A repeteca
por MANUEL MARIA CARRILHO
Sócrates,
um admirador de Sarkozy? Esta ideia, que se destacou na reportagem de
Daniel Ribeiro para o Expresso sobre a "nova vida de Sócrates em Paris",
surpreendeu muita gente.
Foi
no entanto o próprio José Sócrates quem, durante a campanha eleitoral
de 2009, revelou em duas entrevistas televisivas a sua grande
cumplicidade e afinidade com Nicolas Sarkozy, indicando-o (apesar,
disse, da sua amizade por Zapatero) como o líder político que mais
admirava e de quem se sentia mais próximo.
Terá
sido, sem dúvida, uma afirmação táctica, porque naquela altura Sarkozy
estava "em alta". Mas penso que também foi uma confissão genuína, à qual
se devia ter dado mais atenção. Porque o facto é que, se olharmos bem, o
jornalista Daniel Ribeiro tem razão: "Curiosamente, Sócrates parece ter
mais afinidades pessoais, e até políticas, com Sarkozy, do que com os
seus camaradas socialistas franceses."
Vejamos:
ambos desvalorizaram sempre os valores, as ideias e as causas, em nome
da alegada eficácia de uma ação constantemente encenada. Comungaram
sempre do mesmo voluntarismo político, que ignora a complexidade das
sociedades contemporâneas. Cultivaram sempre o mesmo reformismo "ao
empurrão", e o mesmo pragmatismo da chamada "cultura de resultados".
Partilharam
o mesmo tipo de narcisismo político que, por ignorância e sobranceria,
só convive bem com um deserto de ideias à sua volta. Convergiram no
deslumbramento de uma "modernidade" identificada com o financismo, com a
deriva das novas tecnologias e com o circo comunicacional. Revelaram o
mesmo tipo de reverência pela ideologia do sucesso, e uma negligência
semelhante em relação à generalidade dos imperativos sociais.
Demonstraram o mesmo tipo de tentações pelo controlo dos media, na base
de uma também análoga relação de fascínio/pavor por eles.
A
crise de 2008 apanhou-os, aos dois, completamente desprevenidos, e
ambos se especializaram na negação das evidências até aos limites do
possível. E também se revelaram almas gémeas ao desprezarem, tanto os
sinais da realidade como as lições da história.
E
o facto é que, para lá de meras banalidades sobre o regresso do Estado
(e, mais tarde, sobre a "salvação" do Estado Social), ninguém ouviu a
José Sócrates uma palavra que fosse sobre a necessidade - mais, a
obrigação moral - de os socialistas construírem uma resposta própria,
autónoma e consistente para a maior crise que o capitalismo conheceu nas
últimas décadas.
Preferiu,
pelo contrário, dar as mãos a Sarkozy e lançar-se com ele, em Janeiro
de 2010, na aventura de uma "moralização do capitalismo", numa
cumplicidade que o Presidente francês saudou sublinhando, como agora
lembra Daniel Ribeiro, "não haver um ponto de divergência entre nós".
Como hoje se fala de Merkozy, poder-se-ia então falar de Socrazy, ou de
Sarkotes...
Nada
disto me surpreendeu. Conheci José Sócrates em 1995, quando ambos
integramos o governo liderado por António Guterres, ele como secretário
de Estado do Ambiente, pasta então entregue a Elisa Ferreira. Mantive
sempre com ele relações de regular e frontal atrito, a começar numa
lista de nomeações que ele queria que eu, como ministro da Cultura,
fizesse em Castelo Branco, e a acabar, como se sabe, com a minha recusa
em aceitar que Portugal apoiasse para a liderança da UNESCO um facínora
com largo cadastro que lhe tinha sido sugerido pelo seu "amigo", o então
ditador egípcio Hosni Mubarak, que ameaçava queimar todos os livros da
cultura judaica ...
Pelo
caminho, as fricções foram muitas e quase sempre do mesmo tipo. Devo
dizer que nunca vi em José Sócrates convicções socialistas - no sentido
europeu de "social-democrata" - mas antes uma atracção pela paródia em
que infelizmente o socialismo tantas vezes se tem tornado, deslumbrado
com o capitalismo financeiro, as novas tecnologias e os malabarismos da
comunicação. Vivendo sempre perto do mundo dos negócios e dos futebóis, e
desprezando acintosamente o conhecimento, a cultura ou a educação, com o
mais perigoso dos desdéns, que é o que se alimenta do ressentimento e
da inveja.
Para
mim, o socialismo democrático era - e continua a ser, tanto quanto
possa ter algum sentido - uma afirmação de valores que se baseia
justamente na distância crítica em relação a tudo isso, e que se traduz
numa exigente crítica do capitalismo, numa lúcida desmontagem das
ilusões das novas tecnologias, e numa inequívoca reivindicação de
autonomia face à voragem mercantilista da comunicação. O socialismo
democrático deve ser um projecto de emancipação, e não um carrossel de
anúncios e de equívocos.
Em
2004, quando José Sócrates disputou com Manuel Alegre e João Soares a
liderança do PS, escrevi o que pensava e avisei: "Tudo pode acontecer,
mas seria grave que o PS pudesse ser conduzido por alguém que anda por
aí com um currículo em parte surripiado, em parte escondido." (Público,
07.09.2004)
Os
socialistas decidiram o que entenderam e os portugueses escolheram o
que pensaram ser melhor. Opções que, naturalmente, respeitei, com
esperança que a responsabilidade do poder viesse a ter algum efeito
benéfico. Foi uma esperança vã. A história fala por si, e dispensa
comentários: o desnorte com o caso da licenciatura em 2007, a total
incompreensão da crise em 2008, a aguda mitomania de 2009 e 2010, a
bancarrota em 2011. Pelo meio, um tratado de Lisboa inútil, que só veio
reforçar o poder alemão, e um reformismo esfarelado que raramente passou
dos anúncios.
Na
grande história do Partido Socialista, o "socrazysmo" foi um período
atípico, que deixou um longo rasto de oportunidades perdidas, de casos
estranhos, de histórias mal contadas e de encenações inúteis. Em seis
anos de governação nem tudo foi mau, e seria injusto esquecê-lo. Mas
sejamos claros: foram anos sem alma, numa constante deriva de valores e
de convicções. Não tirar daqui nenhuma lição seria, no mínimo, estúpido.
Tudo
isto torna penosamente patética esta história de "José Sócrates a
estudar filosofia em Paris". Sobretudo porque, depois das aldrabices da
licenciatura na Universidade Independente (hoje bem documentadas no
livro O Processo 95385, Publicações Dom Quixote), tudo o que se lê na
reportagem do Expresso lembra irresistivelmente aquilo a que Freud
chamou em 1920, no seu Jenseits des lustprinzips, a "compulsão de
repetição", e a que os brasileiros, de um modo mais corriqueiro,
chamam... uma repeteca.
Lá
temos de novo, como se pode ler na benevolente reportagem de Daniel
Ribeiro, a entrada por favor na Universidade, o aluno com estatuto
especial, os equívocos sobre o que de facto lá diz estudar (afinal, é
"filosofia" ou é "ciência política"?), a contumaz esquiva à prestação de
provas regulares e, até, a questão da língua (teremos agora o "francês
técnico"?). Domínio em que, note-se, José Sócrates parece conhecer bem
um provérbio que retrata o traço mais forte da sua congénita afinidade
com Nicolas Sarkozy: "Plus c'est gros, mieux ça passe!"
Creio,
contudo, que no momento de extrema gravidade que o País atravessa, o
que é urgente é afirmar outros padrões, tanto éticos como políticos. Os
tempos de crise que vivemos são tempos radicais. Sê-lo-ão, sem dúvida,
cada vez mais. E o radicalismo começa na moral, antes de se fazer sentir
na rua. Quem não o entender, será arrastado pela corrente do que aí
vem: basta olhar para o que se passou por cá esta semana
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