04 Julho 2014 por Nicolau do Vale Pais
Num mundo onde os Estados estão casados com comunhão de adquiridos com a Finança, a memória já não conta, só a propriedade.
O século XX argentino foi marcado por sobressaltos permanentes: passa da sétima maior economia do mundo para o estado em que hoje se encontra: à beira do quarto incumprimento - ou "default" - em 30 anos. O seu declínio dura há cerca de cinco décadas, marcado por um agudo problema de desequilíbrios na distribuição de riqueza, ciclos loucos entre períodos de acelerado crescimento económico e recessão e - sobretudo nas últimos anos - um aumento exponencial da pobreza; a inflação mina hoje o que da Argentina resta. As suas relações com o exterior deterioram-se em proporção directa ao aumento do patriotismo exacerbado, marcadas que estão pelos resquícios históricos de uma cultura de exagero iconográfico Peronista, que a sua Presidente Cristina Kirchner tão bem reencarna.
Em 2007 - em operação mediática internacional concertada com Hugo Chávez -, acusou os Estados Unidos de tentativa de destruição da imagem do seu país por suposta fabricação de um caso à volta de financiamentos partidários internacionais, contrários "aos interesses da Pátria". Agora, a Argentina vê um tribunal americano decidir a favor dos 7% de investidores que, em 2005, não quiseram reestruturar os seus cupões de dívida; a decisão - que atira a Argentina para uma situação limite - soa mais a justicialismo do que a Justiça, como Rui Peres Jorge tão bem definiu neste jornal no passado dia 29 de Junho. Depois será o fim do acesso aos mercados, ou seja, o fim do acesso à vida para 40 milhões de pessoas. A Argentina é a terceira maior economia da América Latina e membro do G-20. E que importa isso à finança? Pouco, muito pouco: "Hedge Funds" como o de Paul Singer - o homem que tem o Estado Argentino no bolso - não têm nada a ver com Economia.
Era Nicolas Sarkozy ministro do Interior quando, em manobra de propaganda pura, e em plenos motins de Paris (2005), apelidou os revoltosos de "racaille", a "escumalha". Hoje, com Marine Le Pen já alapada no Parlamento Europeu, Sarkozy vê-se constituído arguido por suposta criação de uma rede de tráfico de influências, que se adiciona a outros escândalos mais ou menos da mesma ordem, como tinha sido o "escândalo Lancôme". O justicialista vê-se agora a braços com a Justiça, porque do lado de cá do Atlântico também se governa sobretudo para manter o poder, e se brinca com o futuro de milhões de pessoas. A República das Luzes, o farol Europeu, escurece rápida e inexpugnavelmente. De Gaulle dá voltas no túmulo enquanto a glória nacional chafurda na hipocrisia xenófoba.
"As pessoas têm estados de alma, os mercados não. As pessoas tomam decisões em função de critérios éticos, os mercados não. As pessoas obedecem a leis, os mercados quando podem, não. Os investidores compram e vendem para ganhar mais dinheiro ou para não perder mais dinheiro", dizia Pedro Guerreiro, ex-director deste jornal, no Expresso, no passado dia 30. O caso BES continua, continuará sempre. Sabemos que as acções da Portugal Telecom se juntaram à queda livre das daquele banco porque a PT decidiu comprar papel do mesmo, ou seja, decidiu financiá-lo. E os mercados, ascéticos, não gostam de contágios; como os xenófobos.
Todos nos lembramos de muitas notícias sobre a Argentina, Sarkozy ou o BES; mas num mundo onde os Estados estão casados com comunhão de adquiridos com a Finança, a memória já não conta, só a propriedade. Em boa honestidade, estes casos não são supressa nenhuma. Não há Justiça que nos valha até percebermos que o governo pela Finança mais não é do que o mergulho na iniquidade e na demagogia dos serventuários que o propalam. Economia sem interferência do Estado… em que planeta? Neste.
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