Francesc Vendrell
Francesc fez tudo o que pôde para ajudar tantos que resistiam às mais sinistras opressões. Nunca cessou de pôr o seu saber e engenho ao serviço da ONU e da UE, pela paz e por um mundo melhor.
Ana Gomes 29 de Novembro de 2022
Abordou-me desconcertantemente, questionando a nossa estratégia sobre Timor-Leste, numa das minhas primeiras Comissões dos Direitos Humanos da ONU, em Genebra, nos idos de 87. Alguém me soprara que aquele sujeito, com inglês e ar de diplomata argentino, era funcionário das Nações Unidas…quando soube o nome, reconheci-o da telegrafia da Missão Permanente em Nova Iorque, que durante anos selecionara para o Presidente Eanes. Era o Francesc Vendrell, do Secretariado da ONU! Encaixei o remoque, até porque nós já estávamos a mudar a estratégia por Timor-Leste. Passámos a conversar sempre que o Francesc vinha a Genebra ou eu ia em trabalho a Nova Iorque.
Timor-Leste não parava de nos sobressaltar: o massacre de Santa Cruz, em Novembro de 1991, a prisão e o julgamento de Xanana Gusmão em 1992, sucessivos incidentes com listas de mortos, feridos, presos. Em 1995, conversámos mais longamente, internados em Wilton Park, numa conferência com muitos altos quadros indonésios e académicos britânicos e americanos sobre o tema “Indonesia at 50” (regressada à base no MNE, eu integrava o gabinete dedicado a Timor-Leste, chefiado por Rui Quartim Santos). Em 1993, Francesc passara a chefiar o Departamento da Ásia e Pacífico no Departamento de Assuntos Políticos da ONU, em Nova Iorque, e estava a congeminar o processo AIETD (All Inclusive East Timorese Dialogue), que reuniria timorenses a favor e contra a integração em alguns encontros em capitais europeias.
A experiência na Papua-Nova Guiné, antes de iniciar a sua carreira na ONU, tinha-o traumatizado: era para Francesc intolerável que as Nações Unidas deixassem repetir um expediente como o “Act of Free Choice”, que servira para integrar formalmente aquele território na República Indonésia em 1969: nenhum processo de autodeterminação se poderia voltar a fazer à revelia do povo. Por isso, nunca deixara o Secretariado da ONU engolir a patranha da “Declaração de Balibó” (assinada em Bali, em 30 de Novembro de 1975) e punha toda a sua sabedoria e experiência política na procura de soluções criativas que passassem por entendimentos e compromissos entre forças realmente representativas dos povos.
Além dos princípios e valores da Carta das Nações Unidas e dos Direitos Humanos que convictamente defendia, Francesc acreditava no povo, na humanidade: era um orgulhoso catalão, sofrera às mãos da repressão franquista, descobrira a democracia e a liberdade na Europa e nos EUA. Sabia puxar, apoiar, juntar e promover os mais capazes e empenhados. Comprazia-se em manobrar no labirinto palaciano das Nações Unidas, sem desviar o foco das causas da construção da paz, da libertação dos povos e dos direitos humanos que servia: que o digam o Nobel da Paz José Ramos-Horta e outros ativistas de resistências e latitudes várias, que sabiam poder sempre a ele recorrer para conseguir entrar nos corredores “onusinos” ou nos meandros das negociações mais secretas.
Nos anos de 1997 e 1998 tornámo-nos amigos. Não eram só as eternas negociações bilaterais sobre Timor-Leste sob a égide do secretário-geral (então Kofi Annan, um colega, um homem da casa para o Francesc) que nos aproximavam: eu integrava a delegação portuguesa ao Conselho de Segurança, que tratava de muitos assuntos que ele acompanhava, como diretor Ásia-Pacífico. Ainda por cima, vivíamos ambos perto do Lincoln Centre: conspirávamos amiúde, com queridos amigos como Tamrat Samuel e Sidney Jones, pelos restaurantes da zona, criteriosamente escolhidos pelo gourmet que ele era. E, sempre que podíamos, afundávamo-nos em filmes persas, japoneses e franceses nas salas do Lincoln Plaza. E ríamos muito, a gargalhada do Francesc era infecciosa…
Quando o ditador Suharto caiu, naquele 21 de Maio de 1998, brindámos com o champanhe que há anos eu reservava para o Pinochet (foi preso meses mais tarde). Tudo ia mudar e aceleradamente: o “estatuto de autonomia”, que ele e o Tamrat haviam cozinhado connosco (por proposta do Fernando Neves) para manter a bola a rolar nas estéreis negociações bilaterais, ia poder ser posto à consideração do povo de Timor-Leste, as Nações Unidas haveriam de finalmente assentar arraiais em Timor. E inesperadamente, até o interino Presidente Habibie ajudou, pondo irreversivelmente na agenda do Acordo com Portugal (5 de Maio de 1999) o referendo – que, a 30 de Agosto de 1999, haveria de consagrar a autodeterminação de Timor-Leste.
Tal como tudo o que durante quase duas décadas mantivera Portugal e a Indonésia algemados ao diálogo de surdos das “negociações bilaterais sob a égide do secretário-geral da ONU”, foi também Francesc Vendrell quem imaginou e determinou o que se seguiria: foi ele quem instruiu o embaixador Jamsheed Marker sobre Timor-Leste, foi ele quem convocou o seu velho amigo Ian Martin para montar a UNAMET que organizaria o referendo, foi ele quem nomeou o dedicado Tamrat para representar a ONU/UNAMET em Jacarta. Passei a recebê-lo, amiúde, em Jacarta. A articulação, formal e informal, com ele e os seus homens no terreno foi tão intensa como com Lisboa e fez muita diferença para a eficácia das nossas missões e para lograrmos o objetivo comum: facultar ao povo timorense a possibilidade de finalmente determinar o seu destino. Temos uma fotografia emocionados e abraçados a quatro (com o Ian e o Tamrat), na noite daquele 20 de Maio de 2002, em Taci-Tolo, na cerimónia da Declaração da Independência de Timor-Leste.
Atingido o objetivo, o Francesc passou a dedicar-se a outro dos intrincados problemas internacionais que há décadas acompanhava no DPA: em 2000, foi nomeado representante pessoal do secretário-geral das Nações Unidas para o Afeganistão. A partir de 2002, passou a ser representante especial da União Europeia para o Afeganistão, e eram sempre iluminantes as suas vindas à Comissão de Relações Exteriores do Parlamento Europeu.
Visitei-o em Cabul em 2008, aproveitando uma missão do PE: almoçámos frente ao jardim de rosas de que se orgulhava, em conversa intensa e extensa sobre aquele país e povo que ele amava, regada pelo bom vinho que ele nunca dispensava… muito do que pus no relatório da missão foi ali colhido, no saber crítico que ele nunca se tolhia de partilhar.
Depois de deixar o Afeganistão e passar a lecionar na Universidade de Princeton (EUA), na SAIS em Londres e na John Hopkins em Bolonha, todos os anos o Francesc vinha a Bruxelas: continuámos a pôr a “escrita em dia” sobre Timor-Leste, o Afeganistão, a UE, Portugal, a Catalunha, o mundo e os nossos amigos. Ríamos muito, sempre. Eu levava-lhe livros, vídeos, slides, miniaturas – o que quer que encontrasse nas lojas do aeroporto sobre os elétricos de Lisboa: ele era apaixonado e sabia tudo sobre todos os elétricos e linhas de elétricos do mundo inteiro. Veio mesmo algumas vezes a Lisboa para me ver e… irmos andar de elétrico.
A última vez que estivemos juntos foi em Díli, Timor-Leste, em finais de Agosto de 2019, para a celebração dos 20 anos do referendo. Tempos antes eu tinha escrito ao Presidente Marcelo Rebelo de Sousa a sugerir que o Francesc, o Ian Martin e o Tamrat Samuel fossem agraciados com condecorações pelos inestimáveis serviços prestados a Portugal no apoio porfiado e decisivo à causa timorense. No dia 31 de Agosto de 2019, na Embaixada de Portugal em Díli, o presidente da Assembleia da República Eduardo Ferro Rodrigues impôs-lhes as insígnias. O Francesc vibrou com a condecoração e explicou que o sensibilizava mais receber a Ordem da Liberdade, do Portugal da Revolução dos Cravos que prenunciara a libertação também de Espanha: “You see, I am from Catalonia…”
Ser da Catalunha explica muito do que foi Francesc Vendrell e da tenacidade com que se bateu pelas suas convicções, por valores e princípios, pela autodeterminação dos povos, por sociedades tolerantes, democráticas, livres e cultivadoras da diversidade.
Dedicadamente, Francesc fez tudo o que pôde para ajudar tantos que resistiam às mais sinistras opressões. E, com honestidade desarmante, nunca cessou de pôr o seu saber e engenho ao serviço da ONU e da UE, pela paz e por um mundo melhor.
RIP!, querido Francesc. Um dia destes, prometo, vou fazer a tua voltinha de elétrico por Lisboa!
Francesc Vendrell nasceu em Barcelona em 1940 e morreu em Londres, a 27 de novembro de 2022