sábado, 31 de agosto de 2013

As colónias negam a lógica da História


20 agosto 2013 The Guardian Londres
Um pescador espanhol protesta na baía de Algeciras, do lado oposto do rochedo de Gibraltar, a 18 de agosto de 2013


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Os dias do império britânico acabaram e manter territórios outrora estratégicos, como Gibraltar, é uma relíquia do passado. O florescente sucesso de Gibraltar enquanto paraíso fiscal tem frustrado o seu vizinho empobrecido e a lutar contra a crise, mas o seu futuro parece seguro.
Simon Jenkins

Não há nada que supere uma canhoneira. O HMS Illustrious zarpou de Portsmouth, em 12 de agosto, e passou pelo HMS Victory e por uma animada multidão de patriotas. Uma semana depois, estava ao largo de Gibraltar, à distância de um tiro de canhão disparado de Cabo Trafalgar. O peito da nação arfa, as lágrimas ardem nos olhos. O espírito dos deuses está em marcha, pronto a dar problemas ao Rei de Espanha.

Há muito a dizer sobre o Império Britânico, mas este chegou ao fim – está morto, foi irradiado, já não existe. A ideia de um navio de guerra britânico supostamente a ameaçar a Espanha é absurda. Pretenderá bombardear Cádis? Irão as suas armas pôr termo a um engarrafamento da hora de ponta, numa colónia que boa parte dos britânicos considera estar cheia de infratores fiscais, traficantes de droga e elementos de direita que protestam por tudo e por nada? Os gibraltinos têm direitos, mas o porquê de os contribuintes britânicos deverem enviar navios de guerra para fazer respeitar esses direitos, mesmo que apenas “num exercício”, é um mistério.

Qualquer estudo das atualmente controversas colónias do Reino Unido, Gibraltar e as Malvinas, só pode chegar a duas conclusões. Uma é que o poder sobre elas reivindicado pelo Reino Unido é totalmente razoável, em termos de direito internacional; a outra é que, presentemente, tal reivindicação é uma completa idiotice.

Os Estados-nação do século XXI não irão continuar a tolerar nem mesmo a leve humilhação de abrigarem os resquícios de impérios dos séculos XVIII e XIX. A maioria dos impérios europeus nasceu da realpolitik do poder, sobretudo dos Tratados de Utrecht (1713) e de Paris (1763). Agora, a mesma realpolitik determina o seu desmantelamento. Um dos objetivos iniciais das Nações Unidas era atingir essa meta.
Resíduos do Império Britânico

Evidentemente que aqueles que vivem nessas colónias têm direito a ser tidos em conta, mas esse direito nunca prevaleceu sobre a realidade política. Nem o Reino Unido exigiu que assim fosse, pelo menos quando as circunstâncias o impunham. Os residentes de Hong-Kong e Diego Garcia não foram consultados, e muito menos lhes foi concedida “autodeterminação”, quando o Reino Unido quis atirá-los para o caixote do lixo da História. Hong-Kong foi entregue à China em 1997, quando terminou o “arrendamento” dos Novos Territórios. Diego Garcia foi reclamada pelo Pentágono e foi-lhe entregue em 1973. Os britânicos de Hong-Kong não tiveram direito a passaportes e os habitantes de Diego Garcia foram sumariamente expulsos e mandados para a Maurícia e para as Seychelles.

A segurança do Reino Unido não precisa desses locais. Não depende de portos de abastecimento de carvão no Atlântico. A França sobrevive depois de ter deixado de ser dona do Senegal e de Pondicherry, e Portugal sobrevive sem São Tomé e Goa. Quando os indianos invadiram Goa, em 1961, o mundo não levantou objeções. De facto, o plano argentino de invasão das Malvinas, em 1982, chamava-se Operação Goa, porque a Argentina partiu do princípio de que a ação seria igualmente encarada como uma solução pós-imperial.

Atualmente, os resíduos do Império Britânico sobrevivem, de um modo geral, nos interstícios da economia global. São os principais ganhadores da sangria fiscal resultante da globalização financeira. Muitos tornaram-se sinónimos de desonestidade. As autoridades tributárias norte-americanas falam irritadamente da Bermuda. George Osborne [o ministro das Finanças britânico] quer expulsar os infratores fiscais das ilhas Caimão e das Ilhas Virgens Britânicas.

Há muito que a Espanha se queixa do papel que Gibraltar desempenha no contrabando, na lavagem de dinheiro e no jogo offshore, que ficam fora do alcance do seu quadro regulamentar. Essas queixas culminaram num relatório do FMI de 2007 sobre as deficiências da regulação financeira da colónia. O estatuto de paraíso fiscal de Gibraltar valeu-lhe um aumento de riqueza, que alimentou a cólera de Espanha por ver tanto dinheiro circular por aquilo que considera ser seu território, sem ser tributado.
Colónias não pagam impostos
Estas colónias afirmam ser “mais britânicas do que os britânicos”, mas não pagam nenhum imposto do Reino Unido e funcionam como paraísos fiscais para capitais do país

Estas colónias afirmam ser “mais britânicas do que os britânicos”, mas não pagam nenhum imposto do Reino Unido e funcionam como paraísos fiscais para capitais do país. Gibraltar especializou-se em jogo na Internet. As colónias afirmam ser fiéis à coroa, mas não ao seu erário público nem à sua polícia financeira. São parques de atrações Churchillianos, com casinhas de colunas vermelhas, fish and chips e cerveja morna. Mas querem ter o que é bom, sem aceitar o que é mau. Quando os vizinhos se zangam, exigem que aqueles cujos impostos os protegem mandem em seu socorro soldados, diplomatas e advogados.

A argumentação jurídica trocada entre o Reino Unido e a Espanha é favorável ao primeiro. Apesar de o Reino Unido não pertencer ao espaço Schengen de livre circulação, em teoria, todos os Estados da UE facilitam a circulação dos seus cidadãos. A proposta espanhola de 43 libras [50 euros] de taxa de entrada é excessiva. Seria irónico ver os ministros conservadores defender a sua causa junto dos odiados tribunais europeus – mas é a instância adequada a que recorrer. O rigor da lei é melhor do que uma encenação da severidade da guerra.

Dito isto, não cabe na cabeça de ninguém que um intermediário honesto não consiga resolver esta disputa com séculos de existência. O Reino Unido procurou, por várias vezes, um acordo de compromisso sobre a soberania de Gibraltar. Margaret Thatcher iniciou negociações em 1984, depois de ter resolvido com sucesso as situações da Rodésia e de Hong-Kong. Os espanhóis propuseram para Gibraltar um estatuto totalmente descentralizado, semelhante ao dos bascos e dos catalães, com respeito pela língua e pela cultura e um certo grau de autonomia fiscal. Como provou o caso de Hong-Kong, a transferência de soberania não significa absorção política.

O problema foi a inépcia dos espanhóis ter alimentado a intransigência dos gibraltinos. Os “assaltos” na fronteira são contraproducentes quando se quer conquistar as simpatias das pessoas, tal como os desembarques argentinos nas Malvinas foram um erro. A Espanha exigiu a soberania imediata – apesar de ela própria ter colónias no Norte de África. O facto encostou à parede os governos britânicos e tornou-os vulneráveis aos grupos de pressão coloniais, que brandiam a exigência de autodeterminação. Um referendo realizado em Gibraltar em 2002 mostrou que 98% apoiavam a manutenção do estatuto colonial. E uma votação nas Malvinas deu um resultado semelhante. O que estava longe de corresponder à disposição de Thatcher de entregar Hong-Kong e aceitar a “soberania e relocação” de Madrid e Buenos Aires.
Tribo de “britânicos” dourados

A verdade é que as colónias britânicas que são paraísos fiscais se sentem mais seguras do que nunca, abençoadas pela História com a proteção britânica e livres para passarem por alto sobre o lado negro da economia global, escapando aos impostos. Esta situação criou uma tribo de “britânicos” dourados, que vivem num perene mundo irreal. Quando perguntei a um gibraltino que afirmava ser “150% britânico” por que motivo não pagava pelo menos 100% dos impostos britânicos, este respondeu: “Porque haveria eu de pagar para pessoas que estão a milhares de milhas de distância?”

Enquanto negarem a lógica da História e da geográfica, nem Gibraltar nem as Malvinas estarão realmente “a salvo”. Um dia, estes resquícios acabarão por se fundir com as respetivas regiões interiores e deixar de ser uma pedra no sapato das relações internacionais. Esse dia chegará mais cedo, se os governos mundiais agirem no sentido de acabar com os paraísos fiscais.

Entretanto, os habitantes de Gibraltar podem continuar a votar a favor de “continuarem a ser britânicos”, durante o tempo que quiserem. Mas, se não aceitarem os impostos e a disciplina que a maior parte dos europeus aceitam, ao mesmo tempo que sugam negócios aos centros financeiros da Europa, não podem realmente esperar que um Estado da UE os proteja de outro. Uma fila com seis horas de espera em La Línea, uma vez por outra, é um pequeno preço a pagar pela recusa de se juntarem ao mundo real.


“Uma disputa absurda”
De forma a encerrar o contencioso sobre Gibraltar, os primeiros-ministros espanhol, Mariano Rajoy, e britânico, David Cameron, decidiram pedir à Comissão Europeia para desempenhar a função de mediadora. Bruxelas deverá portanto pôr termo a dias de escaladas verbais que “exemplificam na perfeição tudo o que a diplomacia não deve fazer”, estima o ex-deputado britânico do partido trabalhista, Denis Macshane, em El País. Para o ex-político, que renunciou ao cargo depois de terem sido descobertas irregularidades nas suas despesas parlamentares, as tensões em torno do “rochedo” derivam essencialmente de fatores internos que envolvem os dois homens políticos:


David Cameron e Mariano Rajoy são mais parecidos do que querem admitir. São dois dirigentes nacionais fracos, que não têm nenhum verdadeiro controlo sobre a evolução da política. Ambos estão fartos da UE. Ambos têm um terrível problema de desemprego juvenil. Ambos devem fazer frente a regiões-nações – a Escócia e a Catalunha – que não querem integrar-se completamente nas entidades que constituem o Reino Unido e a Espanha. Ambos tiveram grandes impérios, sonhos que não querem desaparecer e que persistem com os símbolos da monarquia. Ambos têm grandes problemas relacionados com o financiamento do seu partido. Ambos possuem zonas coloniais especiais, Ceuta e Melilha no caso de Espanha e as ilhas Malvinas e Gibraltar no caso do Reino Unido. […] Então, qual é o motivo por trás desta disputa absurda entre dois carecas que lutam por um pente, como dizia Borges acerca da guerra das Malvinas? […] O que vemos tanto no Reino Unido como em Espanha é a vontade de manipular os meios de comunicação e de aparecer em manchetes, em Londres, com o envio de navios de guerra na região, e em Espanha, com a proposta de formar um eixo comum com a Argentina para travar o Reino Unido na ONU. Boa sorte!

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