António Araújo
23 Outubro 2022
É estranho chegar a uma certa idade sem perceber nada de como funciona o mundo. Soube há dias, por um acaso, que, nos idos anos 1990, aquando do frenesi das privatizações na Rússia, a PepsiCo, detentora dos refrigerantes gaseificados, tornou-se uma das maiores potências navais do mundo, pois, em troca das garrafas e das latas Pepsi que estava a vender à larga para a ex-URSS, aceitou ser paga em espécie: 17 submarinos soviéticos, um cruzeiro, uma fragata e um contratorpedeiro. A frota foi vendida para sucata, o que levou o presidente da empresa a gracejar com a Casa Branca: "nós estamos a desarmar a União Soviética muito mais depressa do que vocês."
É desta e de muitas outras loucuras que se faz o nosso tempo, triste e opaco, sem rumo nem norte, abominável mundo novo. E, por detrás dos governos e dos políticos, da ONU e doutras organizações internacionais, das diplomacias, cimeiras bi- ou multilaterais, há gente que actua na penumbra e na sombra, que movimenta o planeta e o põe a rodar sem que nós, os comuns mortais, tenhamos a mínima consciência disso, das decisões e opções que afectam milhões, muito mais do que julgamos. Quando lemos nas notícias que a Rússia autoriza ou não a exportação do ucraniano grão, quando sabemos dos movimentos e dos fluxos do petróleo e da recente - e inacreditável - facada da Arábia Saudita nas costas no Ocidente, julgamos que tudo se passa a um nível estritamente político, entre governos e líderes cujos rostos conhecemos, quando, na realidade, e sem falsos conspirativismos, há outra gente envolvida, muita outra gente envolvida, que compra e vende as mercadorias, os bens de necessidade primeira, que os paga a pronto ou a fiado, que os vai buscar a terras em guerra, que os despacha para onde mais pagarem. O Mundo à Venda. Dinheiro, poder e as corretoras que negoceiam os recursos da Terra (Casa das Letras, Setembro de 2022), um livro recente, da autoria de dois credenciados jornalistas do Financial Times e da Bloomberg, Javier Blas e Jack Farcity, levanta a ponta do véu da actividade dos corretores de matérias-primas, um punhado de empresas que controlam uma parcela substancial dos recursos naturais do planeta e que na sombra fazem lucros estratosféricos, muitas vezes à conta da guerra e do sofrimento alheio. Dirão os seus defensores que, sem os corretores de recursos, não teríamos o que comer à mesa nem gasóleo nos depósitos, não haveria casas, computadores, aviões no ar, carros nas estradas, o que é indiscutivelmente verdade, mas mostra o poder que tais indivíduos e empresas têm, a sua capacidade de domínio e influência, com a agravante de não sabermos quem são e o que fazem, de agirem na obscuridade e quase total impunidade, alheios ao controlo democrático e ao escrutínio mediático a que sujeitamos, e bem, os nossos governantes. É por isso, justamente por isso, que se torna ainda mais absurdo, inconcebível, que ignoremos sequer a existência destas pessoas e entidades, que não saibamos quem são e o que fazem, quais são os seus líderes e os seus perfis, concentrados que estamos em celebridades ou políticos que, na esmagadora maioria dos casos, não têm poder comparável ao desta gente sem rosto. Fiz a experiência: na sempre informada Wikipédia, cliquei no nome de "Gary Neagle" e deparei com quatro linhas apenas, que nos dizem tratar-se de um sul-africano que fez um curso de comércio e de contabilidade na Universidade de Witwaterstrand e que em 2000 entrou para os quadros da Glencore, de que é hoje o CEO. Nada mais é dito, nada mais sabemos sobre o homem que está aos comandos de uma das maiores empresas do mundo, ainda hoje a maior empresa de corretagem de mercadorias do planeta, até há pouco a maior empresa da Suíça, dominando 60% de todo o zinco comerciado internacionalmente, 50% do cobre, 9% do trigo, 3% do petróleo.
Ou veja-se uma outra empresa, a familiar e centenária Cargill, sediada no Minnesota, da qual provavelmente poucos ouviram falar, ao contrário do que sucede com a Apple, a Zara, a IKEA ou tantas outras. Pois bem, a Cargill é uma empresa privada, mas, se fosse aberta e cotada em bolsa, estaria no 15º lugar do índice Fortune 500. Com mais de 166 mil empregados espalhados por 66 países, dedica-se ao trading de cereais e outros produtos agrícolas, como o óleo de palma, mas também ao comércio de energia, aço, gado, rações, bem como à produção de xarope de glucose, óleos vegetais, alimentos processados. É responsável por 25% de todas as exportações norte-americanas de trigo e pelo abastecimento de 22% da carne consumida nos Estados Unidos. Todos os ovos consumidos nos restaurantes McDonald"s da América provêm de aviários da Cargill, que é também a maior produtora de frangos da Tailândia. O seu CEO chama-se Dave McLennan e, se forem novamente à Wikipédia em língua inglesa, encontrarão não mais do que três linhas, que dizem apenas que se formou em Amherst e que fez um MBA em Chicago, que é casado e tem três filhos, mas nada mais adiantam ou esclarecem. Sucede que, em 2019, num relatório produzido para o Center of International Policy, um think tank de Washington fundado em 1975, o antigo representante democrata Henry Waxman não hesitou em qualificar a Cargill como "a pior empresa do mundo", cuja dimensão colossal a faz esmagar todos os seus concorrentes e com um inenarrável cadastro em matéria de abate de florestas, poluição, alterações climáticas e tráfico e exploração de seres humanos. O rol das acusações é extenso e brutal: em 2021, oito antigas crianças escravas do Mali intentaram uma acção contra a Cargill, pelas condições de trabalho que sofreram nas plantações de cacau do Mali, existindo notícias sobre redes de tráfico e exploração nesses países desde 2005, pelo menos, o mesmo sucedendo com o algodão do Usbequistão, que a Cargill adquire e que é produzido com trabalho escravo e trabalho infantil. A isso juntam-se problemas laborais gravíssimos, como tentativas de supressão de sindicatos, exposição dos funcionários aos riscos da Covid-19, a par de aquisição abusiva de vastas parcelas de terra, violando os limites da propriedade fundiária, venda de alimentos adulterados (em 1971, a Cargill foi responsável pela venda de trigo contaminado ao regime de Saddam Hussein, provocando a morte de 650 pessoas, pelo menos), deflorestação na selva amazónica e das florestas tropicais na Sumatra, no Bornéu, no Gana, na Costa do Marfim (a Cargill comprava ou compra cacau plantado ilegalmente nos parques naturais desse país!), poluição atmosférica intensa, fraude e evasão fiscal. "A pior empresa do mundo", dizem, e o mais grave é nem sabermos que ela existe e o que faz.
"Agora e por ora, uma coisa é certa: Putin e Xi, Mohammad bin Salman e outros prestaram-nos um grande, enorme serviço, ao mostrarem-nos que temos de arrepiar caminho e mudar de vida, de dependermos menos, cada vez menos, do petróleo sujo das ditaduras."
É certo que, a par dessas empresas, muitas outras se dedicam ao comércio de matérias-primas, como as grandes petrolíferas, com a BP e a Shell à cabeça, ou instituições bancárias como a Goldman Sachs ou a Morgan Stanley. Mas o que impressiona, além da opacidade tremenda, é o grau de concentração e domínio que este punhado de corretoras adquiriam: a partir de um bunker numa cidadezinha da Suíça, a Glencore é uma das maiores corretoras de trigo e de metais do mundo e controla uma parcela do negócio de petróleo, cuja empresa-líder é a Vitoil, sediada em Londres, a curta distância do Palácio de Buckingham.
Desde que o mundo existe, existem indivíduos ou companhias que se dedicam a negociar e a intermediar compras e vendas de bens e produtos. Contudo, foi a explosão do comércio mundial no pós-Segunda Guerra que levou à expansão das corretoras e, sobretudo, à sua concentração em gigantescos colossos que actuam à escala global e desafiam o poder de governos e a soberania dos Estados. Nos anos a seguir à guerra, o comércio mundial de matérias-primas e bens manufacturados representava cerca de 60 biliões de dólares; em 2017, representou mais de 17 triliões de dólares.
É também espantoso notar como estas empresas singraram e se mostraram e mostram imunes às sucessivas convulsões que abalam o mundo - e até, pelo contrário, como são capazes de tirar partido dessas convulsões para aumentarem os seus lucros e o seu poderia. Até aos anos 1960, o comércio mundial de petróleo era dominado pelas chamadas "Sete Irmãs": a Anglo-Persian Oil Company, antecessora da BP; a Royal Dutch Shell; a Standard Oil of California, a Gulf Oil e a Texaco, que se uniram na actual Chevron; a Jersey Standard e a Standard Oil of New York, predecessoras da ExxonMobil. Com as vagas de nacionalizações que assolaram os países do Médio Oriente nas décadas de 1960 e 1970, o monopólio das "Sete Irmãs" foi seriamente afectado e, de repente, o mercado mundial do petróleo tornou-se livre, ou na aparência mais livre, pois logo foi capturado pelas corretoras de matérias-primas, que tiveram aqui o seu grande boom. Mais tarde, com o colapso da União Soviética, as corretoras entraram a matar no vasto paraíso de recursos naturais da Rússia e, anos depois, voltaram a beneficiar extraordinariamente do espectacular crescimento económico da China, um país sedento de matérias-primas. Para se ter uma ideia: em 1990, a China consumia o mesmo montante de cobre de Itália e hoje é o maior consumidor de cobre e o maior produtor de metal refinado do mundo. E, na década do boom das matérias-primas liderado pela China, que se prolongou até 2011, os lucros combinados das três maiores corretoras eram superiores aos dos mais conhecidos gigantes do comércio internacional, como a Apple e a Coca-Cola.
Outra circunstância que favoreceu, e muito, os corretores internacionais foi, segundo os autores de O Mundo à Venda, a "financeirização" da economia e o crescimento do sector bancário nos anos 1980 e seguintes, facto que permitiu aos traders negociarem agora com base em vultuosos créditos e garantias bancárias. Em 2019, as quatro maiores corretoras de matérias-primas tiveram um volume de negócios de 725 mil milhões de dólares - mais do que o total das exportações do Japão.
As sanções económicas não dissuadem estes donos do mundo e, pelo contrário, criam até, muitas vezes, um ambiente mais favorável a actuar na sombra e a reclamar maiores lucros. No Iraque, as corretoras negociaram com Saddam Hussein, ignorando as sanções da ONU, da mesma forma que trocaram açúcar por petróleo com Fidel Castro, venderam secretamente toneladas de trigo e de milho norte-americanos à URSS no auge da Guerra Fria e, claro está, financiaram os negócios dos oligarcas de Vladimir Putin, como Igor Sechin, o patrão da Rosneft, alcunhado "Darth Vader", que hoje é alvo de fundas sanções no Ocidente. Nada que dissuada os traders de matérias-primas, que nunca hesitaram em negociar com os ditadores mais sanguinários do planeta, mesmo quando já era certo e sabido as atrocidades que praticavam. E, ao longo das últimas décadas, é inimaginável a dimensão da corrupção praticada as corretoras de recursos: têm-se sucedidos os escândalos e os processos, mas eles representam apenas a ponta de um icebergue quilométrico, que já envolveu, entre outros, um dos maiores bancos do mundo, o BNP Paribas, alvo de uma multa de 8,9 biliões de dólares, em 2014, por negociar com países alvos de sanções pelos EUA, como o Sudão, o Irão e Cuba, país onde o BNP Paribas financiou a acção de uma corretora, a Trafigura, a qual esteve metida em tremendos escândalos como o do programa Petróleo-por-Alimentos das Nações Unidas, que encerrou em 2003 devido aos seus esquemas fraudulentos e corruptos, e o do lixo tóxico despejado na Costa do Marfim, em 2006, responsável por uma crise de saúde pública que afectou cerca de 100 mil pessoas.
É quase desnecessário dizer que uma parcela significativa das matérias-primas que circulam no mundo estão sediadas em off-shores, fugindo ao controlo de qualquer regulador nacional, e recorrem a empresas de fachada, enquanto as corretoras se domiciliam na Suíça ou em Singapura, desde sempre complacentes para com a escória do mundo. Num mundo globalizado, de pouco vale ter mecanismos de transparência e controlo nacionais, válidos em cada país, se depois não existir regulação e vigilância num plano mais vasto, internacional. De que adianta ter mecanismos que impeçam, em França, em Portugal, no Canadá ou no Brasil, excessivas concentrações de empresas, práticas monopolistas ou distorções de concorrência se as empresas em causa têm as suas sedes em off-shores e actuam não à escala nacional, mas transnacional? Um exemplo: nas duas últimas décadas, a Vitol, a rainha do petróleo mundial, pagou apenas 13% em impostos sobre os seus lucros de mais de 25 mil milhões de dólares. Na Bélgica, a carga fiscal sobre o trabalho é de 52,6%, em Portugal é de 41,8%, a média dos países da OCDE é de 34,6% A Vitol pagou 13% sobre os seus lucros de 25 biliões. Em face disto, não admira que surjam, cada vez mais, sentimentos de revolta e populismo anti-sistémicos; o que admira, isso sim, é que essa revolta e esse extremismo sejam ainda tão reduzidos. Para as injustiças que vemos por esse mundo fora, se o comportamento dos cidadãos surpreende por alguma coisa é pela sua moderação, pelo conformismo, pelo respeito por um estado de coisas cada vez mais precário e insuportável. As democracias preocupam-se, e bem, com o ascenso de forças políticas extremistas, mas pouco fazem para debelar os problemas económicos e sociais que lhe dão origem. De pouco adianta, na verdade, gastar milhões na vigilância de grupos neonazis se se mantiver o statu quo nas periferias das grandes cidades, com desemprego jovem, falta de oportunidades e perspectivas de futuro, desigualdades crescentes, crise na habitação.
Nos últimos anos, ao que parece, o poder das corretoras tem sofrido algum retrocesso, seja pelo facto de a informação privilegiada de que dispunham sobre fontes de matérias-primas, preços de compra e venda, etc., estar hoje muito mais generalizada e democratizada graças à Internet, seja porque muitos governos e organizações procedem aos seus negócios de forma directa, prescindindo de intermediários, seja, enfim, porque a cultura vigente nos traders também mudou para melhor, porventura fruto dos muitos escândalos do passado e das indemnizações milionárias que tiveram de pagar. Resta saber, todavia, se a guerra da Ucrânia e a instabilidade mundial não representarão novas oportunidades para um regresso em força das corretoras, naquele que é mais um efeito colateral, e pouco falado, do gesto louco de Vladimir Putin. Outro, de que pouco se fala, será o fortalecimento das redes e das máfias de tráfico humano no centro da Europa, do crime organizado, bem como dos negócios de armamento, para não falar de que, quando tudo acalmar, existirão certamente centenas ou milhares de homens armados a Leste, com experiência de combate e sem profissão e emprego. Serão necessários anos, décadas, para que tudo possa regressar ao normal.
Agora e por ora, uma coisa é certa: Putin e Xi, Mohammad bin Salman e outros prestaram-nos um grande, enorme serviço, ao mostrarem-nos que temos de arrepiar caminho e mudar de vida, de dependermos menos, cada vez menos, do petróleo sujo das ditaduras. E não, não é indiferente comprarmos energia a uma democracia comercial como a América ou a uma ditadura corrupta como a Rússia. Resta saber como se irão portar, no meio de tudo isso, os donos e senhores do mundo, as corretoras de matérias-primas. Saber sequer que eles existem, conhecer quem são e o que fazem, é já um bom primeiro passo. E depois, confiemos no futuro, já que o presente... enfim.
É estranho chegar a uma certa idade sem perceber nada de como funciona o mundo. Soube há dias, por um acaso, que, nos idos anos 1990, aquando do frenesi das privatizações na Rússia, a PepsiCo, detentora dos refrigerantes gaseificados, tornou-se uma das maiores potências navais do mundo, pois, em troca das garrafas e das latas Pepsi que estava a vender à larga para a ex-URSS, aceitou ser paga em espécie: 17 submarinos soviéticos, um cruzeiro, uma fragata e um contratorpedeiro. A frota foi vendida para sucata, o que levou o presidente da empresa a gracejar com a Casa Branca: "nós estamos a desarmar a União Soviética muito mais depressa do que vocês."
É desta e de muitas outras loucuras que se faz o nosso tempo, triste e opaco, sem rumo nem norte, abominável mundo novo. E, por detrás dos governos e dos políticos, da ONU e doutras organizações internacionais, das diplomacias, cimeiras bi- ou multilaterais, há gente que actua na penumbra e na sombra, que movimenta o planeta e o põe a rodar sem que nós, os comuns mortais, tenhamos a mínima consciência disso, das decisões e opções que afectam milhões, muito mais do que julgamos. Quando lemos nas notícias que a Rússia autoriza ou não a exportação do ucraniano grão, quando sabemos dos movimentos e dos fluxos do petróleo e da recente - e inacreditável - facada da Arábia Saudita nas costas no Ocidente, julgamos que tudo se passa a um nível estritamente político, entre governos e líderes cujos rostos conhecemos, quando, na realidade, e sem falsos conspirativismos, há outra gente envolvida, muita outra gente envolvida, que compra e vende as mercadorias, os bens de necessidade primeira, que os paga a pronto ou a fiado, que os vai buscar a terras em guerra, que os despacha para onde mais pagarem. O Mundo à Venda. Dinheiro, poder e as corretoras que negoceiam os recursos da Terra (Casa das Letras, Setembro de 2022), um livro recente, da autoria de dois credenciados jornalistas do Financial Times e da Bloomberg, Javier Blas e Jack Farcity, levanta a ponta do véu da actividade dos corretores de matérias-primas, um punhado de empresas que controlam uma parcela substancial dos recursos naturais do planeta e que na sombra fazem lucros estratosféricos, muitas vezes à conta da guerra e do sofrimento alheio. Dirão os seus defensores que, sem os corretores de recursos, não teríamos o que comer à mesa nem gasóleo nos depósitos, não haveria casas, computadores, aviões no ar, carros nas estradas, o que é indiscutivelmente verdade, mas mostra o poder que tais indivíduos e empresas têm, a sua capacidade de domínio e influência, com a agravante de não sabermos quem são e o que fazem, de agirem na obscuridade e quase total impunidade, alheios ao controlo democrático e ao escrutínio mediático a que sujeitamos, e bem, os nossos governantes. É por isso, justamente por isso, que se torna ainda mais absurdo, inconcebível, que ignoremos sequer a existência destas pessoas e entidades, que não saibamos quem são e o que fazem, quais são os seus líderes e os seus perfis, concentrados que estamos em celebridades ou políticos que, na esmagadora maioria dos casos, não têm poder comparável ao desta gente sem rosto. Fiz a experiência: na sempre informada Wikipédia, cliquei no nome de "Gary Neagle" e deparei com quatro linhas apenas, que nos dizem tratar-se de um sul-africano que fez um curso de comércio e de contabilidade na Universidade de Witwaterstrand e que em 2000 entrou para os quadros da Glencore, de que é hoje o CEO. Nada mais é dito, nada mais sabemos sobre o homem que está aos comandos de uma das maiores empresas do mundo, ainda hoje a maior empresa de corretagem de mercadorias do planeta, até há pouco a maior empresa da Suíça, dominando 60% de todo o zinco comerciado internacionalmente, 50% do cobre, 9% do trigo, 3% do petróleo.
Ou veja-se uma outra empresa, a familiar e centenária Cargill, sediada no Minnesota, da qual provavelmente poucos ouviram falar, ao contrário do que sucede com a Apple, a Zara, a IKEA ou tantas outras. Pois bem, a Cargill é uma empresa privada, mas, se fosse aberta e cotada em bolsa, estaria no 15º lugar do índice Fortune 500. Com mais de 166 mil empregados espalhados por 66 países, dedica-se ao trading de cereais e outros produtos agrícolas, como o óleo de palma, mas também ao comércio de energia, aço, gado, rações, bem como à produção de xarope de glucose, óleos vegetais, alimentos processados. É responsável por 25% de todas as exportações norte-americanas de trigo e pelo abastecimento de 22% da carne consumida nos Estados Unidos. Todos os ovos consumidos nos restaurantes McDonald"s da América provêm de aviários da Cargill, que é também a maior produtora de frangos da Tailândia. O seu CEO chama-se Dave McLennan e, se forem novamente à Wikipédia em língua inglesa, encontrarão não mais do que três linhas, que dizem apenas que se formou em Amherst e que fez um MBA em Chicago, que é casado e tem três filhos, mas nada mais adiantam ou esclarecem. Sucede que, em 2019, num relatório produzido para o Center of International Policy, um think tank de Washington fundado em 1975, o antigo representante democrata Henry Waxman não hesitou em qualificar a Cargill como "a pior empresa do mundo", cuja dimensão colossal a faz esmagar todos os seus concorrentes e com um inenarrável cadastro em matéria de abate de florestas, poluição, alterações climáticas e tráfico e exploração de seres humanos. O rol das acusações é extenso e brutal: em 2021, oito antigas crianças escravas do Mali intentaram uma acção contra a Cargill, pelas condições de trabalho que sofreram nas plantações de cacau do Mali, existindo notícias sobre redes de tráfico e exploração nesses países desde 2005, pelo menos, o mesmo sucedendo com o algodão do Usbequistão, que a Cargill adquire e que é produzido com trabalho escravo e trabalho infantil. A isso juntam-se problemas laborais gravíssimos, como tentativas de supressão de sindicatos, exposição dos funcionários aos riscos da Covid-19, a par de aquisição abusiva de vastas parcelas de terra, violando os limites da propriedade fundiária, venda de alimentos adulterados (em 1971, a Cargill foi responsável pela venda de trigo contaminado ao regime de Saddam Hussein, provocando a morte de 650 pessoas, pelo menos), deflorestação na selva amazónica e das florestas tropicais na Sumatra, no Bornéu, no Gana, na Costa do Marfim (a Cargill comprava ou compra cacau plantado ilegalmente nos parques naturais desse país!), poluição atmosférica intensa, fraude e evasão fiscal. "A pior empresa do mundo", dizem, e o mais grave é nem sabermos que ela existe e o que faz.
"Agora e por ora, uma coisa é certa: Putin e Xi, Mohammad bin Salman e outros prestaram-nos um grande, enorme serviço, ao mostrarem-nos que temos de arrepiar caminho e mudar de vida, de dependermos menos, cada vez menos, do petróleo sujo das ditaduras."
Para termos uma ideia, basta dizermos que as cinco maiores corretoras de petróleo do mundo lidam diariamente com 24 milhões de barris de crude e produtos refinados, o equivalente a quase um quarto da procura de petróleo mundial. Ou que as sete maiores corretoras de bens agrícolas detêm quase metade dos cereais e sementes oleaginosas do mundo. Ou que a Glencore, a maior corretora de metais do planeta, representa um terço da oferta mundial de cobalto, uma matéria-prima essencial para a produção de veículos elétricos.
É certo que, a par dessas empresas, muitas outras se dedicam ao comércio de matérias-primas, como as grandes petrolíferas, com a BP e a Shell à cabeça, ou instituições bancárias como a Goldman Sachs ou a Morgan Stanley. Mas o que impressiona, além da opacidade tremenda, é o grau de concentração e domínio que este punhado de corretoras adquiriam: a partir de um bunker numa cidadezinha da Suíça, a Glencore é uma das maiores corretoras de trigo e de metais do mundo e controla uma parcela do negócio de petróleo, cuja empresa-líder é a Vitoil, sediada em Londres, a curta distância do Palácio de Buckingham.
Desde que o mundo existe, existem indivíduos ou companhias que se dedicam a negociar e a intermediar compras e vendas de bens e produtos. Contudo, foi a explosão do comércio mundial no pós-Segunda Guerra que levou à expansão das corretoras e, sobretudo, à sua concentração em gigantescos colossos que actuam à escala global e desafiam o poder de governos e a soberania dos Estados. Nos anos a seguir à guerra, o comércio mundial de matérias-primas e bens manufacturados representava cerca de 60 biliões de dólares; em 2017, representou mais de 17 triliões de dólares.
É também espantoso notar como estas empresas singraram e se mostraram e mostram imunes às sucessivas convulsões que abalam o mundo - e até, pelo contrário, como são capazes de tirar partido dessas convulsões para aumentarem os seus lucros e o seu poderia. Até aos anos 1960, o comércio mundial de petróleo era dominado pelas chamadas "Sete Irmãs": a Anglo-Persian Oil Company, antecessora da BP; a Royal Dutch Shell; a Standard Oil of California, a Gulf Oil e a Texaco, que se uniram na actual Chevron; a Jersey Standard e a Standard Oil of New York, predecessoras da ExxonMobil. Com as vagas de nacionalizações que assolaram os países do Médio Oriente nas décadas de 1960 e 1970, o monopólio das "Sete Irmãs" foi seriamente afectado e, de repente, o mercado mundial do petróleo tornou-se livre, ou na aparência mais livre, pois logo foi capturado pelas corretoras de matérias-primas, que tiveram aqui o seu grande boom. Mais tarde, com o colapso da União Soviética, as corretoras entraram a matar no vasto paraíso de recursos naturais da Rússia e, anos depois, voltaram a beneficiar extraordinariamente do espectacular crescimento económico da China, um país sedento de matérias-primas. Para se ter uma ideia: em 1990, a China consumia o mesmo montante de cobre de Itália e hoje é o maior consumidor de cobre e o maior produtor de metal refinado do mundo. E, na década do boom das matérias-primas liderado pela China, que se prolongou até 2011, os lucros combinados das três maiores corretoras eram superiores aos dos mais conhecidos gigantes do comércio internacional, como a Apple e a Coca-Cola.
Outra circunstância que favoreceu, e muito, os corretores internacionais foi, segundo os autores de O Mundo à Venda, a "financeirização" da economia e o crescimento do sector bancário nos anos 1980 e seguintes, facto que permitiu aos traders negociarem agora com base em vultuosos créditos e garantias bancárias. Em 2019, as quatro maiores corretoras de matérias-primas tiveram um volume de negócios de 725 mil milhões de dólares - mais do que o total das exportações do Japão.
O abrandamento da economia imposto pela Covid reflectiu-se numa redução dos preços das matérias-primas, o que implicou perdas para os mais frágeis, mas, uma vez mais, permitiu aos grandes potentados adquirirem mercadorias a preços de saldo, ridiculamente baixos, guardarem-nas nos seus gigantescos silos e revenderam-nas com lucros fabulosos (alguns corretores compraram mesmo barris de petróleo a preços negativos, o que obrigou a produtores a pagarem para vender a sua mercadoria!). E, a crer do que ocorreu no passado, em que as guerras sempre beneficiaram os traders de bens essenciais, é possível, até provável, que hoje em dia existiam corretores a fazerem fortunas astronómicas com o grão da Ucrânia ou o petróleo da Rússia. É que, na perspectiva dos corretores, quanto pior, melhor, ou seja, a instabilidade de uma dada região é, em regra, um factor de maior rentabilidade. Se um país rico em recursos mergulhar numa guerra civil fratricida, os que lá se aventurem com o bolso cheio de dólares poderão comprar a preços de saldo aos dois lados em contenda; em certos casos, as corretoras, como dispõe de fundos financeiros gigantescos, não hesitam em financiar uma das facções em luta, ou ambas, a troco de contratos que hipotecam os recursos naturais do país por 10, 15, 20, 30 anos. (foi a Vitol que financiou os rebeldes da Líbia e, em larga medida, precipitou a queda de Kadhafi). Ou seja, a violência e a guerra interessam a estas empresas, como lhes interessam as altas de preços, mesmo que isso impliquem o sofrimento e a penúria de milhões. Na crise do petróleo de 1979, a Marc Rich & Co. ganhou tanto dinheiro que, se estivesse cotada em Bolsa, teria sido uma das dez empresas com mais lucro da América. Não muito depois, Marc Rich teve de fugir dos Estados Unidos, onde era acusado de crimes vários (ex. evasão fiscal, escutas ilegais, extorsão, negócios ilícitos com o Irão aquando da crise dos reféns), que foram escandalosamente perdoados por Bill Clinton no último dia do seu mandato, facto a que não serão alheios os donativos milionários feitos para o Partido Democrata.
As sanções económicas não dissuadem estes donos do mundo e, pelo contrário, criam até, muitas vezes, um ambiente mais favorável a actuar na sombra e a reclamar maiores lucros. No Iraque, as corretoras negociaram com Saddam Hussein, ignorando as sanções da ONU, da mesma forma que trocaram açúcar por petróleo com Fidel Castro, venderam secretamente toneladas de trigo e de milho norte-americanos à URSS no auge da Guerra Fria e, claro está, financiaram os negócios dos oligarcas de Vladimir Putin, como Igor Sechin, o patrão da Rosneft, alcunhado "Darth Vader", que hoje é alvo de fundas sanções no Ocidente. Nada que dissuada os traders de matérias-primas, que nunca hesitaram em negociar com os ditadores mais sanguinários do planeta, mesmo quando já era certo e sabido as atrocidades que praticavam. E, ao longo das últimas décadas, é inimaginável a dimensão da corrupção praticada as corretoras de recursos: têm-se sucedidos os escândalos e os processos, mas eles representam apenas a ponta de um icebergue quilométrico, que já envolveu, entre outros, um dos maiores bancos do mundo, o BNP Paribas, alvo de uma multa de 8,9 biliões de dólares, em 2014, por negociar com países alvos de sanções pelos EUA, como o Sudão, o Irão e Cuba, país onde o BNP Paribas financiou a acção de uma corretora, a Trafigura, a qual esteve metida em tremendos escândalos como o do programa Petróleo-por-Alimentos das Nações Unidas, que encerrou em 2003 devido aos seus esquemas fraudulentos e corruptos, e o do lixo tóxico despejado na Costa do Marfim, em 2006, responsável por uma crise de saúde pública que afectou cerca de 100 mil pessoas.
É quase desnecessário dizer que uma parcela significativa das matérias-primas que circulam no mundo estão sediadas em off-shores, fugindo ao controlo de qualquer regulador nacional, e recorrem a empresas de fachada, enquanto as corretoras se domiciliam na Suíça ou em Singapura, desde sempre complacentes para com a escória do mundo. Num mundo globalizado, de pouco vale ter mecanismos de transparência e controlo nacionais, válidos em cada país, se depois não existir regulação e vigilância num plano mais vasto, internacional. De que adianta ter mecanismos que impeçam, em França, em Portugal, no Canadá ou no Brasil, excessivas concentrações de empresas, práticas monopolistas ou distorções de concorrência se as empresas em causa têm as suas sedes em off-shores e actuam não à escala nacional, mas transnacional? Um exemplo: nas duas últimas décadas, a Vitol, a rainha do petróleo mundial, pagou apenas 13% em impostos sobre os seus lucros de mais de 25 mil milhões de dólares. Na Bélgica, a carga fiscal sobre o trabalho é de 52,6%, em Portugal é de 41,8%, a média dos países da OCDE é de 34,6% A Vitol pagou 13% sobre os seus lucros de 25 biliões. Em face disto, não admira que surjam, cada vez mais, sentimentos de revolta e populismo anti-sistémicos; o que admira, isso sim, é que essa revolta e esse extremismo sejam ainda tão reduzidos. Para as injustiças que vemos por esse mundo fora, se o comportamento dos cidadãos surpreende por alguma coisa é pela sua moderação, pelo conformismo, pelo respeito por um estado de coisas cada vez mais precário e insuportável. As democracias preocupam-se, e bem, com o ascenso de forças políticas extremistas, mas pouco fazem para debelar os problemas económicos e sociais que lhe dão origem. De pouco adianta, na verdade, gastar milhões na vigilância de grupos neonazis se se mantiver o statu quo nas periferias das grandes cidades, com desemprego jovem, falta de oportunidades e perspectivas de futuro, desigualdades crescentes, crise na habitação.
Nos últimos anos, ao que parece, o poder das corretoras tem sofrido algum retrocesso, seja pelo facto de a informação privilegiada de que dispunham sobre fontes de matérias-primas, preços de compra e venda, etc., estar hoje muito mais generalizada e democratizada graças à Internet, seja porque muitos governos e organizações procedem aos seus negócios de forma directa, prescindindo de intermediários, seja, enfim, porque a cultura vigente nos traders também mudou para melhor, porventura fruto dos muitos escândalos do passado e das indemnizações milionárias que tiveram de pagar. Resta saber, todavia, se a guerra da Ucrânia e a instabilidade mundial não representarão novas oportunidades para um regresso em força das corretoras, naquele que é mais um efeito colateral, e pouco falado, do gesto louco de Vladimir Putin. Outro, de que pouco se fala, será o fortalecimento das redes e das máfias de tráfico humano no centro da Europa, do crime organizado, bem como dos negócios de armamento, para não falar de que, quando tudo acalmar, existirão certamente centenas ou milhares de homens armados a Leste, com experiência de combate e sem profissão e emprego. Serão necessários anos, décadas, para que tudo possa regressar ao normal.
Agora e por ora, uma coisa é certa: Putin e Xi, Mohammad bin Salman e outros prestaram-nos um grande, enorme serviço, ao mostrarem-nos que temos de arrepiar caminho e mudar de vida, de dependermos menos, cada vez menos, do petróleo sujo das ditaduras. E não, não é indiferente comprarmos energia a uma democracia comercial como a América ou a uma ditadura corrupta como a Rússia. Resta saber como se irão portar, no meio de tudo isso, os donos e senhores do mundo, as corretoras de matérias-primas. Saber sequer que eles existem, conhecer quem são e o que fazem, é já um bom primeiro passo. E depois, confiemos no futuro, já que o presente... enfim.
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