quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A crise não tem papas na língua


26 julho 2013 International Herald Tribune Paris

Arte de rua pelo artista Rallito-X, em Berlim. DigitalArtBerlin


A crise da zona euro empobreceu várias partes da Europa, mas contribui para criar neologismos coloridos. Graças a ela, alguns princípios económicos complexos fazem agora parte da linguagem corrente.
Raphael Minder

Os portugueses têm uma nova palavra, “grandolar”, que surgiu devido à crise do euro e significa “sujeitar um ministro a protesto, cantando uma canção revolucionária” [“entoar canções como forma de protesto pacífico, com o objetivo de impedir discursos ou comunicações de representantes de um governo”, segundo a definição do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, na sua edição na Internet]. Mas, hoje, ao fim de três anos de austeridade, até as crianças portuguesas “grandolam” os pais, quando não querem tomar banho.

Os italianos, que agora acompanham a evolução do spread [diferencial] entre as obrigações alemãs e italianas com uma paixão que, em tempos, só mostravam pelo futebol, lançaram palavras como “spreaddite”, que o diário de Roma La Repubblica definiu sarcasticamente como “intensificação do sofrimento causado pelo spread elevado”.

Na Grécia, as frases nascidas da crise dão colorido às conversas, nos cafés, nos escritórios e no metropolitano, em especial através da utilização irónica de expressões ou slogans empregues pelos dirigentes políticos, como a afirmação proferida, em 2009, pelo então primeiro-ministro, George A. Papandreou, de que havia dinheiro, quando obviamente não havia. “Não se preocupem, eu trato disso”, disse recentemente aos amigos um homem que comemorava o seu aniversário numa taverna de Atenas, ao ver que estes iam puxar das carteiras. “Eh, há dinheiro, não se lembram?”
A gíria da crise

A longa crise económica na Europa trouxe consigo taxas recorde de desemprego, grandes manifestações e, também, muitas formas mais subtis de avaliar os seus efeitos. A pouco e pouco, nos diferentes países, a crise criou igualmente uma linguagem própria, que traz para o uso popular termos financeiros dantes pouco rotineiros e dá origem a uma gíria que reflete o humor negro a que muitos recorrem para lidar com problemas persistentes.

A gíria da crise chegou mesmo às altas esferas do Governo e da sociedade. Numa tentativa de aplacar as preocupações relativas à hipótese de, à semelhança da Grécia, a Espanha vir a precisar de um resgate internacional, o ministro do Orçamento espanhol, Cristóbal Montoro, asseverou, no ano passado, aos espanhóis inquietos que “los hombres de negro” – os homens de negro, como passaram a ser conhecidos os funcionários da União Europeia – não estavam a caminho.

As mudanças na linguagem são tantas que, em junho, a Real Academia Espanhola, guardiã da língua castelhana, deu os últimos retoques num dicionário atualizado, introduzindo 200 palavras que tinham sido acrescentadas ou às quais tinham sido dados novos significados. Entre estas inclui-se a expressão “prima de riesgo” (prémio de risco), ilustrada com a seguinte frase comum: “O prémio de risco da nossa dívida soberana aumentou vários pontos”.
Cinco mil novas palavras

Os espanhóis, muitos dos quais nunca tinham ouvido tais termos antes do início da crise financeira, em 2008, usam-nos agora com tanta regularidade que é tão provável ouvi-los numa conversa com um motorista de táxi como nos noticiários da noite. Em matéria de linguagem, existe o “poukou”, que os gregos usam para se referirem ao período anterior à crise, e o momento atual.

Do mesmo modo, entre as cerca de 5000 palavras acrescentadas à versão atualizada do clássico dicionário da língua alemã Duden, publicada em julho, figuram diversos termos com origem na crise económica. Estes incluem “schuldenbremse”, literalmente “travão da dívida” e “eurobond” [euro-obrigação], uma referência à proposta de emissão de obrigações pela União Europeia, para cobrir a dívida dos países que usam o euro; os alemães temem que esses títulos os sobrecarreguem com obrigações onerosas. Embora a palavra exista, o Governo da chanceler Angela Merkel tem feito os possíveis para que o mesmo não aconteça com a obrigação.

De referir ainda a publicação recente de um livro do sociólogo francês Denis Muzet intitulado Les Mots de la Crise (As palavras da crise), que analisa os termos que entraram na língua desde o início da recessão económica. A lista de Muzet inclui “perte du triple A”, ou perda do triplo A (como no caso da notação das obrigações francesas); “suppressions d’emploi”, ou reduções de empregos; e “choc de compétitivité”, ou choque de competitividade – tudo medidas que o duro despertar da crise suscitou.
Crise define uma geração

“A maneira como falamos da crise contribui para o pânico; contribui para o depressionismo nacional”, afirma Muzet, inventando também uma palavra própria.

O sentido de austeridade está tão omnipresente que, em alguns locais, a palavra é aplicada a quase tudo. Uma mulher portuguesa que use uma saia curta pode muito bem ouvir um admirador perguntar-lhe se está em “austeridade”, isto é, a poupar no tecido.

A crise na Europa arrasta-se há tanto tempo que está a definir uma geração. Em Espanha, fala-se dos “Ni-Nis”, para designar os inúmeros jovens que não estão a estudar nem a trabalhar. Em Portugal, chama-se “geração à rasca”.

“Infelizmente, conheço muito bem os Ni-Nis, porque tenho de lidar com uma, em casa”, disse Carmen Blanco, de 43 anos, desempregada, referindo-se à filha de 20 anos, que desistiu do ensino secundário e está a viver com ela.

“Já lhe disse claramente que, sem nenhum tipo de diploma, corre o risco de ser uma Ni-Ni para o resto da vida”, conta a mãe.

A nomenclatura associada aos desesperados não se refere apenas aos jovens. Na Grécia, onde os cortes salariais e uma taxa de desemprego de 27% empurraram uma vasta nova classe para uma situação de descida de nível de vida, que se resume agora às necessidades básicas, as pessoas falam dos “neoptohi”, os novos pobres – um trocadilho com a palavra grega referente aos novos ricos.
A culpada de todos os males

Os nomes dados às manifestações e aos manifestantes representam um vasto leque. Em Espanha, os manifestantes designam-se a si mesmos como os “indignados”. Os manifestantes mais velhos ficaram conhecidos como “yayoflautas”, literalmente avós das flautas [numa referência ao termo depreciativo “perroflautas” (cães e flautas) usado pela ex-presidente da região de Madrid, para designar os “indignados”, associando-os a “hippies” que tocavam flauta ao lado dos seus cães.] “Marea blanca”, ou maré branca, refere-se às vagas de médicos e enfermeiros de batas brancas, que se manifestaram contra os cortes nos serviços públicos de saúde.

A palavra usada por quase toda a gente na Europa é “troika”, que se refere aos três credores internacionais – o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia – que, de Lisboa a Atenas, os cidadãos em dificuldades culpam por todos os seus males.
 

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