A crise do euro está a induzir alguns governos nacionais a reescrever as respetivas Constituições e a renovar os sistemas de governo. Mas essas reformas não representam uma cura milagrosa para os problemas da UE e podem pôr em risco a democracia que constitui a base em que assentam algumas nações.
Tony Barber
Diz o provérbio que um camelo é um cavalo desenhado por um comité. O provérbio, cuja origem não é clara, tem aproximadamente o mesmo sentido de “muitos cozinheiros estragam a sopa”. Ou seja: tentar conceber qualquer coisa juntando opiniões diferentes dá mau resultado. As tentativas de alguns países europeus no sentido de reformular os sistemas de governo consagrados nas respetivas Constituições poderão gerar criaturas não menos desagradáveis à vista. Dois exemplos claros são o da Irlanda e da Itália. As alterações, em fase de preparação, têm por objetivo melhorar a qualidade da vida política. Mas os resultados serão mais parcos do que pretendem os apoiantes dessas reformas. No caso, muito diferente, da Hungria, as razões da reforma são menos no interesse público e terão resultados mais prejudiciais do que benéficos.
Em Dublin e em Roma, os dirigentes políticos estabelecem uma ligação entre a reforma constitucional e a luta para superar as crises económicas nacionais da era da zona euro. O Governo irlandês propõe a abolição do Senado, a câmara alta do Parlamento. É provável que se realize um referendo, no fim do ano. Dado o desprezo que nutrem pelos políticos nacionais, que dirigiram uma das mais espetaculares crises financeiras da história, não será de espantar que os eleitores irlandeses matem o Senado e comemorem a sua morte durante uma semana.
O Executivo também quer redimensionar o Parlamento e acabar com o sistema, que data de 1948 e é único na Europa
A coligação esquerda-direita no poder em Itália tenciona rever a lei eleitoral e livrar-se por completo de um nível governativo – as 86 províncias preguiçosamente aninhadas entre as 20 regiões e os 8000 municípios do país. O Executivo também quer redimensionar o Parlamento e acabar com o sistema, que data de 1948 e é único na Europa, no qual as câmaras alta e baixa têm exatamente os mesmos poderes legislativos. O prazo para a adoção destas alterações vai até finais de 2014 mas, se a coligação cair, as reformas poderão desaparecer numa nuvem de fumo.
Atores menos que secundários
Os primeiros-ministros irlandês e italiano, Enda Kenny e Enrico Letta, defendem as suas propostas com o argumento de que a modernização das instituições políticas reforçará a democracia, produzirá leis melhores e contribuirá assim, direta e indiretamente, para a prosperidade e para a estabilidade económica. Também afirmam que as suas sociedades atormentadas pela austeridade esperam justificadamente que os políticos gastem menos consigo próprios e com as instituições.
Dentro desse espírito, o Governo de Kenny prevê que acabar com o Senado poupará 20 milhões de euros anuais aos contribuintes irlandeses. As economias resultantes da abolição das províncias de Itália e da redução do número de deputados em Roma seriam ainda maiores: centenas de milhões de euros por ano. Letta merece ser louvado por ter reconhecido que os custos da política no país têm sido insultuosamente elevados desde os anos de 1960, devido à incurável tendência das classes políticas de se aproveitarem do erário público. Mas, a prestação de contas pelo fraco desempenho económico da Itália desde a sua entrada na zona euro, em 1999, talvez não devesse começar pelas províncias. Num quadro de política económica, as províncias são, no máximo, atores menos que secundários.
Um bloco contrário às reformas
Do mesmo modo, não se pode dizer que o Senado irlandês tenha sido responsável pelos desastres financeiros da era do euro. Culpem-se antes os políticos que se associaram ao setor da construção e aos promotores imobiliários. Talvez o Senado devesse ter sido mais veemente nas perguntas que fez sobre a decisão do Governo em funções em 2008 de prestar uma garantia global aos bancos irlandeses falidos. Mas a verdade é que os poderes do Senado em matéria de política financeira são poucos. Na ordem constitucional irlandesa reformulada, nada impediria um governo, uma legislatura de câmara única, ou bandos de banqueiros fúteis, de cometer novos erros estúpidos – ainda que, ousemos esperar, não à escala de 2008.
Mais útil, em Itália, seria uma reforma do sistema dos partidos políticos que impedisse estas organizações de, eleição após eleição, mandarem para o Parlamento centenas de advogados e outros representantes de interesses profissionais instituídos. Estes legisladores estão distantes dos eleitores que os elegem, mas são espantosamente hábeis em erradicar a parte essencial da liberalização das leis destinadas a fazer progredir a reforma económica e a concorrência.
Se não soprarem novos ventos na cultura política do país, a reforma constitucional proposta – se alguma vez for aprovada – pode simplesmente fazer convergir um bloco contrário às reformas
Rever o sistema eleitoral e alterar os poderes das duas câmaras do Parlamento poderá criar condições para governos um pouco mais estáveis. Mas é pouco provável que essas mudanças ponham em fuga os sabotadores privilegiados da reforma, que resistem à renovação económica da Itália. Se não soprarem novos ventos na cultura política do país, a reforma constitucional proposta – se alguma vez for aprovada – pode simplesmente fazer convergir um bloco contrário às reformas, na recém-reforçada câmara baixa.
Cimentar a supermacia política
Contudo, é Budapeste que apresenta o exemplo mais gritante de uma reforma constitucional mal concebida. A Hungria livrou-se do comunismo em 1989-1990, mas, ao contrário dos países vizinhos, durante 20 anos, lutou com dificuldades para substituir a sua Constituição da era comunista. Aderiu à UE em 2004, mas, durante a crise de 2008, pediu ajuda financeira, tendo o maior empréstimo sido concedido pelo Fundo Monetário Internacional. As profundas alterações à Constituição, introduzidas desde 2011, não foram inspiradas pelo desejo de aperfeiçoar a democracia húngara ou a qualidade das leis sobre política económica.
Essas alterações refletem antes os esforços do Fidesz, o partido no poder, de cimentar a sua supremacia política. Uma das vias para essa meta é a reforma eleitoral, já aprovada, que reduz de 386 para 199 os assentos no próximo Parlamento húngaro, que será eleito em 2014. Essa redução irá sem dúvida limitar as hipóteses de partidos mais pequenos que o Fidesz virem a participar no processo legislativo.
Na Irlanda e na Itália, as alterações propostas talvez mereçam ser experimentadas – mas não representarão uma cura milagrosa para culturas políticas há muito marcadas pelo egoísmo e por comportamentos financeiros impróprios. Na Hungria, o Fidesz está a confundir reforma constitucional com benefícios políticos para o partido.
Traduzido por Fernanda Barão
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