”,
diz, enquanto olha para a rapariga que
a acompanha, também de burqa. Quanto às
mulheres turcas, “são modernas, independentes”.
Gostava de ser assim? “Quem me dera!”,
responde, e desaparece.
Há quem veja nas séries uma lufada de ar
fresco, mas por outras razões. Sentada num
muro perto de outra mesquita, Rawya Izaldeen
e as quatro irmãs esperam os pais e
o irmão. Com o rosto coberto pelo hijab, a
jovem de 24 anos conta que vem a Istambul
desde 2007 e que as visitas foram inspiradas
por séries como Noor, Amor Proibido e O Século
Glorioso. Vivem em Mossul, no Iraque, e
olham para Istambul como um lugar onde “as
pessoas não julgam os outros”, “toda a gente
tem uma personalidade livre” e há liberdade
de expressão.
Chega a mãe, de 50 anos, e acrescenta que
a liberdade dada às filhas “não deve ser tanta
quanto aquela que é mostrada nas séries”. O
irmão Kalid intervém para dizer que “o respeito
é muito importante” e que as mulheres
devem ser protegidas, como Deus manda. Ironiza:
“Todas as séries falam de amor, mas é
um amor falso, na realidade isso não acontece
e o homem não faz tudo para mostrar o amor
à mulher como acontece na televisão”, diz,
fazendo rir a família.
É justamente de amor que Farah Al Hafez,
25 anos, fala quando lhe perguntamos do que
gosta nas séries turcas, isto noutra zona de
Istambul, perto de Kabatas. Tem o rosto a
brilhar da maquilhagem e o cabelo coberto
pelo hijab. Fala com bastante mais entusiasmo
das séries turcas do que o irmão Abdul
e a cunhada Azza. Ao som da chamada para
a oração na mesquita ao lado, ela justifica:
“Vejo como os homens gostam das mulheres,
o amor entre as mulheres e homens é mais
perfeito”, confessa esta estudante de Gestão,
dos Emirados Árabes Unidos, sublinhando o
contraste que ainda existe em muitos países
árabes onde as mulheres não têm uma palavra
a dizer sobre com quem casam, não se podem
divorciar e os casamentos estão longe de ser
de igual para igual.
Essa foi aliás uma das razões que levaram
clérigos de alguns países como o Irão e a Arábia
Saudita a insurgirem-se contra séries como
Gumus. Com o poder económico da indústria
da televisão, veio a intromissão do poder político:
no Egipto, as séries turcas foram proibidas
por causa das relações entre os dois países
(a Turquia não reconhece a vitória do Presidente
Abdel Fattah el-Sisi); dentro de portas,
o actual Presidente Recep Tayyip Erdogan
deu-se ao trabalho de condenar em público
O Século Magnífico, a série que se estreou em
2011 e acabou há poucos meses sobre o sultão
Suleimão, o Magnífico (reinou entre 1520
e 1566). O Século Magnífico foi um tremendo
sucesso nacional e internacional, visto por
milhões de espectadores estimados, em 55
países, e 15 mil horas para 139 episódios, segundo
a produção.
Ao intrometer-se, Erdogan tornou político
o que não era intencionalmente político. Baseada
em acontecimentos históricos, O Século
Magnífico vai mais aos bastidores e jogos de
poder do harém de Suleimão, centra-se nas intrigas
palacianas da protagonista Hurrem, uma
escrava ucraniana que se consegue casar com
o sultão, dominando depois o palácio. E o palácio
é o Topkapi, um dos mais monumentais
edifícios em Istambul, para o qual centenas de
turistas fazem filas diárias. Muitas das cenas
passam-se na zona do harém imperial, parte
dele visitável, com as dezenas de divisões
cheias de azulejos e decoração barroca-otomana
de inspiração italiana — são os aposentos
onde viviam a mãe do sultão, as mulheres e
as concubinas, os filhos e os criados.
A série foi, porém, rodada em estúdio, produzida
por uma das maiores empresas da área,
a Tims. Vendo alguns dos episódios com legendas
em inglês, dá para perceber porque é apelativa
— um enorme investimento nos décors,
guarda-roupa, argumento que deixa sempre
um mistério no final do episódio, várias intrigas
de relações amorosas e a conquista de um
lugar na hierarquia social pela protagonista, a
escolhida entre as dezenas de mulheres.
Representou algo de novo na sua categoria,
diz-nos Timur Savci, o dono da produtora, por
email. O tremendo sucesso deve-se também
a factores como a qualidade da história e do
argumento, defende, mas é preciso não esquecer
que desde o início o objectivo era chegar a
uma audiência internacional, por isso o conceito
foi desenhado tendo isso em conta. A
crítica de séries de televisão Oya Dogan é mais
específica: há o interesse na história otomana
e no facto de nunca até então se ter visto o que
se passava num harém. Mas a razão principal
do grande sucesso “é que todas as mulheres
amam o poder, e que mulher não quereria
controlar um sultão [como a protagonista]?”
Explica: “É o sonho de todas as mulheres controlarem
um homem tão poderoso. Ela é uma
personagem incrível, é a que governa o sultão,
e no fi nal consegue o que quer, o amor de
Suleimão. É um tema tão sexy que é o que faz
com que a série seja tão vendida.”
O entusiasmo maior com O Século Magnífi -
co, continua Timur, começou “nos territórios
mais próximos da nossa cultura e região geográfi
ca”. Depois do Médio Oriente, Balcãs
e Europa, a América do Sul está agora interessada.
“Para a audiência no Médio Oriente,
era como um sonho, viajar no tempo, porque
conta a história de um império gigante, uma
grande potência mundial da sua região. E, como
as pessoas dos Balcãs estiveram em contacto
com o Império Otomano durante séculos,
há coisas que lhes tocaram, de certeza, em
termos de herança.” Há, além disso, muitas
coisas em comum entre a Turquia e o Médio
Oriente, os Balcãs e as ex-repúblicas soviéticas,
onde as séries têm tido igualmente sucesso,
acrescenta.
Tal como Hollywood serviu aos Estados Unidos
para se promover como potência, para
projectar uma imagem, atrair turistas e afirmar
a sua supremacia no mundo, também as
séries de televisão constituem parte do soft
power turco, analisa Timur Savci. “As pessoas
ficam curiosas em relação à Turquia. Ouvem a
língua turca, vêem o nosso território. Do ponto
de vista cultural e turístico, sem dúvida que
têm um impacto profundo.”
DAR CABO DO MERCADO AMERICANO
Izzit Pinto, director da distribuidora internacional
e líder Global Agency, sabia do potencial
desta série desde que viu o primeiro
episódio, e essa foi a razão que o levou a lutar
insistentemente por conseguir ser o seu re-
presentante internacional, investindo todo o
seu dinheiro no lançamento em Cannes, inclusivamente
as moedas de ouro que recebeu
no casamento, até fi car com a conta bancária
a zeros.
No seu gabinete em Nisantasi, uma das zonas
mais caras de Istambul, Izzit Pinto explica
que desde o início achou que a série iria
funcionar pela produção, pela história, por
ser “muito bem feita”. Já foi vendida para 65
países — e continua a vender. Pinto não revela
por quanto se vendem as séries, mas diz
que “cada projecto traz mais de 10 milhões
de dólares de facturação pelas vendas mundiais”.
Da equipa de produção de O Século
Magnífi co, dizem-nos que cada episódio de
uma série turca custa, em média, entre 300
e 400 mil dólares.
Nas costas de Izzit, 44 anos, há a fotografia
com a torre de Galata a centralizar o olhar.
Ele continua: na altura, há três anos e meio,
tinha apenas um empregado — agora, são 26;
quando arrancou com a empresa, depois de
ter estado no negócio dos sapatos na Tailândia
e dos livros, andou a colar posters que estavam
sempre a cair por serem de má qualidade
numa feira internacional — hoje, tem 110 projectos
e três pessoas na equipa de compras.
“O Século Magnífico mudou a minha vida e a
posição da empresa na indústria. Tornou-me
uma empresa de média dimensão que se está a
tornar maior.” O negócio das séries ainda está
para durar e para crescer, aposta.
Apesar de vender também programas e
concursos, o grosso das suas vendas são as
séries nacionais. Izzit diz que nunca falham.
Há umas que funcionam melhor em alguns
territórios, mas, em geral, As Mil e Uma Noites,
sobre uma mãe que procura a todo o custo
dinheiro para uma operação para o fi lho, é
a que abre as portas. Segue-se O Século Magnífi
co. Grandes compradores são os países
do Médio Oriente (com o Dubai a dominar)
e da Comunidade dos Estados Independentes
(estados que pertenciam à antiga União
Soviética, como Arménia, Azerbaijão, Bielorrússia,
Cazaquistão, Quirguízia, Moldávia,
Rússia, Tajiquistão, Turquemenistão, Ucrânia,
Uzbequistão).
A empresa já está a entrar na China e no
mercado latino-americano, vende bem nos
Balcãs, no Paquistão, no Afeganistão. Pinto
afirma que as séries turcas estão “a dar cabo
das americanas” nestes países e explica-o
com o facto de serem muito family oriented,
de mostrarem semelhanças culturais. “Por
isso, quando vêem uma série turca, os espectadores
desses países sentem que estão a ver
uma série local, algo que não acontece com
as americanas.” Há ainda um efeito dominó —
os sucessos das séries num país abrem portas
a outros. A influência turca vai para além da
televisão ou, melhor, acontece por causa da
televisão. “Se milhões assistirem a séries onde
se vê o estilo de vida, a comida turca, etc.,
isso aumenta a popularidade do país. Hoje, a
tagline Turquia é forte”, considera.
Tão forte que empresários como Can Okan,
presidente da Inter Medya, concorrente da
Global Agency, apostam que em breve as séries
turcas vão entrar no mercado ocidental.
Ele é dos que consideram que o número ofi -
cial de 180 milhões de dólares em exportação
de séries é bastante superior — acredita que
está nos 250 milhões “porque muitas empresas
fazem negócios através de outros países”.
Com mais de 90% da sua actividade dedicada
à venda de séries turcas, Can Okan acha que o
sucesso tem que ver com o facto de as histórias
serem quase sempre universais e de a qualidade
de produção ser melhor do que as de zonas
tradicionalmente exportadoras, como a América
Latina. Mas, por exemplo, venderam um
remake de Donas de Casa Desesperadas para o
Médio Oriente por cinco vezes mais do que a
versão original americana, por causa do cast
e da localização dos cenários.
OS MAUS SÃO A CIA E A MOSSAD
Sem som, Reacção, que se estreou há um par
de semanas, podia ser uma série americana.
Nota-se o investimento numa grande produção
no primeiro episódio: grande plano de um
navio de guerra, helicópteros aproximam-se,
a música é a de filme de acção.
A Turquia tinha uma forte cultura cinematográfi-
ca nos anos 1960-1980, contextualiza
o argumentista e produtor Basar Basaran, e
agora, anos depois, “o know-how ainda está
lá”. “Temos uma indústria interessante que
produz boas séries. O nosso país está no centro
do Ocidente e do Oriente e estamos a fazer
uso dessa vantagem, viver numa parte caótica
do mundo que está a alimentar a produção
criativa.”
Nem todos os episódios de Reacção serão
com elementos de produção sofisticadíssimos
como o primeiro. Há várias cenas de estúdio
ou de interior. Entramos num hospital desactivado
na zona asiática de Istambul, não muito
longe de Uskudar. À entrada, em círculo, com
colunas e portas de vidro, está uma equipa
de televisão a filmar, mas ainda não é a de
Reacção. Teremos de subir uns pisos para chegar
à ala onde os pais do protagonista estão
internados. A casa deles foi bombardeada:
há um ex-chefe dos serviços secretos que foi
dispensado, quer o poder de volta e pôs uma
bomba numa cadeira de rodas do pai. Mas
não os iremos ver no plateau porque a cena a
ser rodada é entre duas mulheres que fazem
parte do triângulo amoroso onde está metido
o protagonista. Num dos corredores, o realizador
número dois, Alper Derli (o realizador
principal é Onur Tan), está em frente ao pequeno
televisor.
No quarto está a actriz que
faz de médica e uma segunda mulher, actual
namorada do protagonista. Repete-se a gravação
da cena em que a médica pergunta à
outra mulher se sabe do companheiro, quer
avisá-lo de que os pais estão mal. Uma dezena
de pessoas prepara a cena que não durará
mais de cinco minutos.
A série baseia-se em acontecimentos políticos
reais, conta-nos Basar Basaran no escritório
da empresa que tem com outros sócios.
Há uma guerra entre duas facções do Governo
que querem controlar o país, “uma guerra
escondida como em House of Cards”, a série
americana em que esta se inspira.
Basar e outros argumentistas trabalhavam
na muito bem-sucedida série política O Vale
dos Lobos — que está no ar há mais de uma
década, e vê-la é uma das formas de alguém
estar a par do que se passa politicamente na
Turquia nos últimos anos, como nos diz o
jornalista e perito em relações internacionais
Soli Ozel.
O Vale dos Lobos, continua Basar, é sobre
“um tipo da máfi a que trabalha no Governo” e
a luta com os poderes internacionais, Estados
Unidos e Israel, a CIA e a Mossad, que querem
controlar o país “e tirar a liberdade de decisão
à Turquia” — “estamos a falar de imperialismo,
de os EUA, Israel e Reino Unido fazerem
jogos na Turquia”, algo “que acontece desde
que caiu o Império Otomano”, diz Basar no
seu escritório em Nisantasi.
Basar escreve sobre acontecimentos políticos,
tema quente e sensível num país onde há
um comité que controla o que pode e não pode
passar na televisão (do tempo de duração
de um beijo, à presença de álcool ou tabaco
e outros tópicos censurados). Mas diz ele que
não sofre censura. Quanto muito, pode fazer
autocensura: “Tentamos dizer tudo de forma
objectiva. Não temos opiniões subjectivas muito
vincadas porque isso é contra as regras do
drama, ficaríamos vistos como estando a fazer
propaganda. A política é mais usada como atmosfera
da história, um background.”
O que Basar quer dizer é que, a existir auto-censura,
ela acontece por causa das regras do
drama, não por razões políticas. “Sempre fui
contra o Governo, sou socialista. O meu sócio
é um republicano, secular, outro é liberal, não
acredita no Estado, um dos escritores é mais
nacionalista. Nesta mesa, há cinco escritores,
com uma média de 35 anos, com backgrounds
ideológicos muito diferentes. Estou a fazer
uma série para ser vista por 20 milhões, é óbvio
que há um auto-controlo.” Na Turquia, é
mais fácil entrar na política internacional — os
de fora são os inimigos, diz.
O argumentista revela que está planeado incluir
na série os protestos no Parque Gezi, que
decorreram em Maio de 2013, começaram como
contestação a uma renovação urbanística
na zona e acabaram em apelos a liberdade de
expressão, críticas políticas e prisões de manifestantes.
Basar tem uma visão específica: “O
Governo cometeu muitos erros, usou a força
exageradamente, o que aumentou a força dos
protestos, mas os poderes exteriores, como
a BBC e a CNN, exageraram os acontecimentos.”
Na série, vão tentar mostrar, “de forma
objectiva”, os acontecimentos, sem darem
“opiniões subjectivas muito vincadas”.
Se hoje filmasse uma caixa de sapatos e a
mostrasse em Reacção, Alper Derli desconfia
de que se meteria numa carga de trabalhos — é
que um escândalo de corrupção que envolveu
membros do Governo de Erdogan estava relacionado
com caixas de sapatos (em finais de
2013, numa busca de investigação sobre um
caso de corrupção, a polícia encontrou 4,5
milhões de dólares em caixas de sapatos na
casa do director do banco estatal Halkbank).
Com 27 séries realizadas, quatro delas políticas,
ele diz que há temas sensíveis com os
quais é preciso ter cuidado: religião e Atartuk
(o primeiro Presidente da Turquia que ainda
hoje tem a imagem em bandeiras em vários
locais do país e que instituiu a secularização
do Estado). “Tem mais que ver com o que se
passa neste momento no Governo e na política:
se se tocar num botão sensível, a série
pode estar comprometida.”
Há dois dias que o realizador não vê a família.
Nem tudo são rosas nesta indústria. Muitas
das séries não passam dos primeiros episódios
até serem descontinuadas, porque o exigente
sistema de ratings que mede as audiências diárias
dita o destino. Cada episódio, que dura em
média duas horas, fica pronto numa semana,
o que obriga a equipa a trabalhar em contínuo
seis dias por semana e mais de 12h por dia. O
ritmo é alucinante, queixam-se os trabalhadores
do meio, incluindo actores e realizador.
“As séries deveriam ter 60 minutos e pronto”,
queixa-se. “Duas horas é o equivalente a duas
séries nos EUA, ou a um filme. Fazê-lo em seis
dias é inumano.” Conta-nos uma das actrizes
secundárias de O Século Glorioso, Selen
Ozturk, que costuma brincar e dizer que fez
139 filmes porque cada episódio tem a duração
de uma longa-metragem.
Mas os canais de televisão encontraram nas
séries um íman de atracção de publicidade,
muito devido à sua longa duração, que mantém
os espectadores ligados. Falamos de um
mercado em que os espectadores vêem mais
horas de televisão por dia (média 3,9h) do que
nos restantes países da OCDE (3,5h), de acordo
com um estudo da consultora Deloitte.
O que acontece também é o sistema de ratings
fazer da audiência o juiz final do conteúdo
de uma série — é por isso que uma das mais
bem-sucedidas realizadoras turcas, Hilal Saral,
44 anos, discorda da sua existência.
VIRGINDADE ACIMA DE TUDO
Estamos sentadas na praça-cenário que reproduz
um bairro perto de Taksim — a diferença
é que o décor fica em Samandira, subúrbios
da parte asiática de Istambul. Há enormes
camiões e roulottes no terreno descampado,
a carcaça do que são prédios não apresenta
nada de interessante, mas do outro lado parece
mesmo que estamos noutro tempo e num
bairro verdadeiro de Istambul: vemos a chapelaria,
a modista, a loja de fl ores, etc. Agora,
é hora de almoço e a equipa onde trabalham
umas cem pessoas entra e sai da cantina. Há
tempos mortos entre as cenas, muitos aproveitam
para fumar.
Aqui são fi lmadas muitas das cenas de rua
da série Kurt Seyit e Sura — Kurt e Sura são os
nomes de um par, ele interpretado pelo Brad
Pitt do Médio Oriente, Kivanc Tatlitug. Passada
nos anos 1920, é a história da relação entre um
homem da Crimeia, de origem turca, e uma
russa com origens nobres. Apaixonam-se, mas
o pai de Seyit tinha o desejo de que ele casasse
com uma turca, muçulmana. Eles fogem para
Istambul. “É o confl ito maior na história”, diz
Hilal, ao mesmo tempo que conta que a ideia
do cenário onde estamos era reproduzir um
bairro onde viviam muitos russos e que tivesse
o espírito da época. “A religião não desempenha
nenhum papel, é mais uma questão de
cultura, de ritual”, diz, sobre as contrariedades
do amor dos protagonistas. A série vai na
segunda temporada.
Ter uma história de amor como elemento
essencial é um dos requisitos para o sucesso
de uma série, analisa, Oya Dogan, crítica do
diário Vatan. Mas nem todo o tipo de amor
serve. Tem de ser um amor que siga valores
tradicionais: “A forma de o amor ser experienciado
num casal turco é muito diferente
do que é na Europa. E o Médio Oriente talvez
tenha mais semelhanças. Primeiro, esconde
que se está numa relação, especialmente
da família; se há uma série em que há uma
mulher que tem uma relação com um homem,
ela deve ser virgem (isto é muito importante).
Para os países muçulmanos, nós e o Médio
Oriente, se a mulher dorme com um homem,
isso significa que eles vão casar — ela deve
perder a virgindade com o homem com quem
vai casar. Se há uma mulher que dorme com
vários homens, a audiência vai rejeitá-la imediatamente.”
Mais temas presentes nas séries: o que é e
não é pecado. “Normalmente, a protagonista é
boa pessoa, pura, um pouco naive. Há sempre
uma armadilha à espera dela, pessoas que a
querem tramar. Ela cai na armadilha, reza,
consegue ser salva, livrar-se dessas pessoas
com a ajuda de Deus. Para os muçulmanos, é
pecado procurar vingança, portanto a actriz
nunca procura vingar-se: manda as pessoas
para Deus e, se alguma coisa má lhes acontece,
não é obra da protagonista mas de Deus.”
Como crítica que vê entre seis a oito horas
diárias de séries durante o arranque da
temporada, Oya Dogan tem notado ajustes no
conteúdo das séries em sequência do impacto
internacional. Ou seja, os produtores dirigem-se
a uma audiência que vai além-fronteiras.
Isso traduz-se, por exemplo, no facto de se
verem personagens a rezar, de existirem mais
referências religiosas, porque “a forma como
se experiência a religião no Médio Oriente é
mais intensa”. A pensar nos países europeus,
foram introduzidas “personagens mais modernas,
mais democráticas, com rostos mais ocidentais”.
“Mas claro que há elementos turcos
que falam à audiência turca. Por exemplo, se
numa série a protagonista é moderna, a personagem
secundária vai ser mais tradicional
para contrabalançar. Especialmente no Médio
Oriente, o conteúdo não é assim tão determinante,
eles gostam é dos actores.”
Eylem Canpolat e Sema Ergenekon não
escrevem a pensar na audiência do Médio
Oriente, onde têm um sucesso gigante, mas
dizem que os problemas sociais da Turquia e
do Médio Oriente são os mesmos: o lugar das
mulheres na sociedade.
No geral, porém, nenhum dos argumentos
de séries é demasiado complicado, nenhuma
exige muito raciocínio a um espectador
que quer apenas ser entretido e olha e ouve
a televisão enquanto faz outras coisas, como
apontam alguns estudos. Já em séries mais
políticas como O Vale dos Lobos, o que está
em jogo são as cenas de acção, os tiros, as
perseguições, analisa. Oya Dogan acha que
há propaganda, mas não directa: a Turquia
é representada como o país importante que
define as regras da região, nelas apela-se aos
sentimentos nacionalistas.
Soli Ozel, professor de Relações Internacionais
na Universidade Kadir Has, em Istambul,
e colunista no diário Habertürk, especialista
em Médio Oriente, diz, porém, que os produtores,
os realizadores, escritores e actores
das séries populares vêm da ala secular na
Turquia. “De alguma forma, o sucesso das séries
era o florescimento de algo que já vinha
de trás, mas que coincidiu com o Governo
AKP (de Erdogan), que tirou dividendos disso
— um sinal do soft power turco.” O Governo
beneficiou porque a popularidade “foi ao
encontro” da maioria que era muçulmana,
próspera, com a Turquia a mostrar soft power
em relação aos vizinhos e a ser enaltecida pelos
que a rodeiam.
Algumas séries tornaram-se extremamente
populares fora do país: Ozel estava em Chicago
a tomar um brunch e a dona do café veio perguntar-
lhe o que ia acontecer a uma das personagens
de O Século Magnífi co. “Obviamente
que a Turquia tentou cultivar boas relações
com os países árabes e [o sucesso das séries]
também ajudou em termos de marketing.”
E acrescenta: “Claro que há a infl uência das
séries no turismo árabe, mas mesmo antes disso
havia turistas árabes porque é muito mais
desconfortável estar na Europa ou nos Estados
Unidos do que aqui. Istambul oferece o estilo
de vida ocidental e o conforto de estar num
país muçulmano e não ser olhado de lado. É
um bom exemplo onde as pessoas se sentem
confortáveis. Como disse Obama, isto não é
onde o Ocidente e Oriente se confrontam, mas
é onde se encontram.”
Quanto à censura, “uma vez que somos
governados por um governo de direita, eles
muitas vezes não gostam do que a esquerda e
os liberais têm a dizer sobre a história política
do país”, afirma no seu escritório no jornal,
com várias páginas coladas na parede por trás
de si. “Podem não ser tão duros como são com
as notícias, mas há sensibilidades que se tenta
não violar.”
Depois do sucesso de Gumus, as argumentistas
Sema Ergenekon e Eylem Canpolat escreveram
outras séries, entre elas, a que agora
está no ar, Preto, Dinheiro, Amor. É sobre um
fi lho que tenta salvar o pai de um crime que
não cometeu, apaixona-se pela juíza e esconde
a sua identidade. Mas não é só sobre isso. Por
exemplo, a venda ilegal de armas pela mão de
homens de Estado e a lavagem de dinheiro
que aparece a dada altura têm que ver com
as acusações ao Governo de Erdogan. “São
críticas escondidas numa história de amor,
não são apontadas de forma óbvia — estão lá
de forma subliminar. Ou o comité (de censura)
não quer saber, ou não percebe — mas a
audiência percebe-o. Sabemos disso através
das redes sociais” e dos comentários que as
pessoas deixam, dizem.
Nukhet Sirman é antropóloga e uma espectadora
intensa de séries como material de pesquisa.
Quando soube que entrevistámos as
argumentistas de Preto, Dinheiro, Amor ri-se:
“Morro de curiosidade para saber o que elas
disseram!”
Professora no Departamento de Sociologia
da Universidade de Bogazici, Istambul,
enquadra a questão das séries na tradição
cinematográfica turca dos anos 1960 e 1970,
em que os filmes retratavam temas sociais
como “o significado da modernidade”. “Lidavam
com problemas reais da sociedade,
onde havia uma migração urbana e pessoas
que não se adaptavam.” A televisão chegou
e tomou conta do lugar do cinema, só que
no princípio os turcos viam Dallas, Dinastia,
séries americanas exportadas para a Europa
e Portugal, viam até telenovelas brasileiras
como Escrava Isaura. Séries sobre pessoas à
margem da sociedade, sobre vizinhos, sobre
família, sobre relações entre os sexos eram
depois enquadradas num tema: o amor. Embrulhadas
nesse tema, apareciam questões de
classe com ricos e pobres a apaixonarem-se
e a criarem dilemas sociais. “Os pobres eram
sempre vistos como não modernos, os ricos
como modernos”, acrescenta.
As relações entre os pares amorosos continuam
a dominar as séries hoje, mas nos últimos
tempos outros temas como a justiça apareceram.
“Muitas séries lidam com esse tópico: a lei
é justa? A máfia é justa? A moralidade dos seres
humanos é justa? O espectador supostamente
saberá o que é justo — e o que é justo não é necessariamente
o que a lei reconhece
Porque
há uma questão com a justiça. E não apenas na
Turquia, mas em vários países da região. Estas
séries são mostradas nos Balcãs, no Médio
Oriente, em áreas que estão na periferia, onde
houve muita exploração e onde o capitalismo
devastou países, onde há toda a história do
comunismo e de revolta e da guerra…”
Para os vizinhos, o factor de atracção pelas
séries aparece por estarem interessados nas
mesmas questões, continua: “Qual é o papel
das mulheres, o que acontece com a igualdade
de género, que mudanças vão trazer para
a família?”
Politicamente, há várias séries que abordam
a questão curda, “mas os curdos são sempre
vistos como pessoas que é preciso transformar”:
“A questão é quem vai fazer essa transformação.”
Isto é algo que espelha um nacionalismo
assente na crença de que a Turquia
está rodeada de inimigos. Os inimigos quem
são? “É toda a gente!”
É justamente de nacionalismo que fala Mehmet
Acar, crítico de cinema do jornal Habertürk.
O seu crescimento explica o sucesso
das séries turcas, defende. “Os turcos vêem
o seu próprio cinema/séries de televisão e isso
é muito importante porque as pessoas querem
sentir que a Turquia é um grande país: vêem
um fi lme ou uma série e confirmam isso.” Da
mesma forma, também os países da região
gostam de sentir a grandiosidade daquela zona
do globo, explorar os sentimentos de regionalismo,
acrescenta.
Ou seja, afinal, as séries de televisão podem
ser o soft power da Turquia, mas também podem
ser o soft power da região.
No quarto está a actriz que
Porque
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