JOÃO COELHO 26/06/2014
Não admira que ouçamos até à exaustão o argumento da importância decisiva do futebol para a nossa auto-estima como povo.
É isto o futebol de selecções numa grande competição internacional: na bancada, um grupo de adeptos cabisbaixos, de olhar completamente desolado pelo resultado da sua equipa (campeã do mundo a poucos minutos da eliminação na primeira fase do Mundial2014)... de repente, percebem que estão a aparecer no ecrã do estádio e saltam de alegria, sorrisos abertos, braços no ar, novamente felizes da vida...
Ninguém terá dúvidas de que há muitas formas de os adeptos de futebol viverem o jogo. De uma forma geral, na relação do adepto com o seu clube, o futebol vem primeiro, é o mais importante. A lealdade à selecção parte do elemento "nação" e não do próprio jogo. Talvez por isso muita gente que não liga especialmente ao futebol (ou que pelo menos não é adepto empenhado) durante o resto do tempo, pode ser um "fanático" da selecção quando esta entra em campo. Por isso mesmo, quando penso na categoria "adepto de futebol" penso no adepto do clube - este vive toda uma história de afectos e memórias, desde a sua escolha inicial (a selecção não se escolhe...), à vivência quotidiana do clube, dos jogos regulares às peripécias da semana anterior e posterior, passando pelo eterno retorno de cada temporada que começa. E depois, claro, há as rivalidades, que são centrais à experiência do adepto de clube, e que se regem por "leis" totalmente distintas das rivalidades entre selecções. São futebolísticas per si ao contrário da generalidade das rivalidades de equipas nacionais, que se alimentam de factos históricos, políticos, etc.
Não pretendo dizer que o verdadeiro futebol é o dos clubes, até porque a qualidade reunida em determinadas selecções faz das grandes provas internacionais algo de fascinante para quem ama o beautiful game, além de que, num tempo de total mercantilização do jogo, cada vez mais os futebolistas têm na sua equipa nacional o único objecto de real amor à camisola.
Mas a realidade é que a lealdade do adepto ao clube é bem mais interessante em termos sociológicos, dado que a relação com a selecção enquadra-se preferencialmente no fenómeno do nacionalismo, sob diferentes formas de nacionalismo banal, o de celebração e imaginação da identidade nacional, o das bandeiras nas janelas, o das características "psicológicas" nacionais, o da unidade da pátria. A feliz observação de Eric Hobsbawm, para quem a comunidade imaginada que é a nação parece mais real enquanto "onze homens famosos em calções" traduz de forma perfeita a relação entre futebol e nacionalismo.
No caso português, como noutros, este fenómeno fica bem visível na forma como a produção da identidade nacional - ou seja, das representações dominantes sobre Portugal e o que é ser português - está extremamente (às vezes parece que em exclusivo) ligada ao futebol. Algo que deve ser motivo de preocupação mas que dificilmente terá solução enquanto forem os próprios governantes a explorar sem quaisquer limites a identificação entre nação e futebol. Um fenómeno mil vezes amplificado pelas incontáveis formas de nacionalismo-publicitário cada vez mais explorado e difundido pelos media até à exaustão, nomeadamente a propósito das grandes competições.
A propósito dos jogos, dos resultados obtidos, dos futebolistas, das peripécias que envolvem a equipa nacional, deduzem-se traços de carácter colectivo (a famosa "idiossincrasia" nacional, o "somos assim e... não há nada a fazer"), representa-se o valor e a capacidade do país, estabelece-se a sua posição no quadro das nações. Leituras e assunções que se tornam representações dominantes, com estatuto de verdades absolutas, assentes num conjunto de narrativas que falam de pequenez e grandeza, de decadência e progresso, desenvolvimento e subdesenvolvimento, de sucesso e fracasso, aplicadas ao país como um todo.
Ao mesmo tempo constroem-se as oposições identitárias típicas. A nossa latinidade, feita de talento e desorganização, perante a rigidez e a organização dos do Norte. O futebol, com toda a sua plasticidade cultural, alimenta estes discursos, imagens e representações identitárias que fecham a porta à mudança social, porque transmitem o poder do que é supostamente natural, biológico, imutável. E, simultaneamente, colocam os portugueses todos no mesmo barco, independentemente das suas situações sociais, económicas, vivenciais. Uma arma letal para a reprodução ideológica, pois claro. Para que nada mude.
Não admira, pois, que ouçamos até à exaustão o argumento da importância decisiva do futebol para a nossa auto-estima como povo. Como se de um jogo de futebol, da bola no poste ou na trave, do destino do remate do melhor do mundo ("se temos o melhor do mundo no futebol podemos ser os melhores do mundo em tudo!") pudesse depender o destino de um povo. Sempre entre a a Vitória e a Derrota, entre o Sucesso e a Crise, entre Esperança e a Tormenta, entre as Descobertas e a Decadência, entre a Euforia e a Depressão. Que a bola nos proteja...
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