Foi serralheiro e funcionário público. Comunista. Amado e detestado. Começou a viver da escrita depois dos 50. Conheceu Pilar sexagenário. Recebeu o Nobel aos 76 anos. Partiu sem “nenhuma esperança”.
Adelino Gomes 19 de Junho de 2010
José Saramago, 87 anos, único escritor de língua portuguesa a quem foi atribuído o Nobel da Literatura, morreu ao início da tarde de 18 de Junho, na sua casa da ilha de Lanzarote, onde vivia com a mulher, Pilar del Rio, desde que se auto-exilara, em 1993, depois de o Governo português riscar o seu nome da lista dos candidatos ao Prémio Literário Europeu.
Visivelmente fragilizado desde o Verão de 2007, devido a doença cancerosa, morreu na sequência de “múltipla falha orgânica”, segundo a Fundação José Saramago.
O corpo chega às 12h30 de dia 19 ao Aeroporto de Figo Maduro, em Lisboa, e é cremado no domingo. O Governo decretou dois dias de luto nacional. Num documentário de Alberto Serra, estreado em fins de 2008, Saramago exprimira o desejo de que as suas cinzas fossem colocadas, sem qualquer inscrição, debaixo de uma pedra larga do jardim da casa de Lanzarote. Terá mudado posteriormente este desejo, disse o administrador da Fundação Saramago, José Sucena, ao PÚBLICO.
Nas entrevistas que deu nos anos pós-Nobel, disse que sairia “desta merda de mundo” sem “nenhuma esperança” e profundamente dorido por saber que não terá “outra vida”. Mas com a satisfação de que “disse o que queria, como queria, quando queria”, ainda que “com algumas incompreensões” de parte dos seus contemporâneos.
Não partiu, contudo, apenas ele. “Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei, de mão dada, com essa criança que fui”, disse em 2006, referindo-se aos primeiros 14 anos de vida, profundamente ligados à aldeia natal, Azinhaga do Ribatejo.
Derradeira provocação
O seu último romance publicado em vida, Caim (2009), foi escrito “numa espécie de transe”, em quatro meses.
Além da personagem bíblica que lhe dá título, tem como protagonistas nada menos do que a humanidade e o próprio Deus. A ideia surgira-lhe há muitos anos. As circunstâncias (ou a sua vontade?) tornaram-no no seu último livro. Como se de uma derradeira provocação se tratasse: “Que Deus mande a Abraão matar o seu filho Isaac para provar a sua fé, só isto deveria apagar da nossa cabeça a ideia de Deus” (PÚBLICO de 2/9/2009).
Apesar de visivelmente fragilizado pela doença, desde 2007, publicará ainda A Viagem do Elefante, O Caderno e O Caderno II — estes últimos constituídos por textos escritos até Novembro de 2009 no seu blogue, blog.josesaramago.org (dois milhões de visitas nos primeiros nove meses).
Em contraste com a recepção fria aos oito livros publicados depois do Nobel da Literatura, em 1998, o seu anterior livro, A Viagem do Elefante (2008), foi bem acolhido pela crítica portuguesa.
Individual e universal
José Saramago publicou 46 livros (16 romances, além de poesia, teatro, contos, crónicas, viagem, memória e diários), 41 dos quais na Editorial Caminho, comprada pelo Grupo Leya em 2007. Foi autor ainda dos libretos de três óperas.
A sua obra está traduzida em 42 línguas de 53 países.
Não existem números seguros, mas dados apurados pelo PÚBLICO junto da editora, com base apenas nalguns países e regiões, apontam para próximo de 10 milhões de exemplares vendidos: em Portugal (mais de três milhões), no Brasil (mais de 1,4 milhões), em Espanha e América Latina (mais de quatro milhões) e nos EUA (mais de 1,4 milhões). Entre as personagens mais fortes que criou, avulta, impressiva e encantatória, Blimunda, a dos poderes mágicos, imortalizada em O Memorial do Convento. O escritor e mulher deram o seu nome à residência que mantinham em Lisboa, num bairro discreto colado à Praça de Londres.
"Voz original, inconfundível” (Clara Ferreira Alves); apreciado em África como uma referência dos escritores que neste continente escrevem em português (Mia Couto elogia nesta edição o seu “empenho” em lhes dar “visibilidade") e no Brasil como um autor em que os leitores se reconhecem como reconhecem em Vieira, Eça ou Pessoa (Eduardo Prado Coelho), o crítico norte-americano Harold Bloom considerou-o, em 2003, “o mais talentoso romancista vivo”. Eduardo Lourenço chama-lhe, nesta edição, “ícone cultural português”.
No “núcleo duro” da sua obra, esteve “sempre a preocupação com o ser humano, seja ele português ou universal”, afirmando-se como “um processo de constante auto-superação estética, temática e mesmo, em certos aspectos, ideológica”, sustenta o académico Carlos Reis.
A acrescentar a estas marcas ao mesmo tempo individualizadoras e universalizadoras, eram-lhe apontadas como características singulares a escrita sem pontuação e sem maiúsculas nem discurso directo regulares; o imaginário, dominado pelo realismo fantástico; as personagens (além de Blimunda, Madalena, a quem atribui uma relação com Jesus, é também apaixonante); uma ironia permanente e acerada; e as histórias irrecusáveis. A que acrescentaremos, como motivo de fascínio junto de milhões de leitores, a forma como intervinha publicamente na defesa de grandes causas. Dos Sem Terra e do zapatismo ao movimento antiglobalização, à preservação do ambiente, à denúncia da guerra no Iraque e, mais recentemente, aos ataques frontais a Berlusconi, o primeiro-ministro italiano a quem chamava “a coisa”.
Amado e detestado
O ministro da Cultura de Espanha, César António Molina, mostrou quanto o Estado espanhol apreciava a opção de Saramago por Lanzarote, ao referir “a sorte de podermos [os espanhóis] partilhar a existência do escritor”, na inauguração da exposição sobre a sua obra, em Novembro de 2007, na Fundação César Manrique, em Lanzarote. Molina não hesitou em dizer algo que nenhum homólogo seu de Portugal — país onde o romancista continuava a pagar impostos, mas sobre cujo futuro como nação independente expressava fortes dúvidas — se atrevera até então a dizer assim, em público: “Muitos de nós somos o que somos porque encontrámos no meio do caminho a sua obra e vida.”
Numa declaração que soa hoje como epitáfio, Molina lembrou que o escritor “nunca se esqueceu de ajudar os mais desamparados e os que não têm voz e que através da sua obra ganharam um lugar”.
Antes e após a atribuição do Nobel da Literatura, em 1998, Saramago foi distinguido com muitas dezenas de doutoramentos honoris causa e proferiu centenas de conferências que atraíam multidões, especialmente nos países latino-americanos.
As suas declarações, tal como os livros, levantavam, não raras vezes, ferozes polémicas do lado daqueles que não apreciavam quer o seu estilo, quer as suas posições políticas e religiosas.
José Saramago publicou 46 livros (16 romances, além de poesia, teatro, contos, crónicas, viagem, memória e diários), 41 dos quais na Editorial Caminho, comprada pelo Grupo Leya em 2007. Foi autor ainda dos libretos de três óperas.
A sua obra está traduzida em 42 línguas de 53 países.
Não existem números seguros, mas dados apurados pelo PÚBLICO junto da editora, com base apenas nalguns países e regiões, apontam para próximo de 10 milhões de exemplares vendidos: em Portugal (mais de três milhões), no Brasil (mais de 1,4 milhões), em Espanha e América Latina (mais de quatro milhões) e nos EUA (mais de 1,4 milhões). Entre as personagens mais fortes que criou, avulta, impressiva e encantatória, Blimunda, a dos poderes mágicos, imortalizada em O Memorial do Convento. O escritor e mulher deram o seu nome à residência que mantinham em Lisboa, num bairro discreto colado à Praça de Londres.
"Voz original, inconfundível” (Clara Ferreira Alves); apreciado em África como uma referência dos escritores que neste continente escrevem em português (Mia Couto elogia nesta edição o seu “empenho” em lhes dar “visibilidade") e no Brasil como um autor em que os leitores se reconhecem como reconhecem em Vieira, Eça ou Pessoa (Eduardo Prado Coelho), o crítico norte-americano Harold Bloom considerou-o, em 2003, “o mais talentoso romancista vivo”. Eduardo Lourenço chama-lhe, nesta edição, “ícone cultural português”.
No “núcleo duro” da sua obra, esteve “sempre a preocupação com o ser humano, seja ele português ou universal”, afirmando-se como “um processo de constante auto-superação estética, temática e mesmo, em certos aspectos, ideológica”, sustenta o académico Carlos Reis.
A acrescentar a estas marcas ao mesmo tempo individualizadoras e universalizadoras, eram-lhe apontadas como características singulares a escrita sem pontuação e sem maiúsculas nem discurso directo regulares; o imaginário, dominado pelo realismo fantástico; as personagens (além de Blimunda, Madalena, a quem atribui uma relação com Jesus, é também apaixonante); uma ironia permanente e acerada; e as histórias irrecusáveis. A que acrescentaremos, como motivo de fascínio junto de milhões de leitores, a forma como intervinha publicamente na defesa de grandes causas. Dos Sem Terra e do zapatismo ao movimento antiglobalização, à preservação do ambiente, à denúncia da guerra no Iraque e, mais recentemente, aos ataques frontais a Berlusconi, o primeiro-ministro italiano a quem chamava “a coisa”.
Amado e detestado
O ministro da Cultura de Espanha, César António Molina, mostrou quanto o Estado espanhol apreciava a opção de Saramago por Lanzarote, ao referir “a sorte de podermos [os espanhóis] partilhar a existência do escritor”, na inauguração da exposição sobre a sua obra, em Novembro de 2007, na Fundação César Manrique, em Lanzarote. Molina não hesitou em dizer algo que nenhum homólogo seu de Portugal — país onde o romancista continuava a pagar impostos, mas sobre cujo futuro como nação independente expressava fortes dúvidas — se atrevera até então a dizer assim, em público: “Muitos de nós somos o que somos porque encontrámos no meio do caminho a sua obra e vida.”
Numa declaração que soa hoje como epitáfio, Molina lembrou que o escritor “nunca se esqueceu de ajudar os mais desamparados e os que não têm voz e que através da sua obra ganharam um lugar”.
Antes e após a atribuição do Nobel da Literatura, em 1998, Saramago foi distinguido com muitas dezenas de doutoramentos honoris causa e proferiu centenas de conferências que atraíam multidões, especialmente nos países latino-americanos.
As suas declarações, tal como os livros, levantavam, não raras vezes, ferozes polémicas do lado daqueles que não apreciavam quer o seu estilo, quer as suas posições políticas e religiosas.
Não hesitou em definir-se uma vez, na Antena 2, como um “comunista hormonal” ("da mesma maneira que a barba me cresce, há uma hormona que fez de mim isto"). Tal não o impediu, porém, de preservar a autonomia de pensamento e uma liberdade crítica que, não raras vezes, o fizeram criticar figuras da iconografia comunista, como Fidel Castro, discordar de posições oficiais do PCP, e mesmo apoiar publicamente candidatos do PS (Mário Soares, nas presidenciais de 2005, e António Costa, nas autárquicas de 2009).
Muitos dos seus detractores encontravam-se em Portugal, reconhecia Saramago. “As pessoas param-me na rua. O que há é um sector oficial que realmente não tem muita simpatia por mim. E tem-no manifestado, ainda que agora já não tanto [...]. Ninguém é profeta na sua terra, mas também eu não quero ser isso. Provavelmente terá a ver com o público. E também com o acolhimento dos meios de comunicação”, explicou ao PÚBLICO, em 2006.
Infância rural
José de Sousa Saramago nasceu em 16 de Novembro (18, diz o registo oficial, erradamente) de 1922, em Azinhaga do Ribatejo, aldeia próxima da confluência do Almonda com o Tejo.
Filho e neto de camponeses sem terra, aos dois anos trocou a aldeia pela capital, acompanhando o pai, que se tornara guarda da PSP.
Viria a revelar, décadas mais tarde, no seu último livro, As Pequenas Memórias (2006), que continuou ligado até muito tarde à terra natal. Ali — “uma criança no meio do mundo olhando em redor e dizendo: “Estou aqui"” — sente que se construiu. Por influência inapagada dos avós maternos, com quem, já a residir em Lisboa, passou férias até ao fim da adolescência.
As origens humildes afastam-no do Liceu Gil Vicente, onde permaneceu dois anos, e conduzem-no para a Escola Industrial de Afonso Domingues, onde obtém 15 valores a Serralharia Mecânica, 15 a Francês e 11 a Português.
Quedam-se por aqui as suas habilitações literárias. Tudo o mais — e foi mais do que qualquer outro escritor português do seu tempo, em termos de honrarias literárias e de reconhecimento público mundial — ganhou-o numa aprendizagem solitária, longa e persistente que o levou (observações de Gabriel Garcia Márquez no citado documentário televisivo) a começar a escrever quando os outros costumam terminar e a continuar a escrever na velhice como se tivesse 18 anos.
Depois de um primeiro emprego como serralheiro mecânico, nas oficinas dos Hospitais Civis de Lisboa, passa a auxiliar de escrita, desenhador, funcionário da Caixa de Abono de Família do Pessoal da Indústria da Cerâmica (de que será afastado em 1949, por apoiar o candidato da oposição a Salazar, Norton de Matos) e da Caixa de Previdência do Pessoal da Previdente.
Torna-se colaborador de produção e, por fim, editor literário da Editorial Estúdios Cor. Traduz 48 livros entre 1955 e 1981, ano a partir do qual se dedicará a tempo inteiro à escrita literária.
"Esquecimento” do PCP
Jornalista profissional desde 1972, assumiu no Verão Quente de 1975 as funções de director adjunto do Diário de Notícias. Veio a ficar ligado, no exercício deste cargo, ao processo de saneamento de 30 jornalistas, que haviam denunciado nas páginas do jornal a falta de pluralismo do matutino. O episódio imprimiu ao seu perfil uma marca de intolerância ideológica que contrasta com a tocante humanidade das grandes personagens da sua obra literária.
A derrota da linha que apoiava sonoramente no Diário de Notícias, em 25 de Novembro, deixou-o no desemprego. Pouco depois, ao decidir procurar trabalho, constata que o PCP (a que aderira em 1969, a convite do director da Portugália, Augusto da Costa Dias) não o convidara para um novo projecto jornalístico já em marcha, O Diário, como fizera “a todos os outros jornalistas” que tinham saído daquele jornal.
"Na altura não gostei nada. Hoje continuo a não gostar, mas agradeço”, comentou um dia, lembrando que aquilo em que se tornou deve ter começado por alturas desses últimos dias de Novembro em que testemunhou a derrota do projecto de “construção do socialismo” de que o DN era “um instrumento”.
Até 1975, explicou, tinha livros mas não se via como um escritor. Decide ir para o Alentejo, aí vivendo de traduções, durante alguns anos. Acolhido em casa por camponeses do Lavre, abre-se-lhe a porta para uma segunda vida, a da escrita literária.
Publica em 1977 o romance Manual de Pintura e Caligrafia, na Moraes Editores. Dois anos depois, A Noite, primeira de uma série de peças de teatro que inclui Que Farei com Este Livro? (1980), A Segunda Vida de Francisco de Assis (1987) e In Nomine Dei (1993).
Em 1980, o romance Levantado do Chão, em que se liberta das regras da pontuação e das maiúsculas, substituídas por um fluir narrativo torrencial típico do discurso oral, define-lhe um estilo literário a que o Prémio Cidade de Lisboa dá maior repercussão.
Percorre o país, numa encomenda do Círculo de Leitores, de que resulta o precioso Viagem a Portugal, que Pilar del Rio considera “o livro perfeito”, apesar de “mal amado pelos media portugueses”.
Reconhecimento e exílio
Memorial do Convento, em 1982, confirma a sua forma original de narrar histórias, numa prosa “misteriosa, alusiva, poética” (Luciana Stegagno Pichio) em que se misturam erudição clássica e sabedoria popular.
O livro marca a consagração definitiva do autor no país e abre-lhe, aos 60 anos de idade, as portas do reconhecimento internacional. “É muito melhor do que O Nome da Rosa, de Umberto Eco”, chega a escrever um crítico no jornal italiano La Stampa.
Será adaptado a ópera e ao teatro, em Portugal e no estrangeiro. O autor recusa uma oferta de Hollywood para que seja posto em filme. E outra do Brasil para passar a telenovela.
Segue-se em 1986 O Ano da Morte de Ricardo Reis — para muitos dos seus leitores (há quem diga que também para ele) o seu melhor livro.
Seis anos e três romances depois (Jangada de Pedra, História do Cerco de Lisboa e Evangelho Segundo Jesus Cristo), já famoso em Portugal e na Europa, onde multiplica edições e prémios, vê o seu nome riscado de uma lista de obras candidatas ao Prémio Literário Europeu. Decisão do subsecretário de Estado da Cultura Sousa Lara. O Evangelho atacava princípios que tinham a ver “com o património religioso dos portugueses”.
O acto censório leva-o a um processo de ruptura com o Governo de então, chefiado por Cavaco Silva. Fixa residência na ilha espanhola de Lanzarote, num processo de “exílio literário” que manterá até à morte, apesar de nos últimos anos ter adquirido uma pequena vivenda em Lisboa, onde se deslocava com frequência.
"Maldição” do Nobel
O Ensaio sobre a Cegueira (1995) ter-lhe-á valido o Prémio Nobel de Literatura de 1998, tal a boa impressão que causou na Academia Sueca. Foi isso pelo menos o que um seu membro, o poeta e romancista Kjell Espmark, lhe revelou e Saramago contou anos mais tarde, no blogue que começou a escrever no Verão de 2008.
O anúncio do mais alto galardão literário do mundo foi feito, como habitualmente, em 8 de Outubro. O Nobel distinguira pela primeira vez um autor de língua portuguesa que “com parábolas sustentadas por imaginação, compaixão e ironia, continuamente nos permite captar uma realidade fugidia”.
Na noite de 7 de Dezembro seguinte, em cerimónia televisionada, apresenta-se ao Comité Nobel e ao mundo recuando a memória até aos tempos de infância: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. (...) Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.”
Os romances que se seguem ao mais famoso prémio literário do mundo — A Caverna (2000), O Homem Duplicado (2002), Ensaio sobre a Lucidez (2004) — são recebidos com reservas por parte da crítica portuguesa. Fala-se em “maldição do Nobel”. A série de diários Cadernos de Lanzarote é especialmente causticada pela exibição de prémios, de distinções, de ditirambos ao autor. Interrompe-a no quinto volume, publicado pouco antes da cerimónia de entrega do Nobel.
Publicado em finais de 2005, As Intermitências da Morte constitui um comovente hino testamentário (um violoncelista seduz a morte-mulher, para quem interpreta uma suite de Bach) ao amor e à música, isto é, à vida humana.
Escrita “com larguíssimos intervalos” e longamente prometida sob um título que não veio a vingar (O Livro das Tentações), a autobiografia As Pequenas Memórias (1996) debruça-se sobre a infância e a adolescência, na Azinhaga e em Lisboa.
Na altura, disse-se tentado a fechar o círculo. Considerava que esgotara, de algum modo, os temas, embora, premonitório, admitisse escrever ainda “mais um livro ou dois”.
O factor Pilar
José Saramago foi casado com a pintora, gravadora e escultora Ilda Reis, já falecida, de quem tinha uma filha, Violante. Viveu 16 anos com a escritora Isabel da Nóbrega (Prémio Castelo Castelo-Branco, 1965), com quem formou, segundo Fernando Dacosta, “um par fiel, glamouroso”, nos meios intelectuais lisboetas.
Aos 63 anos, “quando já não se espera nada”, encontrou “o que faltava para passar a ter tudo” — Pilar. Jornalista, Pilar chegara de Sevilha a Lisboa para fazer o percurso de Ricardo Reis, tal como descrito magistralmente pelo escritor, em O Ano da Morte de Ricardo Reis.
O café que tomaram em Lisboa e um novo encontro meses depois em Sevilha — por iniciativa de Saramago, que viajou de camioneta até lá — mudou a vida a ambos. Casaram em Lisboa, em Outubro de 1988. Ele em vésperas de fazer 66 anos, ela com 36; ambos com um casamento oficial anterior.
Nunca mais deixaram de andar juntos. “Se tivesse morrido aos 63 anos, antes de a conhecer, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora”, disse Saramago um dia, numa das várias muito belas declarações públicas de amor a Pilar.
A intensa ligação a Pilar (chegará a chamar-lhe, numa entrevista na Antena 2, o seu outro Prémio Nobel) levá-lo-á a apagar das reedições dos livros publicados até 1984 as dedicatórias a Isabel da Nóbrega: “À Isabel, sempre”, em Levantado do Chão (também dedicado a 16 elementos da União Cooperativa de Produção Boa Esperança, do Lavre, Montemor-o-Novo, que o acolheram e sem os quais, escreveu, “não teria sido escrito” o livro, mas cujos nomes foram igualmente suprimidos, ficando apenas, em edição posterior, “À memória de Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, assassinados"); “À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova”, em Memorial do Convento; e “À Isabel, outro livro, o mesmo sinal”, em O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Os adversários não lhe perdoaram a atitude. Amigos que muito o apreciam lamentaram-na profundamente.
Andaluza, a mais velha de 15 irmãos, Pilar é a tradutora para espanhol dos livros do marido — trabalho que fazia quase em simultâneo com o acto de criação do escritor. Mas assume-se como jornalista, acima de tudo. Manteve uma rubrica de intervenção cívica, durante anos, na rádio. Pôs-lhe o nome de Blimunda não se rende.
Entre as incumbências que competem a uma viúva, deverá agora (sugeriu Saramago numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos, seu amigo de longa data) organizar, “para publicar”, juntando-os à obra já feita, “um ou dois” volumes com cartas de leitores, algumas delas “absolutamente extraordinárias, documentos humanos de uma profundidade, uma beleza e emoção raras”, que foram chegando “de toda a parte” ao escritor.
Provocador de ideias
Sem temer ficar isolado no debate, Saramago lançava no espaço público ideias fracturantes, quase sempre contra a corrente ou mesmo politicamente incorrectas - o voto em branco, a fusão de Portugal em Espanha, a irrelevância do 25 de Abril para atingir a democracia, a semelhança da ocupação israelita da Palestina com Auschwitz, a provocação a “deus, esse a quem chamamos senhor” e a quem “uma só criança das que morreram feitas tições em Sodoma bastaria para [...] condenar sem remissão”.
A casa de José Saramago em Lanzarote, Espanha, está aberta a visitas MANUEL ROBERTO
Fazia-o de uma forma que surpreendia o leitor/ouvinte incauto: tirando das premissas as conclusões menos conformes com os cânones. O seu era - disse um dia numa entrevista na Antena 1 ao autor deste obituário — “o ponto de vista do galinheiro”. Referia-se aos tempos da juventude em que frequentou intensamente o Teatro Nacional de São Carlos, cujos espectáculos via, grátis, mercê da bondade de um porteiro amigo do pai. Longe e de cima (mesmo acima do “pó dos lustres” do magnífico teatro barroco), era-lhe dado ver e ouvir os espectáculos de ângulos diferentes dos que os viam da plateia ou dos camarotes, explicou.
Talvez por isso, prevalecia nele a distância do cepticismo: “Tenho sempre um pé atrás [porque sei que] nada é definitivo e que o motivo do riso de hoje pode amanhã tornar-se em lágrimas.”
Dotado de uma grande facilidade de expressão apesar da leve gaguez com que falava, deixou, além dos livros e das conferências, um extraordinário acervo de declarações em entrevistas.
Nelas podemos acompanhar e em certos casos completar, dito por outras palavras, normalmente mais directas, o essencial das preocupações e interrogações que foi semeando na obra literária.
Sobre a democracia, a criação literária, o papel do escritor, o jornalismo, Portugal, o mundo, Deus.
E sobre este mesmo acontecimento que aqui relatamos e em que é protagonista — o seu desaparecimento da terra e a perspectiva de uma outra vida, para lá da morte: “A finitude é o destino de tudo. O Sol, um dia, apaga-se”. com Raquel Ribeiro
Fontes principais: Jornal de Letras, 26/3/1997; Visão, 16/1/2003; Público 3/4/2004, 12/11/2005, 16/1/2006, 7/11/2008, entre outros; e Uma longa viagem com José Saramago, João Céu e Silva, Porto Editora, 2009; várias entrevistas à Antena 1 e à Antena 2.
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