Sede em Lisboa no Arco do Cego DR |
16/06/2014
Criada para perpetuar a dimensão imperial do Portugal do Estado Novo, a Casa dos Estudantes do Império foi viveiro de dirigentes independentistas que chegaram ao poder nas ex-colónias.
Do nascimento ao encerramento por ordem de Salazar, com várias investidas da PIDE de permeio, a história da Casa dos Estudantes do Império (CEI) é consequência e inevitável espelho das metamorfoses da política colonial do Estado Novo. Deste Outono próximo a Maio de 2015 é evocado o papel que desempenhou no séc. XX português.
“A delegação da Casa dos Estudantes do Império em Coimbra foi, desde o seu início, um centro académico de notoriedades pró-comunistas, orientado e controlado por elementos do MUD (Movimento de Unidade Democrática, animado pelo PCP), especialmente pelo dr. Joaquim Vitorino Namorado, o qual, aproveitando a sua qualidade de explicador que ilegalmente mantém, exerce sobre ele uma influência decisiva.” Este era o teor de um relatório que o então inspector da PIDE José Barreto Sachetti remeteu a 30 de Novembro de 1954 ao ministro do Interior.
Sachetti aborda a actividade da delegação em Coimbra da CEI, cuja sede estava instalada em Lisboa, num prédio já demolido no Arco do Cego, dez anos depois do regime ter criado a instituição para aí albergar estudantes oriundos das ex-colónias que vinham para a capital realizar os seus estudos universitários. E, como observa o historiador Fernando Rosas, em estudo publicado no número especial da revista Mensagem, órgão da CEI de 1994 evocativo dos 50 anos da fundação, a fundação da instituição corresponde à fase imperial do regime. Aliás, a CEI resulta da fusão das casas dos estudantes de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Índia e Macau, criadas sob o patrocínio da Mocidade Portuguesa, cujo comissário nacional era, então, Marcello Caetano.
“Tratava-se de consagrar, também no que tocava aos estudantes residentes em Portugal, o Império, a unidade do Império”, relata Rosas: “A centralização correspondia à realização do ideal do Império e simultaneamente ajudava ao controlo político e policial sobre o CEI.” No lisboeta Arco do Cego e em Coimbra, correspondendo aos dois pólos universitários então existentes em Portugal, os filhos de brancos, de colonos brancos, de quadros da administração branca, também de alguns mestiços e, no início, um pequeno grupo de negros eram albergados numa instituição que a própria Mocidade Portuguesa propagandeava como sua “filha”.
Prova de que os propósitos da ditadura e da sua política colonial se consideravam imunes aos ventos da história. Contudo, a realidade internacional impôs-se ao bolor doméstico. “Desde o fim da II Guerra Mundial, a CEI começa-se a transformar no seu contrário”, assinala Fernando Rosas. “Nos anos 50, o regime ainda não estava consciente”, corrobora o historiador e politólogo António Costa Pinto.
Foram causas internas, o apogeu dos movimentos oposicionistas na sequência da derrota das potências do Eixo na II Guerra Mundial, que impregnaram a CEI. Daí, a sua ligação ao MUD, o que torna o relatório do inspector Sachetti uma premonição. A politização de uma elite cultural africana através das campanhas eleitorais da oposição democrática era evidente. Como o eram as suas consequências para a ditadura.
A CEI tinha um fermento próprio: a origem de quem lá estava. “Uma elite cultural africana”, salienta Costa Pinto. Que viveu os decisivos anos de 1952/60, marcados pela afirmação dos nacionalismos e pelo início dos processos de descolonização. Em Portugal, apesar da obstinação do regime, os sinais primeiros deste novo tempo vieram do Oriente: as reivindicações da União Indiana sobre os territórios coloniais portugueses na Península do Industão.
A CEI demarca-se do “toca a reunir” decretado por Salazar e recusa-se a assinar o documento contra Jawaharial Neru. O regime, surpreendido por esta revolta, impõe à CEI a primeira de várias comissões administrativas que vigoram entre 1952 e 1957. Curiosamente, quando confrontado com os pedidos de esclarecimento das Nações Unidas sobre a natureza dos vínculos com os territórios não europeus, o regime retirou a designação “colónias” a favor de “Ultramar”, e impõe à CEI uma sanção doméstica do Código do Processo Administrativo: uma comissão administrativa.
De nada serviu. Pela CEI de Coimbra e Lisboa passaram Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Pedro Pires, Vasco Cabral, Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos, Luandino Vieira, Manuel Rui Monteiro, Rui Mingas, António Jacinto, Óscar Monteiro, João Craveirinha, Joaquim Chissano, Sérgio Vieira, Miguel Trovoada, Francisco José Tenreiro, Alda Lara, Pepetela… Uma constelação de intelectuais e de futuros líderes políticos.
Que estavam activos: Em 1958, no boletim Mensagem, são publicados textos anticolonialistas e, dois anos mais tarde, os estudantes do CEI subscrevem a “Mensagem ao Povo Português” que pede o apoio às primeiras resoluções condenatórias da ONU ao colonialismo luso. Segue-se o expediente sancionador: nova comissão administrativa. O repúdio alastra à Academia de Lisboa.
Na crise académica de 1962, um ano depois do início da guerra em Angola, a RIA (Reunião Inter-Associações, então presidida por Jorge Sampaio) tem ponto de encontro na sede lisboeta do CEI. Antes, em Junho de 1961, algo de surpreendente ocorre: a fuga para Paris de cerca de cem estudantes africanos de Angola, que estudavam em Lisboa, com o apoio de Jacques Vergès, advogado francês que se notabilizou pelas ligações a movimentos anticolonialistas e terroristas e pela defesa de personagens como Klaus Barbie, Pol Pot, "Carlos, o Chacal" e Saddam Hussein.
Aquela “manobra de evacuação”, como então a definiu a PIDE, foi gerida pela CEI em colaboração com o aparelho internacional do PCP. Em 1963, o regime do Estado Novo deixa de financiar a Casa dos Estudantes do Império que, em Setembro de 1965, é encerrada pela polícia política. A criação dos Estudos Gerais Universitários em Angola e Moçambique já diminuíra drasticamente o número de alunos da CEI.
Apesar da vontade do regime, por lá passaram as jovens elites que fundaram os movimentos de libertação – PAIGC, MPLA, MLSTP, de São Tomé, e Frelimo – e dirigiram os novos países africanos. Fundada para perpetuar o Império, a CEI operou no sentido contrário.
Programa arranca em Coimbra e termina em Lisboa
De 28 de Outubro próximo, na Reitoria da Universidade de Coimbra (UC), a Maio de 2015, em sessão na marcada para a Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, decorre a evocação dos 50 anos da CEI. Na reitoria da UC recorda-se a cultura, com a presença anunciada de Pepetela, Luandino Vieira, Óscar Monteiro, Rui Mingas. Inocência Mata fala sobre Agostinho Neto, Alda Espírito Santo e Francisco José Tenreiro, e haverá canções da época de Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira.
O programa coordenado por Vítor Ramalho da União das Capitais Luso-Afro-Americanas, com o apoio da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), do Presidente da República e do secretário de Estado da Cooperação também contempla reedições: os dois volumes da Antologia da Poesia de Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique, um número especial do boletim Mensagem e a publicação dos 22 livros de bolso que a CEI editou.
Também vai ser editado o levantamento integral dos associados da CEI, mais de 2200 segundo a contabilização já realizada, e decorrerá no espaço da Câmara Municipal de Lisboa uma exposição do espólio da sede lisboeta da Casa dos Estudantes do Império apreendido pela PIDE, que agora se encontra na Torre do Tombo.
Haverá ainda um espectáculo musical que será transmitido para todos os países africanos e, em Maio de 2015, a homenagem termina na Fundação Gulbenkian, numa sessão em que serão oradores os antigos estudantes que foram primeiros-ministros ou Presidentes. Agostino Neto será representado pela viúva e estarão presentes França Van Dunen, Pedro Pires, Miguel Trovoada, Miguel Pinto da Costa, Joaquim Chissano, Pasqual Mukumbi e Mário Maxundi.
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