Marcelo, Costa e Santos Silva não são uns adeptos quaisquer. A sua viagem ao Qatar legitima a lavagem desta monarquia arcaica e repressiva, em nosso nome.
Susana Peralta 18 de Novembro de 2022
Não costumo voltar ao mesmo tema tão cedo. Mas a sinistra viagem das três mais altas figuras do Estado ao Qatar inspirou-me. Que fique claro: esta viagem não resulta de protocolo nenhum. As equipas portuguesas participam em várias competições internacionais sem o apoio in loco das mais altas insignes do Estado. Portugal, campeão mundial de hóquei em patins em título até ao passado domingo, perdeu a final do campeonato do mundo contra a Argentina e não consta que qualquer dos três ilustres tenha acompanhado os jogadores.
O Democracy Index de 2021, da revista The Economist, analisa a qualidade da democracia recorrendo a 60 itens, agrupados em cinco prismas. O primeiro é o processo eleitoral e o pluralismo (Qatar: 1,5 pontos). O segundo é o funcionamento das instituições (Qatar: 4,9 pontos). Segue-se a participação eleitoral, interesse da população na política, direitos das minorias e das mulheres (Qatar: 3,33 pontos). Depois, vêm as perceções da população sobre a democracia e o poder do exército (Qatar: 5,63 pontos). Last, but not the least, estão as liberdades de imprensa, de expressão, de associação, de acesso à internet, entre outras; nesta categoria, o Qatar logra uns estonteantes 3,53 pontos.
Assim, de um total possível de dez pontos, o Qatar obtém 3,65, conquistando a 114.ª posição, de entre os 167 países analisados. Como termo de comparação, a Hungria de Orbán, justamente ameaçada de perder acesso a 7,5 mil milhões de fundos europeus por violação do Estado de direito, está em 56.º lugar neste índice.
Estima-se que há cerca de dois milhões de trabalhadores imigrantes no Qatar. A legislação laboral que prevalecia até outubro de 2020 era esclavagista, porque inibia os trabalhadores de mudarem de emprego ou de saírem do país sem autorização do empregador. A falta de direitos explica o número de mortos e estropiados. Os cálculos do The Guardian apontam para 6500 mortes de trabalhadores migrantes entre 2011 e 2020, a OIT fala de 50 diretamente ligadas às obras do Mundial e o governo do Qatar de 37.
Pode morrer-se do trabalho sem ser no trabalho; um artigo publicado em 2019 concluiu que as mortes por crise cardíaca entre os imigrantes nepaleses no Qatar eram “com elevada probabilidade devidas a stress térmico severo” (ler: trabalho físico escravo sob altas temperaturas do deserto). A fraca qualidade da informação sobre as causas de morte, que tanto o The Guardian como os autores deste artigo apontam, é em si mesma sinal de que as vidas destas pessoas valem pouco para as autoridades qataris.
A lei foi alterada, mas a prática não. Um ano depois da reforma, o Reality Check 2021 da Amnistia Internacional (AI) rezava assim: “A aparente complacência das autoridades deixa milhares de trabalhadores em risco contínuo de exploração por empregadores sem escrúpulos, muitos impossibilitados de mudar de emprego e enfrentando diminuições arbitrárias e punitivas de salário.”
No Qatar, a homossexualidade é proibida. As pessoas LGBTQI+ são vítimas de maus tratos, tortura e detenções arbitrárias pelas forças de autoridade. Há “agentes infiltrados” para bufar os outros, que podem acabar na prisão. As mulheres têm guardiões masculinos que decidem a sua vida. A punição física (chicotadas) é uma pena normal. Aliás, o tabloide britânico The Sun avisou recentemente os adeptos que se desloquem ao Qatar de que podem ser chicoteados ou presos por comportamentos normais como beber, tirar fotografias ou usar linguagem obscena. De resto, os visitantes estão avisados para respeitar a cultura local: nada de manifestações de carinho público, muito menos entre pessoas do mesmo sexo, ou mulheres vestidas como querem.
Se o Qatar é o que é, a FIFA não é melhor. O Mundial foi atribuído através de luvas pagas aos responsáveis com direito de voto, que já deram origem a vários processos judiciais. Na sua infinita hipocrisia, a FIFA afirma que está a trabalhar com organizações locais para promover os direitos dos trabalhadores, mas, quando confrontado com o número de mortes, o seu presidente papagueou a estatística oficial do governo do Qatar (como escrevi há duas semanas). A FIFA não permitiu que os jogadores da Dinamarca usassem no equipamento mensagens alusivas aos abusos. De tão preocupada, não responde ao apelo da Amnistia Internacional, que, junto com várias ONG, anda há seis meses a pedir uma compensação para os trabalhadores incapacitados e para as famílias dos mortos.A FIFA faz ouvidos de mercador. As contas são simples. O Qatar gastou 200 mil milhões na construção de estádios e outras infraestruturas. A FIFA deverá ganhar seis mil milhões com o campeonato. A AI está a pedir 400 milhões para os mortos e estropiados. E eles não aparecem.
Os anunciantes que metem milhões nos bolsos da FIFA esperam muitos olhos fixados no estádio no dia dos jogos. É pura utopia, mas 'imagine all the people' a olhar para outro lado
A Carbon Market Watch, um think-tank ambiental que trabalha, entre outros, para a Comissão Europeia, avisou que a neutralidade carbónica reivindicada pela organização do Qatar 2022 é “rebuscada e espúria”. Os autores do relatório explicam que os cálculos dos organizadores não atribuem a construção dos seis estádios ao Mundial, optando por espalhar o seu custo ambiental ao longo da sua vida útil, estimada em mais de 50 anos. Desta forma, dividiram por oito a pegada carbónica. Depois, os organizadores gabam a proximidade geográfica entre os estádios como causa de menos viagens, mas, na prática, haverá mais de 160 voos diários para transportar pessoas para o Qatar, dada a reduzida capacidade de albergue do país. E depois há a jactância dos estádios climatizados. Se argumentos faltassem.
Como escreveu Luís Aguiar-Conraria há umas semanas no Expresso: “Ficava-nos tão bem boicotarmos a porcaria do Mundial de futebol.” Só que boicote não houve. Resta-nos um boicote caseiro, que consiste em não ver nem ouvir. Os anunciantes que metem milhões nos bolsos da FIFA esperam muitos olhos fixados no estádio no dia dos jogos. É pura utopia, mas imagine all the people a olhar para outro lado.
Carlos Moedas e Rui Moreira dão um empurrãozinho a esta utopia: à semelhança de Paris, Lille, Estrasburgo, Reims, Bordéus e Marselha ou Londres, não haverá Fan Zones em Lisboa nem no Porto. Não sabemos se esta decisão se deve às cartas que os dois edis receberam da Frente Cívica, mas também não importa: a decisão está tomada e saúda-se.
Já não se saúda a anunciada viagem ao Qatar de António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto Santos Silva. Subscrevo a carta dirigida às três figuras cimeiras do Estado pelo presidente e pelo vice-presidente da Frente Cívica, Paulo de Morais e João Paulo Batalha, na qual lhes apelam para que não se desloquem ao Qatar. Explicam que “Portugal é mais do que uma equipa de futebol ou um evento desportivo” e consideram “imorais e ilegítimos quaisquer gestos de legitimação, e até de celebração”, da “barbárie civilizacional” que é o Qatar 22. Vamos lá ver se nos entendemos. Marcelo, Costa e Santos Silva não são uns adeptos quaisquer. São o Presidente da República, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República de Portugal. A sua viagem ao Qatar legitima a lavagem desta monarquia arcaica e repressiva, em nosso nome. Se não têm eles vergonha, pensem na nossa e fiquem em casa.
P.S.: Terminei este texto antes das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sugerindo que esqueçamos o desrespeito pelos direitos humanos do Qatar e nos concentremos na seleção. Se dúvidas houvesse quanto à intenção de lavagem do regime, desapareceram. Boa viagem, Presidente Marcelo.
O Qatar vai gastar mais de 200 mil milhões de euros para receber o torneio, apesar de construir menos estádios do que todos os Mundiais dos últimos 40 anos.
Marco Vaza 16 de Novembro de 2022
O Qatar tem 11.571 quilómetros quadrados de extensão e é de, de longe, o país mais pequeno a receber o Mundial de futebol. Este também é o Campeonato do Mundo que menos estádios terá para receber os jogos do torneio nos últimos 40 anos. E, no entanto, o Qatar 2022, o primeiro Mundial a realizar-se no Médio Oriente e num país árabe, será o mais caro da história, com um custo estimado a rondar os 210 mil milhões de euros, batendo largamente o recorde estabelecido pelo torneio que o Brasil acolheu em 2016, a rondar os 20 mil milhões de euros.
Foi uma enorme surpresa quando, a 2 de Dezembro de 2010, Sepp Blatter, presidente da FIFA, anunciou o Qatar como o organizador do Mundial 2022, batendo em quatro rondas de votação do Comité Executivo as candidaturas de Austrália, Japão, Coreia do Sul e EUA. Não era, de todo, o favorito, tendo em conta que se tratava de um país com pouca (ou nenhuma) cultura futebolística, com tudo por fazer em termos de infra-estruturas, um clima pouco adequado para organizar o torneio no Verão e muitos problemas de direitos humanos.
Doze anos depois, percebe-se a opção pelo Qatar. A pequena nação do Golfo Pérsico era a que tinha os bolsos mais fundos e não iria olhar a meios para aquele que Gianni Infantino, actual presidente da FIFA, espera ser “o melhor Mundial de sempre”. Entre estádios, hotéis, estradas, transportes e remodelação de espaços públicos, o Qatar, que tinha tudo por fazer, gastou mais do que os custos combinados dos oito Mundiais anteriores. E nem sequer construiu muitos estádios, apenas oito para as 32 selecções e 64 jogos, menos quatro palcos do que estava previsto na proposta votada pela FIFA, o que faz deste um dos Mundiais com menos recintos de sempre – é preciso recuar até ao Argentina 1978, outra prova problemática, para termos um torneio com menos estádios, seis, para receber 16 selecções e 20 jogos.
A diferença para os outros Mundiais vê-se, por exemplo, no custo dos recintos. São apenas oito, sete deles novos, mas tiveram um custo combinado de 6,3 mil milhões de euros, mais do dobro do que custou a construção e remodelação de 12 recintos para o Mundial que a Rússia organizou em 2018 (2,9 mil milhões). O custo dos estádios novos varia entre os 816 milhões de euros (o Al Bayt, que recebe o jogo de abertura entre Qatar e Equador) e os 320 milhões (o Al Thumana), não sendo conhecido o custo do Estádio 974, aquele que é feito de contentores e que será desmantelado após o Mundial.
Os estádios são apenas uma pequena parte do gigantesco investimento que o Qatar fez para receber o Mundial de futebol. O que o país diz é que grande parte deste investimento estava previsto num plano nacional para “transformar o Qatar num país avançado até 2030, capaz de um desenvolvimento sustentado e oferecer um nível de vida elevado às pessoas e às gerações futuras”, segundo um documento de 2008 chamado “Visão Nacional do Qatar 2030”. Tudo foi antecipado para 2022 depois de ganharem o Mundial à primeira tentativa.
Um dos grandes investimentos desse plano (e indissociável do Mundial e do fluxo de visitantes no país durante o próximo mês) é o metropolitano de Doha, inaugurado em 2019 e que custou cerca de 35 mil milhões de euros – serão três linhas com 37 estações e tem ligação para todos os estádios do Mundial. Outro dos grandes investimentos é o aeroporto internacional de Doha, ponto de entrada para todos os visitantes, com a sua floresta tropical indoor e lojas de tudo o que é marcas de luxo – tem um custo estimado de 16,5 mil milhões de euros. Até uma cidade o Qatar está a construir, Lusail City, a “cidade do futuro”, erguida no meio deserto, a 23 quilómetros de Doha, com um custo estimado de 43,5 mil milhões, e que, claro, também terá um dos estádios do Mundial.
Publicidade negativa
Que benefícios irá tirar o Qatar deste investimento? A história da organização de mega-eventos, como o Mundial de futebol ou os Jogos Olímpicos, mostra que o país organizador fica sempre com uma factura grande para pagar e poucos benefícios no imediato. No caso do Mundial, tudo o que sejam receitas com transmissões televisivas, bilheteira e patrocinadores de referência vai para os bolsos da FIFA – o organismo que tutela o futebol mundial terá receitas de 4,5 mil milhões com estas três fontes e, depois de descontar 1,65 mil milhões de custos operacionais com o Mundial e de ficar com 10% para o seu próprio funcionamento, ficará com cerca de 2,7 mil milhões para distribuir entre os seus membros para o desenvolvimento do futebol.
O objectivo do Qatar com este Mundial é outro, o de marcar o seu lugar como um país que não é apenas um produtor de petróleo e gás natural, que pode ser um destino turístico e de grande investimento internacional, e um parceiro de confiança para o mundo, embora, nos últimos 12 anos, o evento se tenha tornado num autêntico pesadelo de relações-públicas a nível internacional.
“Acho que o Qatar quase que desejaria devolver o Mundial, porque ficou com o que não queria. Em vez de prestígio internacional, o mundo está a olhar para o país como um regime autocrático com más leis laborais”, dizia ao PÚBLICO em 2014 Jonathan Grix, investigador britânico da Universidade de Birmingham. As palavras deste investigador britânico continuam a ser perfeitamente válidas em 2022, com tudo o que tem sido divulgado a propósito do outro custo a que este Mundial estará para sempre associado, o custo humano.
“O Qatar está a ter muita publicidade, mas grande parte dela é negativa”, escrevia há poucos dias no portal “Sportico” o economista norte-americano Andrew Zimbalist, que tem uma vasta obra publicada sobre a economia dos mega-eventos desportivos. “Subornou para organizar o Mundial. Importou dezenas de milhares de trabalhadores estrangeiros e sujeitou-os à kafala […], com relatos de milhares de mortos. As temperaturas tórridas obrigaram a mudar os jogos do Verão para Novembro/Dezembro. Os projectos incompletos terão grande visibilidade […]. Tudo isto dificilmente contribuirá para um ‘soft power’ positivo do Qatar.”
Mundial no Qatar em 2022 ensombrado pela corrupção
Atribuição dos Mundiais de futebol de 2018 e 2022 à Rússia e ao Qatar continua sob investigação. Condições de trabalho dos imigrantes e temperaturas elevadas no Verão também alimentam polémica.
Marco Vaza 20 de Julho de 2014
“Sim, foi um erro, mas, na vida, cometem-se muitos erros.” Foi o próprio Joseph Blatter, presidente da FIFA, que, em Maio passado, classificou desta forma a decisão de atribuir o Mundial 2022 ao Qatar, anunciada a 2 de Dezembro de 2010, no mesmo dia em que a Rússia ganhou a votação para 2018. “O relatório técnico sobre a candidatura do Qatar dizia claramente que [o clima] era demasiado quente, mas o comité executivo, por larga maioria, decidiu que ia ser no Qatar”, prosseguiu o líder da FIFA na mesma entrevista.
Quase quatro anos depois da decisão, o Mundial 2022 está a sofrer um escrutínio público à escala global, com acusações de corrupção no processo de votação e de violações dos direitos humanos no Qatar quanto às condições laborais de quem está a trabalhar na construção das infra-estruturas. Basicamente, o que seria uma estratégia de propaganda para dar boa imagem internacional do país está a transformar-se num pesadelo de relações públicas.
“Acho que, nesta altura, o Qatar quase que desejaria devolver o Mundial, porque ficou com o que não queria. Em vez de prestígio internacional, o mundo está a olhar para o país como um regime autocrático com más leis laborais”, diz ao PÚBLICO Jonathan Grix, investigador britânico da Universidade de Birmingham. A imprensa internacional tem referido casos de exploração de imigrantes, nas construções com vista ao torneio, submetidos a condições de trabalho desumanas, com longas horas de trabalho ao sol – que terão resultado, segundo dados revelados pela imprensa britânica, na morte de 1200 destes operários nos últimos quatro anos.
A própria FIFA está sob escrutínio devido às acusações de corrupção que envolvem vários dirigentes do futebol internacional e o qatari Mohamed bin Hammam, antigo presidente da Confederação Asiática de Futebol (e antigo adversário de Blatter nas eleições para a presidência da FIFA em 2011, não tendo chegado a ir a votos), e que também inclui uma troca de favores com a Rússia para o Mundial 2018. A FIFA já lançou uma investigação sobre estas alegações e, pela voz de Jim Boyce, um dos seus vice-presidentes, até admitiu que poder haver uma nova votação para o torneio de 2022, se ficar provado que houve compra de votos. “Seria um enorme golpe para a FIFA se isto acontecesse, mas, de um ponto de vista profissional, considero que uma nova votação seria uma solução justa neste caso”, refere Kenneth Cortsen, da Universidade de Aarhus.
Não são apenas as violações dos direitos humanos e as alegações de corrupção que fazem sombra ao que poderá ser, daqui a oito anos, o primeiro Mundial de futebol no Médio Oriente. A própria geografia do país faz com que no Verão (altura em que os Mundiais de futebol se disputam) se atinjam temperaturas a rondar os 50 graus. A solução apresentada pela organização são estádios fechados com ar condicionado, enquanto a FIFA está ainda a estudar a possibilidade de mudar o torneio para Novembro ou Dezembro, o que implicaria uma reorganização dos calendários internacionais.
Pode o Qatar perder a organização do Mundial? “Tanto quanto sei, legalmente seria muito difícil de o fazer”, refere Jonathan Grix. Mas a FIFA pode ter muito mais a perder ao manter o torneio no Qatar, a julgar pelas posições públicas tomadas pelos seus patrocinadores. “Isto não é bom, nem para o futebol, nem para a FIFA, nem para os seus parceiros”, disse recentemente a marca de equipamentos desportivos Adidas, parceiro de longa data da federação internacional, com quem tem um acordo até 2030. Na imprensa internacional surgiram rumores de que a FIFA teria pedido aos EUA para estarem preparados para receber o torneio (que já receberam em 1994), mas tanto o organismo liderado por Joseph Blatter como a federação norte-americana negaram que tal fosse verdade.
Numa entrevista recente à Al-Jazeera, Nasser Al Khater, director de comunicações do Comité Organizador do Mundial 2022, disse que a organização do torneio não tem nada a esconder. “O que está a decorrer é uma investigação a 2018 e a 2022. O Qatar faz parte e a Rússia também. Estamos confiantes e temos confiança na forma como nos comportámos”, declarou Al Khater, distanciando-se de Bin Hamman – “nunca fez parte da nossa candidatura” - e garantindo que o comité está atento às alegações de violação dos direitos humanos dos operários estrangeiros que estão no país. Quanto a uma eventual mudança de datas por causa do calor, Al Khater diz que a organização está preparada para tudo: “Vamos receber o Mundial de 2022, seja no Inverno ou no Verão.”
Mais de 6500 trabalhadores migrantes morreram na preparação da prova. Amnistia Internacional relembra violações de direitos humanos da nação do Médio Oriente.
Miguel Dantas 28 de Outubro de 2021
Quando foram conhecidas as primeiras suspeitas de corrupção na atribuição do Campeonato do Mundo 2022 ao Qatar, David Beckham foi uma das vozes a criticar a eleição. O antigo jogador integrou o comité de candidatura inglês que sairia derrotado, revoltando-se publicamente contra a FIFA em entrevista ao The Guardian: “Houve obviamente algo de errado com o sistema, quando olhas para as investigações que aconteceram desde a votação e as informações que saíram cá para fora. Na altura, não existiam suspeitas disso. Quando as pessoas te dizem na cara que tens o voto delas, queres acreditar nelas.”
Uma década após estas declarações, feitas em Junho de 2011, Beckham prepara-se para ser o rosto da competição. A cedência da imagem ao Campeonato do Mundo deverá render 150 milhões de libras (mais de 177 milhões de euros) ao inglês, segundo avança a imprensa britânica. O acordo prevê que Beckham receba 17,7 milhões de euros anuais durante os próximos dez anos. O contrato terá sido firmado na semana passada, durante uma deslocação do ex-jogador a Doha.
As notícias geraram uma onda de controvérsia nas terras de Sua Majestade e um pouco por todo o mundo. Apesar de estar ausente dos relvados desde Março de 2013, Beckham continua a ser uma das personalidades mais reconhecidas – e admiradas – no universo do desporto-rei, ocupando o cargo de embaixador na UNICEF há 16 anos. Sacha Deshmukh, director-executivo da Amnistia Internacional no Reino Unido, relembra ao jogador que o Qatar tem um registo “perturbador” no capítulo dos direitos humanos, sublinhando os ataques à liberdade de expressão e perseguição de casais do mesmo sexo.
“Não é surpreendente que David Beckham queira estar envolvido num evento futebolístico desta dimensão, mas gostaríamos de o incitar a tomar conhecimento sobre a preocupante situação dos direitos humanos no Qatar e estar preparado para falar sobre isso. O passado do Qatar no que diz respeito aos direitos humanos é perturbador — desde o prolongado mau tratamento dos trabalhadores migrantes até às restrições da liberdade de opinião e a criminalização da homossexualidade”, escreve o responsável.
Outra das preocupações prende-se com a segurança dos adeptos LGBTI+. A homossexualidade é considerada crime no Qatar, com o The Sun a avançar que os responsáveis pela organização do evento terão garantido a Beckham que a bandeira arco-íris poderá ser utilizada nos estádios. Uma garantia que também foi dada à FIFA no final de 2020.
177 milhões de euros Valor que contrato renderá ao jogador nos próximos dez anos
Fonte próximas do jogador dizem ao The Sun que o inglês acredita que este evento poderá ser uma mudança de página na história do Qatar, esperando que os ocidentais se sintam mais à vontade para colocar esta nação no seu mapa turístico. Beckham foi jogador do Paris Saint-Germain, clube com ligações directas às maiores empresas do Médio Oriente.
Qatar 2022: quando o soft power é, afinal, sportswashing
O Mundial “é o auge” de uma estratégia de milhares de milhões de euros por parte do Qatar. O futebol tornou-se um meio para obter exposição e relevo, mas a publicidade pode tornar-se negativa.
Sofia Lorena 18 de Novembro de 2022
“O Mundial é o auge da estratégia de soft power movida a petrodólares pelo Qatar para projectar a sua influência global, mas trouxe o brilho indesejado do escrutínio internacional”, resumiu o jornal Financial Times num artigo intitulado “Qatar em contagem decrescente para o Mundial após aposta de 200 mil milhões de dólares em soft power”.
200 mil milhões de dólares (210 mil milhões de euros) é apenas o custo estimado deste Mundial (o mais caro de sempre, a grande distância). É impossível calcular o investimento feito até agora para cortejar os chamados países ocidentais através do desporto e assim assegurar uma posição que nem o petróleo nem o dinheiro teriam permitido. Basta lembrar que um dos pontos altos deste processo foi a compra, em 2011, pelo fundo Qatar Sports Investments do Paris Saint-Germain, clube que mantém o recorde da contratação mais cara da história da história do futebol, a de Neymar, em 2017, por 222 milhões de euros.
Em simultâneo, o emirado lançou o canal por satélite Al-Jazeera, a televisão pan-árabe que passou a ser vista globalmente a partir do 11 de Setembro e da guerra do Afeganistão, em 2001, e cuja cobertura foi fundamental na contestação que abalou o mundo árabe em 2011, as chamadas Primaveras Árabes (usadas, por sua vez, pelo país para estender a sua influência na região, através dos partidos e facções que escolheu apoiar). Com um trabalho caracterizado pela qualidade e inovação, é muito improvável que ao seguir a Al-Jazeera alguém se lembre que está a ver o canal de um regime autocrata.
De acordo com Joseph Nye, o autor que cunhou o conceito no final dos anos 1980, soft power é “a capacidade de moldar as preferências dos outros”. Dito de outra forma, é usar a cultura, os media ou o desporto para construir uma imagem internacional sem necessidade de recorrer à força. Apostar no futebol a este nível significa aceder à mesa das grandes potências e dos seus líderes. Nye nota que não é fácil acumular soft power, ou seja, construir uma reputação sólida, e sublinha que a utilização desde poder implica o cumprimento das expectativas criadas: para ser sinónimo de modernidade e de progresso não basta ter dinheiro e gastá-lo em estádios, hotéis e aeroportos sumptuosos.
Falta credibilidade
“Não tenho a certeza se chamaria ao envolvimento do Qatar no desporto ‘estratégia de soft power’ – o soft power baseia-se na capacidade de conquistar públicos estrangeiros para a cultura ou instituições [de quem o usa]”, diz ao PÚBLICO Jonathan Grix, professor de Política do Desporto e director da publicação Journal of Sports Policy and Politics. “Penso que o termo mais recente sportswashing se encaixa provavelmente melhor, já que a ideia é que os patrocínios e os numerosos eventos desviem atenções das questões dos direitos humanos, como o sistema kafala [sistema de vistos patrocinados que regula a relação entre o migrante e quem patrocina a sua ida para o país, permitindo monitorizar e controlar os trabalhadores migrantes]”, defende.
No fundo, diz Grix, “se não se basear em credibilidade então é sportswashing”, uma manobra de branqueamento em que o desporto serve para esconder a realidade: no caso, um país com problemas graves de direitos humanos e onde “a maioria da população consiste em não-cidadãos sem direitos políticos, poucas liberdades civis e acesso limitado a oportunidades económicas”, como se lê no site da organização norte-americana Freedom House, que classifica o país como “não livre”.
A questão da narrativa não se limita aos direitos humanos. Este Mundial acarreta um choque entre a expectativa de adeptos que gastam uma pequena fortuna para ir apoiar as suas selecções e os costumes e regras do país anfitrião. Doha não proibiu a venda de álcool, por exemplo, que está normalmente disponível nos hotéis e em alguns restaurantes, mas está a fazer de tudo para limitar o seu consumo fora destes espaços.
Tenha o nome que tiver, o exemplo do Qatar fez escola e foi seguido por outros países do Golfo Pérsico, em particular pela Arábia Saudita. Segundo um relatório apresentado em 2021 pela organização de direitos humanos Grant Liberty, Riad investira até então pelo menos 1,5 mil milhões na organização de competições desportivas de relevo para melhorar a sua reputação, desde corridas de cavalo à Fórmula 1, passando pelo xadrez ou golfe.
Grix não acredita que a estratégia de investir fortemente nos desportos, patrocínios e eventos “tenha feito grande diferença na forma como estas nações são vistas”. Por exemplo, com o Mundial, “toda a gente passou a saber onde é o Qatar, mas também toda a gente ouviu falar dos problemas de direitos humanos do Qatar e do sistema kafala, e disso provavelmente não tinham ouvido falar antes”.
Pós-petróleo
Um argumento usado frequentemente pela FIFA é o das reformas entretanto realizadas pelo emirado, que, em teoria, até aboliu o kafala (apesar de muitos empregadores continuarem a impedir os seus trabalhadores de mudarem de trabalho ou a responder aos seus pedidos com represálias). “Mas é preciso notar dois aspectos”, afirma Grix. “Nações que antes receberam competições, como a Rússia [Mundial 2018] ou a China [Jogos Olímpicos em 2008 e os últimos Jogos de Inverno], também deveriam ter mudado com os holofotes dos media mundiais, e isso nunca aconteceu”, recorda. Ao mesmo tempo, nota, “qualquer mudança significativa terá de ser acompanhada mais tarde, quando esses holofotes já não estiverem sobre o Qatar”.
No caso do Qatar e da Arábia Saudita, Grix enquadra esta opção de investimento na necessidade de diversificar as suas economias, a caminho do mundo pós-petróleo, com a “tentativa de se posicionarem como centros desportivos”. Se não é certo que esta estratégia tenha mudado a visão das pessoas em relação ao Qatar, o autor nota que contribui para facilitar “a predisposição de ignorar aspectos desagradáveis desses regimes por parte dos países que estão interessados no comércio ou no petróleo”. No limite, poder-se-ia até questionar se não será também em nome dessa inclinação que algumas competições acabam por ser atribuídas a estes países.
Com o Mundial a ter uma audiência estimada pela FIFA em cinco mil milhões, o valor da publicidade que o emirado obterá nas próximas semanas é incalculável. A esperança dos seus líderes é que a má publicidade fique para trás assim que os golos começarem a entrar. A verdade é que costuma ser assim com o futebol.
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