sexta-feira, 12 de setembro de 2014

De do do do, de da da da - a criatividade em vez da violência



27 Junho 2014 por Nicolau do Vale Pais

É a deslocalização total da forma para longe do conteúdo, o uso aleatório de conteúdos sem programa.

"Poetas, padres e políticos, todos têm de dar graças às palavras pelas posições conquistadas; palavras que gritam pela tua submissão, e não há quem lhes interrompa a transmissão (…) De do do do, de da da da, é tudo o que tenho para lhes dizer."
Sting, com os The Police, "De Do Do Do, De Da Da Da", do álbum "Zenyatta Mondatta", 1980.

Se há fenómeno que gostaria de perceber melhor, é esta patologia do "revival", particularmente ao nível das rádios - mas não só. É espantoso o número de horas que se consegue estar a ouvir rigorosamente as mesmas canções, em três ou quatro estações diferentes, intercaladas apenas por uns espirros de alegria mal condensada num diálogo entre locutores, que me há-de energizar para mais um dia de trabalho… É a deslocalização total da forma para longe do conteúdo, o uso aleatório de conteúdos sem programa. E com o auxílio de botões, lá vamos fazendo "zapping".

Vários clássicos tocam nestas omnipresentes ondas FM - do carro à loja - sempre dados como "eternos", o que, se não é verdade, passou entretanto a ser, já que parece não haver imaginação para muito mais, nem a nível de repertório, nem tão pouco em termos da sua análise. Por exemplo, "Money for Nothing", dos Dire Straits, é um "must" absoluto; no entanto, não há uma alma, nem que fosse mesmo só por razões pícaras, que se lembre de falar do (brilhante) aspecto crítico do tema em relação ao que (já) se estava a passar com o mercado da pop, da distribuição em massa globalizada e das suas consequências: "That ain't working, that's the way you do it, you play the guitar on the MTV"… Normalmente, estas visitas de médico são depois intercaladas com itinerários mais ou menos auto-consagrados, à volta de uma dúzia mal-amanhada de supostos grandes artistas, daqueles de um só êxito ("one hit wonders", como dizem, ironicamente, os anglo-saxónicos) - as bandas sonoras são aqui um manancial interminável, do filme "Karaté Kid" até "Eye of the Tiger", desse portento do cinema que foi "Rocky III". Já agora, o tema foi reescrito a pedido de Stallone, depois de este ter ficado a saber que os Queen - outros "habituée" inefáveis do "revival", com direito hoje a bandas de tributo e tudo - não permitiram o uso de "Another One Bites the Dust". Mercury lá saberia que não há pior purgatório que o da lembrança permanente.

Se temos de viver permanentemente com os ouvidos hipnotizados pelo passado, então ao menos que se saiba que passado é que estamos a citar, em vez deste exercício pobre de pequenas memórias aleatórias destinadas a acordar o consumidor que há em nós - voltemos aos Dire Straits, a ver se aumentamos as audiências. Se ouvir o tema com atenção, pode reparar que, além de uma construção e produção feitas para deixar brilhar o mais importante - a guitarra de Knopfler -, o tema conta, logo desde a abertura, com vozes de apoio inusitadas, cantadas por Sting.

Sting é outro que tal - conto, pelos dedos de uma mão, as vezes que alguém se tenha dado ao trabalho de o conhecer para lá da pop; a pop que o próprio nunca escondeu ser um território que lhe interessava, "como lhe interessavam as canções infantis e o deslumbre que todos temos por melodias simples" (em entrevista à Rolling Stone, nos anos oitenta). Foi exactamente neste espírito que compôs "De Do Do Do, De Da Da Da", tentando explorar os limites entre a alegria frívola do refrão e a profundidade política das quadras, absolutamente antagónicas entre si, de forma deliberada. Na época, com Margaret Thatcher e a sua infernal máquina de preconceito comunicacional no poder, Sting escreve uma canção sobre a corporativização da sociedade e a hipocrisia do moralismo vigente, num tema explícito na crítica e deliberadamente ligeiro na sua proposta hipnótica de alienação pela criatividade. Criatividade em vez de violência - uma proposta forte para contrariar o movimento "hoooliganista", cujo surgimento não de deixou de ser - pelo menos em contexto - muito semelhante à ressurreição neofascista desta ficção que se chama Zona Euro.

Este artigo é político? Tudo é político, incluindo a noção que a falta de qualidade da realidade não deixa de estar íntima - e muitas vezes, deliberadamente - ligada à falta de qualidade do entretenimento.

Sem comentários:

Enviar um comentário