sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Sou precário, mas tenho "direito ao bife". (a propósito de um reclame de hambúrgueres)



01 Agosto 2014 por Nicolau do Vale Pais

É, como dizia há uns dias o Daniel Oliveira ao Expresso, o Portugal dos tuck-tucks e dos call centers.

Ainda sou do tempo do "gostar de reclames". Confesso até que tive uma cassete de vídeo onde - sem sucesso, diga-se - tentei compilar os meus favoritos absolutos em publicidade televisiva. Achava eu que na publicidade se encontravam não só alguns dos mais espectaculares momentos de edição como também, claro, "punch lines" de arrasar. E, se na produção visual - mais cara -, o mercado publicitário português se encontrava deficitário, o mesmo não se pode dizer do chamado "copy", a arte do "slogan": "aquela máquina", como assinatura de marca da Regisconta, por exemplo, ainda hoje povoa o imaginário colectivo de muitos. E criar memória em algo tão deliberadamente vago e especulatório como a publicidade - características que cada vez mais partilha com a comunicação política - não é nada fácil. (*)

Está aí um anúncio de TV - que dá, ou devia dar, que pensar. É da McDonald's e é filmado em Lisboa, contando com dois personagens típicos do "glamour" contemporâneo da precariedade urbana, tão giro e "trendy" para todos, menos para os que têm de se safar dela: o turista e o jovem autóctone, neste caso, uma jovem. Tem como estrela um tal de hambúrguer "Chicago Classic", mais uma ideia brilhante para acompanhar a Coca-Cola, cortesia das mentes inventivas do "product development" culinário da grande cadeia de "chicha" cheia de molho e calorias e, no caso desta nova sandes, cebola roxa. E em que consiste a narrativa? Basicamente, vemos um americano, não em Paris, mas em Lisboa que, no buliço da capital, se cruza acidentalmente (como nos filmes, portanto) com uma alegre moça lusitana. A moça - supomos - vive muito feliz a mostrar Lisboa na sua motoreta do tipo tuck-tuck a turistas, quiçá porque emprego para a área de licenciatura onde os pais gastaram o pé-de-meia da reforma, nem vê-lo. É, como dizia há uns dias o

Daniel Oliveira ao Expresso, o Portugal dos tuck-tucks e dos call centers; concordo com o cronista quando diz (lido no seu perfil do Facebook) que "tuck-tucks e call centers aproximam-nos da Índia. Para os indianos, isto é o degrau de uma subida. Para, nós é o degrau de uma descida."

Mas, voltemos à narrativa: a menina leva o turista a conhecer Lisboa; ela tem um chapelinho de palha, ele usa barba, juntos tiram uma selfie, tudo o que é da praxe da vida moderna - que é moderna, não há dúvida, resta-nos saber se é, de facto, vida. Depois de uma passeata, ele convida-a para conhecer Chicago; mas, claro, não é Chicago no Illinois, USA., mas Chicago, o tal hambúrguer.

Ora, esta maniazinha pícara de retratar a geração mais qualificada da história portuguesa recente, de os enfiar para o saco da festividade turística como ananases obrigados a desabrochar sob qualquer clima é, a meu ver, uma das maiores agonias a que temos estado sujeitos. É o tipo de coisa que não entra no espírito crítico de um Marcelo Rebelo de Sousa, mas que está tão disseminada quanto a própria vulgaridade televisiva; o retrato geracional resulta lamentável, tanto neste caso, como nos exemplos das operadoras de telecomunicações e/ou promotoras de Festivais de Verão; tem vértice máximo no famoso anúncio da EDP onde a pedalada de uma classe média de poder de compra exaurido - entre outras coisas, por causa do custo energético, porra! - é colonizada por um "slogan" "a maior energia é a sua".

A indignação sobre estes retratos merece seríssima reflexão; quando vejo ministros, autarcas, bancos, vedetas e multinacionais a fazerem de conta que ainda não perceberam a hipocrisia por trás da condenação da República à alegria estival, fico alarmado. Muito mesmo. Até porque o único argumento plausível para justificar tão frívolo retrato cai por terra no momento em que se percebe que esta não é a glamourização do mérito ou da sustentabilidade, mas muitas - demasiadas - vezes, a da infame sobrevivência. Um bocadinho de coragem, em troca da nossa capacidade de manter o país à tona, apesar das pedras que os BES(s) lhe esconderam no porão, ficava bem aos nossos líderes. Sou precário, mas ainda não desisti do "direito ao bife", mesmo que metaforicamente falando.

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