Branko
Milanovic, economista-chefe do Banco Mundial, alerta para o resultado
desigual das políticas do FMI
no passado. Mas não vê outra solução para
a crise europeia.
O sistema não foi capaz de debelar a crise financeira há quatro anos e, hoje, a Europa assiste à substituição dos líderes políticos por tecnocratas que precisam de “ser pessoas próximas dos cidadãos”. O retrato é feito pelo economista-chefe do Banco Mundial, Branko Milanovic, que atribui falta de criatividade aos dirigentes europeus para travar o contágio da crise.
Dedicado ao estudo da distribuição de rendimentos desde os anos 1980, quando se formou em Belgrado, investigador no Carnegie Endowment for International Peace, em Washington, Milanovic sublinha o efeito da austeridade na classe média e, em particular, nos pobres. Mas ressalva que o impacto nas desigualdades globais é relativo. À conversa com o PÚBLICO, quando esteve recentemente em Lisboa para falar sobre globalização e desenvolvimento, tema que aborda no seu último livro, The Haves and the Have-Nots (Os que Têm e Os que Não Têm, numa tradução livre), deixa um aviso aos líderes europeus: se, perante uma crise séria, o sistema chama tecnocratas ao poder sem antes irem a eleições, os Governos estão a entrar numa lógica perigosa. E o sinal que dão aos cidadãos não é saudável para a democracia.
Quando começou a escrever sobre a distribuição da riqueza mundial, no final dos anos 1980 e a Europa de Leste e Central estava a caminho da transição para a economia de mercado, alguma coisa fazia prever este aumento das desigualdades na distribuição de rendimentos no interior dos países?
Não era imediatamente perceptível. Houve um grande aumento [da riqueza] e a razão tem a ver com a globalização; se olharmos para a perspectiva económica, era expectável que os países pobres tivessem um crescimento maior do que os países ricos, porque a ideia era a de que, com a globalização, existisse uma transferência de capital maior para os países pobres, que podiam também usar tecnologia que não estavam normalmente aptos a usar, e que, essencialmente, se pudessem especializar em transaccionar aquilo em que eram bons a produzir. No fundo, estava patente uma ideia de convergência entre países pobres e países ricos, mas o que, de facto, aconteceu entre 1980 e 2000 foi o contrário: uma divergência na distribuição de rendimento. Estamos a falar especificamente da diferença entre o Produto Interno Bruto (PIB), mas é preciso ter em atenção que a China e a Índia tiveram uma boa trajectória e que representam um terço da população mundial.
Neutralizaram as diferenças?
Houve um travão no aumento das desigualdades. Existem, essencialmente, três forças nas desigualdades mundiais: o aumento entre países (por exemplo, entre Portugal, os Estados Unidos, o Reino Unido, China, Rússia); depois, uma grande divergência entre regiões (a África, a Europa de Leste e a América Latina a crescerem muito devagar ou com um crescimento negativo); e por outro lado, o mundo desenvolvido com um bom desempenho. Portugal está neste último grupo. Mas aqui entra uma quarta força, que foi o rápido crescimento da China e da Índia, que reduziram as desigualdades mundiais. É por isso que penso ser importante distinguir entre estras três-quatro forças que actuam sobre as desigualdades mundiais.
Olhando para o caso europeu: há hoje sinais de desmantelamento do Estado Social, uma vaga de austeridade que, em alguns casos, ameaça a classe média e uma escalada do desemprego. É um sinal da relação estreita entre as desigualdades na distribuição de rendimentos e a crise financeira global?
Existe uma relação próxima, porque hoje podemos argumentar que existe uma relação em dois sentidos, particularmente nos Estados Unidos. Por um lado, existem muitas pessoas com grande poder económico e activos financeiros ao ponto de não terem mais momentos de oportunidade para investir – e o sector financeiro teve de encontrar oportunidades de risco. Por outro, há o problema de os rendimentos da classe média não terem aumentado em duas décadas [nos EUA]. E isto tornou-se um problema político. Para os políticos foi bom, durante um período, estimular os empréstimos à classe média, fazendo com que parecesse que os rendimentos aumentavam como o dos ricos – que, na verdade, cresciam –, mas o rendimento da classe média não cresceu; foi suportado pelos empréstimos e, consequentemente, pareceu como se, na verdade, fosse assim. Há hoje cada vez mais pessoas a acreditar que, como reacção à crise, há pessoas ricas que procuram meios de usar o seu capital, depois, pessoas com rendimentos médios que precisam de acreditar que o seu rendimento está a crescer e, ainda, os políticos, que precisam de fazer a classe média feliz, porque precisam do seu voto. E, finalmente, temos o sector financeiro, que também quer emprestar, porque procura ao mesmo tempo fazer dinheiro. Todos estes grupos têm o seu próprio interesse em fazer isto. Naturalmente o problema verifica-se quando a classe média não consegue pagar os seus empréstimos e, nessa altura, todo o sistema pára.
Qual o efeito inverso, ou seja, os impactos directos da crise na desigualdade de distribuição da riqueza?
Na verdade, os primeiros impactos são diferentes, por causa do primeiro efeito da crise nos países ricos, que geralmente no início perdem rendimento e activos – por exemplo, pessoas que tinham grandes posses, que tinham investido em obrigações e que perderam até a propriedade. Este é o primeiro impacto. O problema é que o segundo e o terceiro, particularmente na Europa, onde são tomadas políticas de austeridade restritivas, são sentidos pela classe média e, em especial, pelos pobres. O desemprego começa a aumentar, as pessoas perdem emprego ou começam a trabalhar mais horas, são alteradas regras [na atribuição] das pensões... O segundo impacto tem um reflexo no aumento das desigualdades, mas também é preciso dizer que vários autores encontraram impactos relativos na Europa Ocidental.
Como é que vê a resposta europeia para ultrapassar a crise neste contexto em que já se percebeu que os maiores não estão a salvo?
Estou relativamente pessimista sobre as medidas de austeridade que estão para vir. Entrámos numa espécie de espiral negativa. Os países tiveram de cortar nas despesas, de tentar equilibrar as contas públicas e aumentaram os impostos indirectos, no IVA ou uma [taxa] equivalente, em vez dos impostos directos, e tudo isto teve um impacto negativo na igualdade de rendimentos. Os impostos indirectos são geralmente regressivos, o que significa que, proporcionalmente, afectam mais os pobres do que os ricos. Os impostos directos têm um impacto progressivo, porque os ricos pagam mais.
É preciso uma política de estímulos alternativa? Um quadro diferente da resposta ao que hoje se propõe: recessão para depois se crescer e ganhar competitividade?
Aqui entramos na macroeconomia, que já sai fora da minha área [de estudo]. Mas digo apenas que estas políticas cíclicas exacerbaram o ciclo de queda da economia... E, depois, cortam-se as despesas e mais despesas... Uma vez que o euro é controlado pelo Banco Central Europeu, não existe a possibilidade de imprimir mais moeda. Pessoas como [Joseph] Stiglitz e [Paul] Krugman criticaram-no. Estas políticas foram aplicadas nos países em desenvolvimento desde há 30 anos. O que está a acontecer à Grécia neste momento e as políticas adoptadas em Portugal, Espanha e Itália não são novas. Aproximam-se do que se passou no Brasil, no México, na Argentina e em países de África. São políticas-padrão aplicadas pelo FMI e os resultados foram desiguais.
Os últimos dados do Eurostat mostram que, na União Europeia, 23% da população está em risco de pobreza ou de exclusão social. Os contrastes sociais na Europa têm vindo a aumentar?
Houve certamente mais conflitos sociais em 2009. Não vejo que haja uma ameaça maior hoje. Assistimos é, potencialmente, a um [modelo de] desenvolvimento perigoso em que os governos eleitos democraticamente são substituídos por tecnocratas, como aconteceu em Itália e na Grécia, o que indica indirectamente que o próprio sistema democrático não foi capaz de debelar a crise. Portugal e Espanha estão em posições diferentes, porque têm novos governos [eleitos], onde o sistema foi capaz de resolver o problema [da crise política]. Em Itália e na Grécia, tiveram de chamar tecnocratas. [Mario] Monti não é um líder político, não foi eleito. [Lucas] Papademos também não. Consigo entender a lógica, porque ganham um suporte mais vasto [dos partidos] por serem tecnocratas, mas não é bom para a democracia. Se há uma crise séria e o sistema político [vigente] não consegue resolver essa crise, a substituição por tecnocratas não é bom para o desenvolvimento democrático. Não tenho nada contra os tecnocratas – eu próprio sou um tecnocrata… – mas não penso que os líderes políticos tenham de o ser. Os tecnocratas podem ajudar (através de conclusões, produzindo relatórios, dando ideias), mas os líderes políticos devem ser pessoas próximas dos cidadãos.
As decisões políticas submeteram-se às decisões dos mercados financeiros?
Não penso que alguém seja a favor disso, mas é muito difícil ver como é que hoje se pode sair desta situação. Os tecnocratas que estão agora no poder vieram precisamente como resposta aos mercados financeiros. Parece não haver saída. A sua posição política é dizer: “Temos de cortar o défice”, posição que se compreende – eu não encontro uma solução para a crise. A sua posição é: “Nós podemos continuar endividar-nos, mas vamos pagar uma taxa de juro insustentável”. A Grécia é o expoente máximo disto. Alguém pode pagar 15% de juros? Ninguém consegue. E, então, dizem: “A única forma de baixar as taxas de juro para um nível sustentável é cortando o défice”. [Os Governos] não têm alternativas a apresentar. No entanto, o efeito é conhecido: cortes nas pensões sociais, aumento de impostos, aumento do desemprego e um sentimento de insatisfação do país em relação à política e, obviamente, os partidos não são capazes de sobreviver a eleições. Não penso que alguém consiga ver saída para isto, excepto a saída da zona euro. Mas, neste caso, o jogo já é outro. É um cenário impensável; penso que o euro irá sobreviver.
Quais as consequências sobre a unidade política de um país?
Podem ter muitas consequências negativas. Uma é óbvia: se existirem grandes desigualdades, os mais ricos, o poder político e o poder económico tentam manter as suas posições. A Bolívia ou a Venezuela sempre tiveram sérios conflitos sociais que impediram uma política económica consistente. Um segundo tipo de consequências é visível, por exemplo, na Ex-Jugoslávia, com diferenças entre religiosos: uns muito ricos e outros muito pobres. Algo semelhante está agora a acontecer na China, com os mais ricos a tornarem-se cada vez mais ricos e, ao mesmo tempo no mesmo país, dois terços da população pobre.
Mais do que pela classe, as desigualdades de rendimento podem ser explicadas pela origem do país?
Tem muito a ver com a nacionalidade. Entre as desigualdades a nível global, cerca de 80% devem-se a diferenças entre países. Por outras palavras, é determinante se uma pessoa é cidadã de um país desenvolvido, porque, mesmo sendo uma pessoa pobre num país rico, em termos comparativos com a distribuição da riqueza a nível mundial, estará melhor.
É uma ideia que não mudou nos últimos 20 anos?
Mudou ligeiramente, por causa do aumento da riqueza em países como a China, a Indonésia, o Brasil. Estes países cresceram, fizeram com que mudasse alguma coisa, mas não de uma forma brusca. Tivemos os países ricos a crescer muito lentamente e os países pobres a crescer muito rapidamente.
Daí o impacto directo das desigualdades na eficiência económica?
Será por aí, mas sobre isso há duas teorias: uma, que a desigualdade é boa para o crescimento e, outra, que [diz que] é má. Pessoas como Mitt Romney, nos Estados Unidos, acreditam que é boa, porque se na desigualdade houver pessoas ricas, estas vão investir e criar novos empregos, com um efeito positivo para a economia. As pessoas que pensam que a desigualdade é má acreditam que um país mais igualitário preservará o poder político e económico.
Se a distribuição de rendimentos tem na nacionalidade uma causa tão forte, depois no interior de um país, que influência resta para as políticas nacionais?
É muito influenciada. Depende em larga medida das políticas, mas é também influenciada por aquilo que se tem. Por outras palavras, num país que está no nível riqueza mais baixo, a diferença entre pessoas muito qualificadas e a restante população será muito grande. Um país pobre não pode fazer muito a favor da distribuição da riqueza. As decisões políticas têm muito mais poder nos países desenvolvidos, porque perto de 40% do PIB é taxado e é possível fazer alguma coisa com isso. Nos países pobres, os governos não podem aumentar muito os impostos. Os países realmente pobres não podem ter políticas sociais que os Estados ricos podem praticar: o acesso gratuito à educação, programas de saúde públicos... Os países pobres não conseguem pagar pensões, pagar uma taxa de desemprego...
A crise é resultado de um ciclo vicioso de perpetuação da pobreza?
No caso da Europa, vive-se um ciclo vicioso. O PIB está estagnado ou poderá contrair-se. A eficiência orçamental mantém-se insuficiente, porque os países pagam taxas de juro mais elevadas para se endividarem e têm de cortar no seu défice, o que implica menos despesa e que o sector privado gaste menos. A política económica, seja onde for, tem dois braços: um orçamental e outro de controlo. Na Europa, os países apenas têm a orçamental, porque o controlo é feito pelo Banco Central Europeu.
Podemos questionar a existência, hoje, de uma classe média?
A nível global, temos para cada país critérios individuais para definir a classe média. Isto em termos económicos. A definição sociológica é mais subjectiva. Se em Portugal se perguntar quem é da classe média, toda a gente vai dizer: “Eu sou da classe média, eu sou da classe média”. Muito poucas pessoas ricas dirão: “Eu sou rico”. Dirão que são da classe média – é subjectivo. Já a definição económica é muito clara: a partir do rendimento médio de um país, olha-se para 25% acima e abaixo deste rendimento e calcula-se a percentagem da população. Nos países com uma grande classe média, têm muitas pessoas neste grupo, cerca de 40% da população, em países da Escandinávia, a Alemanha, França… Portugal estará próximo deste número. Mas, depois, os países que estão nos extremos têm tanto pessoas muito ricas como pessoas muito pobres: os países da América Latina têm 15% a 30% de classe média. O mundo não é uma sociedade de classe média, tem algo como 800 milhões de pessoas de classe média, o que é pouco em relação aos 7000 milhões da população mundial.
Na própria Europa, não falamos de classe média da mesma forma em Portugal do que, por exemplo, na Alemanha.
Esse é um outro problema, que é de rendimento, mais do que de definição. Em Portugal, 85% da população terá um rendimento inferior ao de um salário de um professor. Um alemão terá um salário superior, porque a média dos rendimentos na Alemanha é mais alta. É um problema de distribuição.
O sistema não foi capaz de debelar a crise financeira há quatro anos e, hoje, a Europa assiste à substituição dos líderes políticos por tecnocratas que precisam de “ser pessoas próximas dos cidadãos”. O retrato é feito pelo economista-chefe do Banco Mundial, Branko Milanovic, que atribui falta de criatividade aos dirigentes europeus para travar o contágio da crise.
Dedicado ao estudo da distribuição de rendimentos desde os anos 1980, quando se formou em Belgrado, investigador no Carnegie Endowment for International Peace, em Washington, Milanovic sublinha o efeito da austeridade na classe média e, em particular, nos pobres. Mas ressalva que o impacto nas desigualdades globais é relativo. À conversa com o PÚBLICO, quando esteve recentemente em Lisboa para falar sobre globalização e desenvolvimento, tema que aborda no seu último livro, The Haves and the Have-Nots (Os que Têm e Os que Não Têm, numa tradução livre), deixa um aviso aos líderes europeus: se, perante uma crise séria, o sistema chama tecnocratas ao poder sem antes irem a eleições, os Governos estão a entrar numa lógica perigosa. E o sinal que dão aos cidadãos não é saudável para a democracia.
Quando começou a escrever sobre a distribuição da riqueza mundial, no final dos anos 1980 e a Europa de Leste e Central estava a caminho da transição para a economia de mercado, alguma coisa fazia prever este aumento das desigualdades na distribuição de rendimentos no interior dos países?
Não era imediatamente perceptível. Houve um grande aumento [da riqueza] e a razão tem a ver com a globalização; se olharmos para a perspectiva económica, era expectável que os países pobres tivessem um crescimento maior do que os países ricos, porque a ideia era a de que, com a globalização, existisse uma transferência de capital maior para os países pobres, que podiam também usar tecnologia que não estavam normalmente aptos a usar, e que, essencialmente, se pudessem especializar em transaccionar aquilo em que eram bons a produzir. No fundo, estava patente uma ideia de convergência entre países pobres e países ricos, mas o que, de facto, aconteceu entre 1980 e 2000 foi o contrário: uma divergência na distribuição de rendimento. Estamos a falar especificamente da diferença entre o Produto Interno Bruto (PIB), mas é preciso ter em atenção que a China e a Índia tiveram uma boa trajectória e que representam um terço da população mundial.
Neutralizaram as diferenças?
Houve um travão no aumento das desigualdades. Existem, essencialmente, três forças nas desigualdades mundiais: o aumento entre países (por exemplo, entre Portugal, os Estados Unidos, o Reino Unido, China, Rússia); depois, uma grande divergência entre regiões (a África, a Europa de Leste e a América Latina a crescerem muito devagar ou com um crescimento negativo); e por outro lado, o mundo desenvolvido com um bom desempenho. Portugal está neste último grupo. Mas aqui entra uma quarta força, que foi o rápido crescimento da China e da Índia, que reduziram as desigualdades mundiais. É por isso que penso ser importante distinguir entre estras três-quatro forças que actuam sobre as desigualdades mundiais.
Olhando para o caso europeu: há hoje sinais de desmantelamento do Estado Social, uma vaga de austeridade que, em alguns casos, ameaça a classe média e uma escalada do desemprego. É um sinal da relação estreita entre as desigualdades na distribuição de rendimentos e a crise financeira global?
Existe uma relação próxima, porque hoje podemos argumentar que existe uma relação em dois sentidos, particularmente nos Estados Unidos. Por um lado, existem muitas pessoas com grande poder económico e activos financeiros ao ponto de não terem mais momentos de oportunidade para investir – e o sector financeiro teve de encontrar oportunidades de risco. Por outro, há o problema de os rendimentos da classe média não terem aumentado em duas décadas [nos EUA]. E isto tornou-se um problema político. Para os políticos foi bom, durante um período, estimular os empréstimos à classe média, fazendo com que parecesse que os rendimentos aumentavam como o dos ricos – que, na verdade, cresciam –, mas o rendimento da classe média não cresceu; foi suportado pelos empréstimos e, consequentemente, pareceu como se, na verdade, fosse assim. Há hoje cada vez mais pessoas a acreditar que, como reacção à crise, há pessoas ricas que procuram meios de usar o seu capital, depois, pessoas com rendimentos médios que precisam de acreditar que o seu rendimento está a crescer e, ainda, os políticos, que precisam de fazer a classe média feliz, porque precisam do seu voto. E, finalmente, temos o sector financeiro, que também quer emprestar, porque procura ao mesmo tempo fazer dinheiro. Todos estes grupos têm o seu próprio interesse em fazer isto. Naturalmente o problema verifica-se quando a classe média não consegue pagar os seus empréstimos e, nessa altura, todo o sistema pára.
Qual o efeito inverso, ou seja, os impactos directos da crise na desigualdade de distribuição da riqueza?
Na verdade, os primeiros impactos são diferentes, por causa do primeiro efeito da crise nos países ricos, que geralmente no início perdem rendimento e activos – por exemplo, pessoas que tinham grandes posses, que tinham investido em obrigações e que perderam até a propriedade. Este é o primeiro impacto. O problema é que o segundo e o terceiro, particularmente na Europa, onde são tomadas políticas de austeridade restritivas, são sentidos pela classe média e, em especial, pelos pobres. O desemprego começa a aumentar, as pessoas perdem emprego ou começam a trabalhar mais horas, são alteradas regras [na atribuição] das pensões... O segundo impacto tem um reflexo no aumento das desigualdades, mas também é preciso dizer que vários autores encontraram impactos relativos na Europa Ocidental.
Como é que vê a resposta europeia para ultrapassar a crise neste contexto em que já se percebeu que os maiores não estão a salvo?
Estou relativamente pessimista sobre as medidas de austeridade que estão para vir. Entrámos numa espécie de espiral negativa. Os países tiveram de cortar nas despesas, de tentar equilibrar as contas públicas e aumentaram os impostos indirectos, no IVA ou uma [taxa] equivalente, em vez dos impostos directos, e tudo isto teve um impacto negativo na igualdade de rendimentos. Os impostos indirectos são geralmente regressivos, o que significa que, proporcionalmente, afectam mais os pobres do que os ricos. Os impostos directos têm um impacto progressivo, porque os ricos pagam mais.
É preciso uma política de estímulos alternativa? Um quadro diferente da resposta ao que hoje se propõe: recessão para depois se crescer e ganhar competitividade?
Aqui entramos na macroeconomia, que já sai fora da minha área [de estudo]. Mas digo apenas que estas políticas cíclicas exacerbaram o ciclo de queda da economia... E, depois, cortam-se as despesas e mais despesas... Uma vez que o euro é controlado pelo Banco Central Europeu, não existe a possibilidade de imprimir mais moeda. Pessoas como [Joseph] Stiglitz e [Paul] Krugman criticaram-no. Estas políticas foram aplicadas nos países em desenvolvimento desde há 30 anos. O que está a acontecer à Grécia neste momento e as políticas adoptadas em Portugal, Espanha e Itália não são novas. Aproximam-se do que se passou no Brasil, no México, na Argentina e em países de África. São políticas-padrão aplicadas pelo FMI e os resultados foram desiguais.
Os últimos dados do Eurostat mostram que, na União Europeia, 23% da população está em risco de pobreza ou de exclusão social. Os contrastes sociais na Europa têm vindo a aumentar?
Houve certamente mais conflitos sociais em 2009. Não vejo que haja uma ameaça maior hoje. Assistimos é, potencialmente, a um [modelo de] desenvolvimento perigoso em que os governos eleitos democraticamente são substituídos por tecnocratas, como aconteceu em Itália e na Grécia, o que indica indirectamente que o próprio sistema democrático não foi capaz de debelar a crise. Portugal e Espanha estão em posições diferentes, porque têm novos governos [eleitos], onde o sistema foi capaz de resolver o problema [da crise política]. Em Itália e na Grécia, tiveram de chamar tecnocratas. [Mario] Monti não é um líder político, não foi eleito. [Lucas] Papademos também não. Consigo entender a lógica, porque ganham um suporte mais vasto [dos partidos] por serem tecnocratas, mas não é bom para a democracia. Se há uma crise séria e o sistema político [vigente] não consegue resolver essa crise, a substituição por tecnocratas não é bom para o desenvolvimento democrático. Não tenho nada contra os tecnocratas – eu próprio sou um tecnocrata… – mas não penso que os líderes políticos tenham de o ser. Os tecnocratas podem ajudar (através de conclusões, produzindo relatórios, dando ideias), mas os líderes políticos devem ser pessoas próximas dos cidadãos.
As decisões políticas submeteram-se às decisões dos mercados financeiros?
Não penso que alguém seja a favor disso, mas é muito difícil ver como é que hoje se pode sair desta situação. Os tecnocratas que estão agora no poder vieram precisamente como resposta aos mercados financeiros. Parece não haver saída. A sua posição política é dizer: “Temos de cortar o défice”, posição que se compreende – eu não encontro uma solução para a crise. A sua posição é: “Nós podemos continuar endividar-nos, mas vamos pagar uma taxa de juro insustentável”. A Grécia é o expoente máximo disto. Alguém pode pagar 15% de juros? Ninguém consegue. E, então, dizem: “A única forma de baixar as taxas de juro para um nível sustentável é cortando o défice”. [Os Governos] não têm alternativas a apresentar. No entanto, o efeito é conhecido: cortes nas pensões sociais, aumento de impostos, aumento do desemprego e um sentimento de insatisfação do país em relação à política e, obviamente, os partidos não são capazes de sobreviver a eleições. Não penso que alguém consiga ver saída para isto, excepto a saída da zona euro. Mas, neste caso, o jogo já é outro. É um cenário impensável; penso que o euro irá sobreviver.
Quais as consequências sobre a unidade política de um país?
Podem ter muitas consequências negativas. Uma é óbvia: se existirem grandes desigualdades, os mais ricos, o poder político e o poder económico tentam manter as suas posições. A Bolívia ou a Venezuela sempre tiveram sérios conflitos sociais que impediram uma política económica consistente. Um segundo tipo de consequências é visível, por exemplo, na Ex-Jugoslávia, com diferenças entre religiosos: uns muito ricos e outros muito pobres. Algo semelhante está agora a acontecer na China, com os mais ricos a tornarem-se cada vez mais ricos e, ao mesmo tempo no mesmo país, dois terços da população pobre.
Mais do que pela classe, as desigualdades de rendimento podem ser explicadas pela origem do país?
Tem muito a ver com a nacionalidade. Entre as desigualdades a nível global, cerca de 80% devem-se a diferenças entre países. Por outras palavras, é determinante se uma pessoa é cidadã de um país desenvolvido, porque, mesmo sendo uma pessoa pobre num país rico, em termos comparativos com a distribuição da riqueza a nível mundial, estará melhor.
É uma ideia que não mudou nos últimos 20 anos?
Mudou ligeiramente, por causa do aumento da riqueza em países como a China, a Indonésia, o Brasil. Estes países cresceram, fizeram com que mudasse alguma coisa, mas não de uma forma brusca. Tivemos os países ricos a crescer muito lentamente e os países pobres a crescer muito rapidamente.
Daí o impacto directo das desigualdades na eficiência económica?
Será por aí, mas sobre isso há duas teorias: uma, que a desigualdade é boa para o crescimento e, outra, que [diz que] é má. Pessoas como Mitt Romney, nos Estados Unidos, acreditam que é boa, porque se na desigualdade houver pessoas ricas, estas vão investir e criar novos empregos, com um efeito positivo para a economia. As pessoas que pensam que a desigualdade é má acreditam que um país mais igualitário preservará o poder político e económico.
Se a distribuição de rendimentos tem na nacionalidade uma causa tão forte, depois no interior de um país, que influência resta para as políticas nacionais?
É muito influenciada. Depende em larga medida das políticas, mas é também influenciada por aquilo que se tem. Por outras palavras, num país que está no nível riqueza mais baixo, a diferença entre pessoas muito qualificadas e a restante população será muito grande. Um país pobre não pode fazer muito a favor da distribuição da riqueza. As decisões políticas têm muito mais poder nos países desenvolvidos, porque perto de 40% do PIB é taxado e é possível fazer alguma coisa com isso. Nos países pobres, os governos não podem aumentar muito os impostos. Os países realmente pobres não podem ter políticas sociais que os Estados ricos podem praticar: o acesso gratuito à educação, programas de saúde públicos... Os países pobres não conseguem pagar pensões, pagar uma taxa de desemprego...
A crise é resultado de um ciclo vicioso de perpetuação da pobreza?
No caso da Europa, vive-se um ciclo vicioso. O PIB está estagnado ou poderá contrair-se. A eficiência orçamental mantém-se insuficiente, porque os países pagam taxas de juro mais elevadas para se endividarem e têm de cortar no seu défice, o que implica menos despesa e que o sector privado gaste menos. A política económica, seja onde for, tem dois braços: um orçamental e outro de controlo. Na Europa, os países apenas têm a orçamental, porque o controlo é feito pelo Banco Central Europeu.
Podemos questionar a existência, hoje, de uma classe média?
A nível global, temos para cada país critérios individuais para definir a classe média. Isto em termos económicos. A definição sociológica é mais subjectiva. Se em Portugal se perguntar quem é da classe média, toda a gente vai dizer: “Eu sou da classe média, eu sou da classe média”. Muito poucas pessoas ricas dirão: “Eu sou rico”. Dirão que são da classe média – é subjectivo. Já a definição económica é muito clara: a partir do rendimento médio de um país, olha-se para 25% acima e abaixo deste rendimento e calcula-se a percentagem da população. Nos países com uma grande classe média, têm muitas pessoas neste grupo, cerca de 40% da população, em países da Escandinávia, a Alemanha, França… Portugal estará próximo deste número. Mas, depois, os países que estão nos extremos têm tanto pessoas muito ricas como pessoas muito pobres: os países da América Latina têm 15% a 30% de classe média. O mundo não é uma sociedade de classe média, tem algo como 800 milhões de pessoas de classe média, o que é pouco em relação aos 7000 milhões da população mundial.
Na própria Europa, não falamos de classe média da mesma forma em Portugal do que, por exemplo, na Alemanha.
Esse é um outro problema, que é de rendimento, mais do que de definição. Em Portugal, 85% da população terá um rendimento inferior ao de um salário de um professor. Um alemão terá um salário superior, porque a média dos rendimentos na Alemanha é mais alta. É um problema de distribuição.
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