Descobri, recentemente, como algumas das minhas amigas se sentiam ofendidas quando eu me oferecia para carregar os seus sacos ou para lhes abrir uma porta à sua passagem. Sempre pensei que eram gestos de boa educação, mas, afinal, eu estou a "passar um atestado de menoridade às mulheres". E isso não pode ser. Depois de tantos anos a falar sobre igualdade, existem cada vez mais mulheres sem paciência para pequenos gestos de cavalheirismo como estes, para quem igualdade é mesmo para ser levada à letra – porque as diferenças começam no transporte dos sacos e acabam na folha de salários.
Provavelmente têm toda a razão (e mesmo que não tivessem). Cabe-nos respeitar essa posição, pelo que eu me junto, desde já, ao movimento: não levo sacos, não deixo passar à frente e não me levanto mais para que se possam sentar. Quer dizer, ainda me levanto se for uma senhora mais velha, mas para as outras não. E evidentemente mais velha porque também não quero ofender alguém por esse lado. Ou será que também já não faz mal perguntar a idade?
Os tempos estão definitivamente a mudar, o que não é nada de novo porque nunca estiveram parados (só nos resta adaptar), e, provavelmente, já não faz muito sentido falar-se em boas maneiras ou cavalheirismo como no século passado. Será que as regras de etiqueta foram parar ao caixote do lixo da História, como os dinossauros e o cubo mágico? Uma breve pesquisa pela Internet – tecnologia que alguns insistem em chamar de nova – revela-nos, surpreendentemente, o contrário, pois existem cada vez mais páginas repletas de conselhos e de regras a explicar às senhoras como se devem sentar, como nos devemos comportar à mesa e para que servem todos os talheres – mesmo aqueles que nunca viu "mais gordos". Os exemplos abundam e são todos recentes, ainda que a maioria destas páginas esteja em português do Brasil, tal como existem vários capítulos dedicados à forma como nos devemos dirigir a todas as excelentíssimas excelências com quem nos cruzarmos – ao vivo ou por correspondência, "inclusive eletrónica" (o nome que estas pessoas gostam de dar ao e-mail). E pergunto: será que precisamos de toda essa deferência para sermos amáveis e respeitosos para com alguém? E, já agora, que tipo de pessoa se sente ofendida por não ser tratada assim?Provavelmente, a mesma que envia memorandos ao seu pessoal a explicar como devem "sempre" acrescentar o título Esquire (uma forma mais antiga e formal de nos dirigirmos a alguém em inglês) a seguir ao nome dos deputados no parlamento britânico. Foi o que fez Jacob Rees-Mogg, recentemente nomeado Leader da House of Commons, que não é bem o presidente do parlamento britânico, esse é o Speaker (aquele senhor famoso por gritar "Order!, Order!" durante os debates do Brexit). Este é mais uma espécie de ministro dos Assuntos Parlamentares, foi nomeado por Boris Johnson e é, como ele, um brexiter ferrenho: o memorando ainda proibia o staff de usar valores em metros ou quilogramas. Só Imperial Measurements, por favor.
A mensagem não especificava, no entanto, as regras de tratamento para as senhoras parlamentares, possivelmente porque estas deviam estar a carregar sacos e deixar os destinos do país para os homens…
A lista gerou alguma polémica no Reino Unido e levou a colunista do The Sunday Times, India Knight, a escrever uma crónica contra as regras de etiqueta: "Etiqueta é um conjunto de regras destinada a fazer as pessoas sentirem-se superiores", escreveu, ao mesmo tempo que fazia uma distinção entre etiqueta e boas maneiras: "No fundo, a etiqueta é sobre as pessoas conhecerem o seu lugar. As boas maneiras é sobre viverem de forma a que o mundo seja um lugar mais simpático e fácil para todos. Uma é divisiva, a outra igualitária."
Aceitamos. Até que para certas figuras de estado possa existir algum cuidado especial no tratamento – a rainha de Inglaterra é sem dúvida um bom exemplo –, mas para o resto da humanidade? Os poucos, raríssimos, que já tiveram o privilégio de conhecer a rainha sabem que o conjunto de regras para estar na sua presença é grande e complexo. Que o diga o nosso Presidente que terá passado uma noite a ler o protocolo real (e uma noite de Marcelo equivale, no mínimo, a uma semana das nossas) só para o quebrar quando, finalmente, teve o seu momento a sós com sua majestade. O seu pecado? Falar demais: "Lembra-se de uma criança à sua espera, no Terreiro do Paço, da primeira vez que visitou Portugal, em 1957? Na primeira fila quando chegou de carruagem? Essa criança era eu." A rainha ainda tentou retirar a sua real presença sem estragar o protocolo: "Carriage? Oh! Were you?", respondia ela em monossílabos enquanto dava curtos passinhos para trás. "Really? Oh?!"
Foi divertido, mas terá sido uma falha grave? Então o que dizer da visita do Presidente dos EUA, Donald Trump, que não falou demais, mas deixou a rainha a falar sozinha. Não foi literalmente assim pois foi pior, ultrapassou a idosa senhora durante uma revista conjunta às tropas e deixou-a para trás enquanto avançava sozinho e muito cheio de si… Se fosse noutros tempos, tinha dado uma guerra.
Esse é precisamente o ponto do professor de Harvard, Steven Pinker, que tem uma visão bem diferente das regras de etiqueta de India Knight. Defende ele que estas são as principais responsáveis pela diminuição da violência a que assistimos ao longo dos tempos. Sim, apesar das notícias que nos levam a acreditar no contrário, nunca vivemos tão seguros, nem tão pacificamente como agora. E tudo começou com as boas maneiras à mesa: "Quando aprendemos a não limpar o ranho à toalha" é a sua frase.
Com o fim do feudalismo e a concentração do poder nos reis, "a fórmula para o sucesso já não passava por ser-se o mais forte lá do sítio, mas em rumar à corte e cair nas boas graças do soberano e dos nobres que o rodeavam", explica. "Na Corte – essencialmente um governo burocrático – não havia espaço para nobres violentos, nem tempestuosos, mas antes para pessoas responsáveis em quem se podia confiar para administrar as províncias. Os nobres tiveram de alterar o seu marketing pessoal, de aprender boas maneiras para não ofender e gerar empatia. As maneiras apropriadas para a corte ficaram então conhecidas por cortesia e os manuais de etiqueta serviam precisamente para ensinar toda essa gente a comportar-se na corte."
Foi de um desses primeiros manuais que retirou o conselho para os nobres "não se assoarem à toalha" e houve muitos ilustres pensadores que se dedicaram ao tema, incluindo Erasmus de Roterdão que escreveu o primeiro manual dirigido aos mais jovens – percebem agora por que razão o programa de intercâmbio estudantil se chama Erasmus? Com o tempo, as boas maneiras estenderam-se às restantes classes sociais, começando naturalmente pela burguesia, à alta primeiro, porque tinha mais contacto com os nobres e, pouco a pouco, ao resto do povo.
Claro que India Knight não estava nem aí quando escreveu no The Sunday Times: "Sempre que vejo alguém explicar como devo colocar o guardanapo no colo dá-me vontade de ir a correr para um restaurante e pôr o guardanapo na cabeça [porque] os guardanapos são irrelevantes para a vida moderna. É muito mais importante saber o que fazer com os telemóveis." Tem razão, é claro. Estes gadgets são o maior foco de perturbação à mesa, agora que já ninguém se assoa à toalha. E, ainda por cima, é muito mais fácil saber o que fazer com eles do que com todos os talheres. Basta não lhes tocar. É assim tão simples. Pelo menos deixá-los virados para baixo, em modo de silêncio, para dar atenção às pessoas que estão sentadas connosco, não a alguém numa qualquer rede social longe dali. Passa-se o mesmo com as chamadas telefónicas, pois devem-se escolher bem quais atender e a quais podemos, perfeitamente, ligar mais tarde. E com as fotografias de comida? Quando é que 10 fotos ao mesmo prato ainda não são suficientes? Podemos começar a refeição?
Mas voltemos a Rees-Mogg e ao seu memorando porque, dias depois do mesmo ter vindo a público, o seu autor, Leader of the House of Commons, esquire, etc., foi apanhado estirado nos bancos do parlamento durante um debate do Brexit. Deixando provavelmente a escritora India Knight com um sorriso de orelha a orelha. "Sit up and show respect to this house", gritaram-lhe. E esta frase, em si, resume todas as regras de educação, de etiqueta, de boas maneiras – chamem-lhes como preferirem – que possam imaginar. Respeitar o outro, ter empatia para o perceber e colocarmo-nos no seu lugar é a regra mais importante para a convivência social. Não são os títulos, nem os guardanapos, nem os talheres, nem sequer o protocolo real. Se o fizermos, não vamos comer de boca aberta, nem falar de boca cheia, com ou sem telemóvel, não vamos insultar ninguém, nem sequer online (no trânsito, às vezes, estamos desculpados). Não vamos gritar em espaços públicos (nem fora deles), nem ser mal-educados com quem não nos interessa porque o mundo quando gira é para todos, não vamos impor aos outros as nossas fotografias "tão fixes de um restaurante top", mas vamos, por vezes, deixar as senhoras carregar as malas.
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