quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Bibi e o supremacismo judeu



Notas de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.


Jorge Almeida Fernandes



Ben Gvir


Que significa o resultado das eleições israelitas de terça-feira?

Mais do que a perspectiva de Benjamin Netanyahu regressar ao poder, é o triunfo da pior extrema-direita, o Partido Sionismo Religioso, de Ben Gvir, que obteve 10% dos votos e 14 deputados (em 120), tornando-se no novo kingmaker de Israel. Já não se trata dos territórios ocupados. O que marca o movimento de Ben Gvir, racista e supremacista judeu, é o projecto de minar a democracia israelita.

"O kahanismo venceu", escreve o diário Haaretz em editorial. "Israel está agora mais próximo de uma revolução autoritária religiosa e de extrema-direita, cujo fim é dizimar a infra-estrutura democrática sobre a qual o país foi construído." Será excessivo alarme?

Ben Gvir é discípulo de Meir Kahane, fundador da organização Kach, declarada terrorista em Israel e nos Estados Unidos, onde foi assassinado em 1990. Um outro seu discípulo, Baruch Goldstein, massacrou 29 muçulmanos numa mesquita de Hebron, em 1994. Ben Gvir foi até agora uma figura política marginal, "tóxica" para a própria direita israelita. Mas esta franja teocrática, que não reconhece o Estado laico e afirma a superioridade da lei religiosa sobre o direito civil, prepara-se para entrar no Governo.

"A terra do Grande Israel já não é a grande questão para ele. Trata-se de esmagar os palestinianos sob a sua bota", afirma o filósofo de esquerda Assaf Sharon, originário dos colonatos. Tanto palestinianos, como israelitas árabes. Os tempos mudaram. Quando outrora Meir Kahane falava no Knesset, os deputados do Likud e muitos dos religiosos abandonavam a sala.

A batalha da Justiça

"Os kahanistas não querem apenas ministérios (…) têm uma agenda", escreveu nas eleições de 2021 o analista Nauhm Barnea, no YnetNews, a propósito da entrada do Partido Sionista Religioso no Knesset. "Antes de mais significa a liberdade de terroristas judeus operarem nos territórios. Segundo, significa a destruição do sistema de justiça; terceiro, significa o apartheid dentro de Israel; a separação racial nos hospitais, nas universidades e na função pública; quarto, a discriminação de género; quinto, significa o reforço dos códigos ultra-religiosos. E não estão a brincar."

Os partidos ultra-ortodoxos procuram esvaziar as instituições laicas. O primeiro terreno de confronto é a Justiça. Há anos que os movimentos de colonos pretendem remodelar as instituições judiciais que limitam a sua acção. A partir de 2018, encontraram um aliado em Netanyahu que, acusado de corrupção e a responder em tribunal, lançou uma campanha sistemática de descrédito do sistema judicial.

Que querem a extrema-direita e a direita radical? Pedem a nomeação política dos juízes do Supremo e a abolição da sua capacidade de julgar inconstitucionais leis aprovadas no Knesset. A conclusão lógica de tudo isto seria a suspensão do julgamento de Netanyahu.

Algo distingue a extrema-direita israelita das europeias e americanas: as causas são outras. Não há, em Israel, problemas com imigrantes, nem frustração económica. A economia cresce e o sector tecnológico vive um boom de euforia. Há, no entanto, um ponto em comum: a perda de confiança nas instituições. E uma grande divergência: a intolerância não apenas em relação aos árabes, mas perante os judeus de esquerda, os não praticantes e as pessoas LGTB, resume o jornalista do Haaretz David Rosenberg. "Estas atitudes conduzem ao extremo racismo – ou, mais precisamente, ao supremacismo judaico."

A erosão democrática

A democracia israelita vem sofrendo um longo processo de erosão. A ocupação dos territórios palestinianos após a Guerra dos Seis Dias (1967) criou o risco de Israel se transformar num sistema de apartheid. A solução "dois Estados" foi destruída. Que se segue?

No passado, a existência do "inimigo árabe" foi o grande factor de coesão da fragmentada sociedade israelita. A paz com os árabes seria muito mais perigosa para a coesão da sociedade do que o estado de guerra, demonstrou o jornalista Marc Hillel, num livro de 1968 (Israel en Danger de Paix). Previa lucidamente o fim de "um certo Israel" e a emergência de outro.

A imigração maciça de sefarditas beneficiou eleitoralmente a direita, após décadas de hegemonia da esquerda e dos trabalhistas. O bloco da direita dá muito mais importância à identidade judaica, aspecto fundamental para os sefarditas. Note-se, no entanto, que a extrema-direita sempre foi e é de origem askhenaze.

Bibi Netanyahu desempenhou um papel central na erosão democrática, motivado muito mais pela permanência no poder do que por razões ideológicas. Para salvar o Likud, consolidou a aliança com os ultra-ortodoxos. Foi ele que, agora, pilotou a unidade da direita religiosa que levou ao triunfo de Ben Gvir, aproveitando a dispersão da esquerda e dos árabes e tirando partido da barreira dos 3,25% para entrar no Knesset. Foi tangencial.

Mas a sua arte de coligação corre o risco de o tornar refém dos extremistas. Até agora, Netanyahu sempre procurou compensar as alianças de extrema-direita com a participação de uma força de centro no Governo, de modo a manter um poder arbitral. Como o vai conseguir agora? Teremos, com todas as probabilidades, mais um Governo instável.

O alarme do Haaretz é legítimo do ponto de vista estratégico. Mas Bibi não vai impor a censura, fechar jornais, perseguir gays ou deslizar para a ditadura. Ben Gvir pode condicionar Bibi, mas está longe do poder. A sociedade israelita é fragmentada, mas resistente à agenda dos ultra-ortodoxos. A frente de guerra imediata vai ser a judicial.

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