Por Naomi Wolf
Na sequência da queima de exemplares do Corão por tropas dos Estados Unidos na Base Aérea de Bagram, no Afeganistão, os protestos continuam a crescer e o número de mortes a aumentar. Durante este processo, houve três ângulos cegos dos EUA que se tornaram óbvios.
Um deles é o da comunicação social norte-americana, cuja cobertura simplesmente destaca e amplia a impressionante falta de conhecimento que desencadeou os protestos em primeiro lugar. Os jornalistas profissionais são obrigados a responder a cinco perguntas: quem, o quê, onde, porquê e como. Mas, ao ler a notícia na Associated Press, no The New York Times e no The Washington Post, entre outros, tive que procurar exaustivamente antes de conseguir formar uma imagem do que tinha realmente acontecido aos exemplares em questão do Corão. Não só as descrições eram divergentes; como também nenhuma delas forneceu uma noção clara de quem supostamente teria feito o quê e muito menos por que razão ou como.
Terão sido queimados os exemplares do Corão, como relatava uma notícia norte-americana, sob a supervisão de oficiais militares dos EUA? Ou foram trazidos por soldados para serem incinerados, segundo outra versão, como parte de uma apreensão de "literatura extremista" e de comunicações pessoais dos reclusos, tendo os trabalhadores afegãos alertado outros na base sobre a natureza dos materiais?
Estas descrições obscuras – sem temas ou acções claros (por incrível que pareça, o The New York Times, conseguiu não mencionar uma única palavra sobre a queima) – reflectem o que acontece quando as agências de notícias mais importantes parecem simplesmente escrever textos ditados pelo Pentágono.
O segundo ângulo cego americano é o da politização desta afronta terrível. O candidato presidencial republicano, Newt Gingrich, qualificou as desculpas de Obama como uma "rendição", enquanto outro candidato republicano, Rick Santorum, se sente ofendido por alguém sugerir que os EUA deviam assumir a "culpa".
Esta ausência de perspectiva revela a ignorância cultural que converteu as recentes intervenções externas dos EUA em catástrofes políticas. Também eu venho de uma religião abraâmica, o judaísmo, que partilha fortes raízes com o Islão. Em ambas as religiões, os textos sagrados são tratados como se fossem, de certa forma, seres vivos. Os judeus fazem-lhes, inclusivamente, "funerais" quando estão demasiado velhos para serem usados e tratam-nos de forma ritualista enquanto estão "vivos", usando ponteiros de prata para evitar a sua profanação por mãos humanas, revestindo-os com capas de veludo e beijando-os quando caem no chão.
Queimar textos sagrados de um povo conquistado significa enviar uma mensagem inconfundível: pode fazer-se qualquer coisa a estas pessoas. Como afirmou Heinrich Heine, referindo-se à queima do Corão pela Inquisição espanhola: "Onde se queimam livros, também se acabarão por queimar seres humanos". Os judeus entendem isto muito bem: da Inquisição aos massacres pelos cossacos, a Kristallnacht (Noite dos Cristais), os agressores destruíram Toras como um percursor lógico e bem compreendido para destruir os judeus.
O terceiro ângulo cego é quase demasiado doloroso para ser abordado – o que, numa interpretação generosa, poderia explicar a razão pela qual não foi referido por nenhum dos grandes meios de comunicação dos EUA: a queima dos exemplares não foi realizada numa qualquer rua de Cabul, mas sim em Bagram. Ou seja, os exemplares do Corão foram queimados numa instalação norte-americana que se enquadra naquilo que o dicionário define como campo de concentração.
Em 2009, o Spiegel Online publicou uma galeria de retratos sobre Bagram intitulada "Câmara de Tortura da América". O artigo “The Forgotten Guantánamo", informava que estavam 600 indivíduos detidos em Bagram, sem acusação. Todos foram qualificados como "combatentes inimigos ilegais", o que permitiu aos EUA argumentar que não tinham direito às protecções das Convenções de Genebra. Um procurador militar afirmou que, comparado com Bagram, Guantánamo Bay era "um bom hotel".Com efeito, Khalid Sheikh Mohammad, invariavelmente nomeado nos EUA como "o auto-proclamado arquitecto chefe do 11 de Setembro", disse à Cruz Vermelha que tinha sido pendurado por algemas e sofrido agressões sexuais em Bagram: "Fui obrigado a deitar-me no chão. Introduziram-me um tubo no ânus, vertendo água para dentro do mesmo". Outro prisioneiro, Raymond Azar, testemunhou que dez agentes do FBI o tinham sequestrado, mostraram-lhe fotos de familiares seus e disseram-lhe que caso não "colaborasse”, não voltaria a vê-los.
A BBC comparou os testemunhos de nove prisioneiros em 2010, confirmando que a violação dos direitos humanos continuava a acontecer em Bagram. Entrevistados individualmente, os reclusos referiram a existência de "uma prisão secreta" dentro da prisão, denominada "buraco negro". Naquela altura os reclusos ainda eram sujeitos a temperaturas negativas, privação do sono e "outros abusos". Um deles testemunhou que um soldado americano tinha usado uma espingarda para lhe partir uma fila de dentes e que era forçado a dançar ao som de uma música sempre que precisava de ir à casa de banho.
Outra investigação confirmou alegações semelhantes em 2010 e, no mês passado, a BBCnoticiou que a população da prisão de Bagram atingiu os 3 mil, enquanto uma investigação levada a cabo pelo Afeganistão obteve mais provas da tortura praticada naquela prisão, incluindo sujeitar os reclusos a temperaturas de congelamento e a humilhações sexuais.
Obviamente, dado que os militares dos EUA podem deter qualquer pessoa no Afeganistão, mantendo-a para sempre nessas condições sem acusação, todo o país vive sob o espectro da tortura em Bagram. A queima dos exemplares do Corão constitui um símbolo poderoso desta ameaça sistémica.
Assim, enquanto o presidente Obama deve continuar a pedir desculpas pela queima dos exemplares do Corão, devemos entender que a raiva dos afegãos é uma resposta a uma ferida ainda mais profunda e aberta. Obama também devia pedir desculpas pelo sequestro de afegãos; por mantê-los em Bagram, sem o devido procedimento legal; por forçá-los a estar em jaulas, que alegadamente albergavam até 30 reclusos; por lhes proibir visitas da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho; por lhes confiscar ilegalmente cartas de familiares, pela tortura e abuso sexual a que os sujeitam e por lançar uma nuvem de medo sobre o país.
O Corão proíbe este tipo de injustiça e crueldade. A Bíblia também. [Ouvir podcast deste artigo em inglês aqui (mp3)]
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