O vice-almirante que vacina o país nasceu em Moçambique e fugiu com os pais para São Paulo a 25 de novembro de 1975. Passou mais de 800 dias da sua vida fechado em submarinos
TEXTO HÉLDER GOMES E VÍTOR MATOS FOTOGRAFIAS JOSÉ FERNANDES
Margem de erro: zero. Nível de stresse: máximo. Era preciso decidir rapidamente, com sangue-frio e de uma só vez. Tinha apenas 20 minutos para salvar o submarino e os homens, enquanto a água inundava o compartimento a um ritmo infernal. Assim que as máquinas fossem alagadas, o “Delfim” morria, tornava-se pesado e desaparecia para sempre no fundo do Mediterrâneo. Mandou os 53 homens da guarnição prepararem os procedimentos para abandonarem o navio e pediu para ficar sozinho na ré, a analisar o desastre. “Preparem-se e avisem Lisboa que estamos com um problema grave!” Fez uma marca para ver quanto tempo demorava a água a subir e calculou: eram só aqueles 20 minutos... Um engenheiro tinha mergulhado até à zona da fissura e concluído que as bombas já não tiravam água suficiente: “Não estamos a conseguir!” Com a tripulação instável, Henrique Gouveia e Melo, o comandante, tomou uma decisão interior que o acalmou. “Aconteça o que acontecer, não abandono o navio. Prefiro morrer aqui do que ter de viver para justificar a perda do submarino.” Ainda lhe atravessou o espírito a história de um comandante da Marinha portuguesa, que certa vez abandonou o posto e foi forçado a voltar para bordo porque o navio acabou por não afundar. Ele não passaria por vergonhas dessas.
É um racionalista, um matemático que desde miúdo se diverte a estudar física. Talvez isso o tenha salvo. Quase por instinto, lembrou-se de uma manobra tão rara e hipotética que nunca a treinava: fechar o submarino — que na realidade é um tubo estanque dividido em cinco compartimentos — e aspirar o ar de fora para o interior, de modo a tornar o navio numa gigante câmara hiperbárica: com maior pressão do ar, a água deveria começar a ser empurrada para sair, em vez de entrar. Funcionou. Salvou-se a guarnição e salvou-se o navio. “Foi talvez a situação mais complicada que vivi”, recorda hoje, aos 60 anos, o vice-almirante Gouveia e Melo, coordenador da task force da vacinação, e o oficial da Marinha com mais horas de navegação e de imersão submarina: 31 mil horas de navegação e mais de 20 mil debaixo do mar (o que dá 2,3 anos fechado dentro de uma cápsula). É um operacional. Um duro.
LIDERANÇA “Os títulos têm o poder e a responsabilidade associados. Ninguém tem poder nas Forças Armadas sem ter as responsabilidades”, diz Gouveia e Melo
Entrou em meados de dezembro do ano passado para número dois da equipa da task force que tem como missão vacinar os portugueses e com o objetivo alcançar a imunidade de grupo em relação à covid-19 este verão. Tornou-se uma celebridade de camuflado verde, coisa rara em Portugal quando estão em causa militares, para combater não um Exército ou uma Armada, mas um vírus. Em fevereiro, com avanços e recuos no processo, escândalos de vacinações de políticos e autarcas, Francisco Ramos, o coordenador da equipa, demitiu-se após somar mais uma polémica com vacinações prioritárias, desta vez no Hospital da Cruz Vermelha, onde ele próprio presidia à comissão executiva. Quem ascendeu ao comando? Um militar desconhecido da opinião pública, intolerante face a facilitismos e capaz de discutir estatística ou derivadas integrais com peritos e epidemiologistas. “Não me atrevo a fazer uma avaliação”, diz ao Expresso Francisco Ramos, o antecessor de Gouveia e Melo, “mas parece que as coisas estão a correr muito bem e sinto orgulho em ter colaborado nos primeiros dois meses de trabalho”, reconhece.
Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo tornou-se um mito vivo da esquadrilha de submarinos, não só pela sua conhecida dureza mas por ter como objetivo passar dos limites — “se uma pessoa dá 10 eu peço 12, se dá 12 vou pedir 14”, chegou a assumir recentemente ao Expresso numa reportagem sobre o processo de vacinação. Influenciado pelos estereótipos da II Guerra do filme “Das Boot”, sobre um submarino alemão, no 4º ano da Escola Naval, decidiu-se pela arma marítima de combate por excelência: “Queria fazer uma carreira com esforço”, para que nada lhe “apontassem no futuro”. Escolheu a vida mais difícil, andar semanas fechado dentro de um casulo sem duche, a lavar-se com toalhetes de bebé, onde 50 homens partilhavam apenas duas casas de banho, e onde em cada cama rodavam três militares por turnos (nos submarinos antigos, todos dormiam em regime de cama quente, menos o cozinheiro e o comandante). Para ele, navegar nos navios de superfície era uma limitação, não lhe davam o estímulo de passar para uma terceira dimensão: a da profundidade.
Em 1996, teve mais uma das suas ideias. Os velhos submarinos da classe “Daphné”, de construção francesa e usados por Portugal entre 1968 e 2010, tinham um recorde também francês: 30 dias seguidos no mar. Ele propôs ao comandante da esquadrilha chegar aos 31. Em Portugal, o recorde eram apenas 18 dias. “Não foi bem pelo recorde”, justifica Gouveia e Melo ao Expresso. “O que me passou pela cabeça é que o submarino era o último refúgio de defesa do país em caso de crise. Enquanto um submarino estivesse a navegar, nunca haveria uma frota inimiga no mar, o que dava mais tempo de negociação ao Governo.” Era uma questão estratégica. Como tinha agendadas duas missões de 15 dias praticamente seguidas, pediu autorização para fazer tudo de uma só vez ao comandante da esquadrilha — vice-almirante Gaspar, pai de Patrícia Gaspar, a atual secretária de Estado da Administração Interna e ex-porta-voz da Proteção Civil durante os fogos de 2017. Foi aprovado. A guarnição foi voluntária: quem queria passar o mês seguinte fechado num charuto debaixo de água sem falar com a família? Chegaram a ter 56 homens embarcados (naqueles submarinos só havia homens, nos novos já há mulheres).
“Foi um desafio logístico”, recorda ao Expresso Miguel Silva Gouveia, capitão-de-mar-e-guerra na reserva, que participou na missão como chefe de serviço de navegação e que fez quase toda a carreira comandado por Gouveia e Melo. “Mas também foi uma forma de ver a reação das pessoas num ambiente extraordinariamente hostil.” Pela primeira vez, improvisaram dois chuveiros de água salgada no pequeno compartimento onde se lavavam as louças da cozinha, e cada submarinista recebia duas garrafas de litro e meio de água doce por semana para tirar o salitre no fim do duche, lavar os dentes ou fazer a barba. O “posto a vante”, onde dormiam as praças, encheu-se de víveres e de água, de modo que dificilmente os militares podiam andar direitos. A comida fresca durou uma semana, o pão congelado aguentou 15 dias, a maior parte das refeições era liofilizada e os últimos dois dias foram passados a comer rações de combate. Uma epopeia.
“Aconteça o que acontecer, não abandono o navio. Prefiro morrer aqui do que ter de viver para justificar a perda do submarino”, pensou no momento mais crítico da carreira
Quase sem combustível, quando desembarcou no Arsenal do Alfeite havia um arraial montado, com balões a enfeitar, a banda da Armada a tocar marchas, o chefe do Estado-Maior e as televisões. Gouveia e Melo achou “demais”. Irritou-se, foi ao balneário tomar os seus dois ou três banhos para tirar o cheiro a submarino, seguiu para casa e nem aos jornalistas falou. “Não perceberam. Gosto de fazer coisas difíceis, mas as manifestações de apreço não me interessam. Queria chegar em silêncio, atracar, beber um café, tomar os banhos e ir para casa.” Quando termina uma missão difícil, começa a pensar na outra.
O homem que pôs o processo de vacinação sobre carris, apesar da imagem de competência, não é consensual na Marinha: tem os seus detratores, é visto como um alguém que não olha a meios para atingir os objetivos, mesmo que tenha de levar os outros à exaustão, é considerado ambicioso, mas dificilmente chegará a chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), porque — se o calendário se cumprir — passa à reserva antes do fim de mandato do atual CEMA, almirante Mendes Calado.
“Um submarinista é um gajo duro”, defende-se. Ele nem era de cultivar aquela coisa dos submarinistas levarem uns ‘mimos’ para partilharem nos primeiros dias, um queijo ou um chouriço, um doce, antes que o cheiro a óleo, metal e suor tomasse conta de tudo ao fim de uns dias de navegação. “Não os censurava e até comia, mas acho que como o corpo precisa de sofrimento para se tornar atlético, devíamos fazer as coisas sem paliativos e sorver a experiência na totalidade para nos prepararmos para o futuro.” Nem a mulher se ia despedir dele à doca quando saía nas missões, nem ele lhe dava uma data certa de regresso. Voltava quando o submarino voltasse, era assim. Pode ter a ver com educação e com tudo aquilo por que passou até estabilizar na Marinha. O primeiro casamento acabou por não resistir a esta vida de marinheiro das profundezas.
O VACINADOR-MOR DA REPÚBLICA
À frente da task force de vacinação desde fevereiro, Gouveia e Melo está concentrado em “acabar bem” esta missão porque sabe da sua importância para “todos os portugueses e também para as Forças Armadas”. O atraso dos laboratórios no envio das doses para Portugal tem sido o maior obstáculo do seu mandato. Mas também a desorganização de alguns centros de inoculação. Recentemente, a pedido do presidente da Câmara de Sintra, deslocou-se pessoalmente a um centro de vacinação em Monte Abraão, forçou alterações nas salas, nos procedimentos e no contacto com a população.
No início de junho, foi homenageado pela Ordem dos Médicos, que lhe ofereceu um submarino feito à mão por um profissional de saúde. O bastonário Miguel Guimarães descreve Gouveia e Melo como “um verdadeiro líder” e “um homem corajoso”, o tipo de perfil de que Portugal “precisava numa crise como esta”. O vice-almirante é “quem melhor comunica” no país, acrescenta o bastonário ao Expresso — na verdade, também se treinou como relações públicas da Marinha, cargo que exerceu durante dois anos quando o concurso para a compra dos submarinos fazia manchetes nos jornais e Paulo Portas era ministro da Defesa. Além da “boa capacidade de organização” e da “disciplina férrea”, Gouveia e Melo “sabe ouvir e envolver as pessoas”, descreve Guimarães.
Mesmo tendo saído do cargo sob uma enxurrada de críticas, o ex-governante socialista Francisco Ramos, antecessor de Gouveia e Melo na coordenação da task force, destaca-lhe o “rigor e a competência” assim como o “espírito de missão”, e garante não ter vivido choques entre a cultura civil e da função pública e a dos militares: “Não me parece que tenha havido choques. Houve complementaridade entre as várias culturas na task force e esse aspeto é o fator que justifica o sucesso na concretização do plano”, diz ao Expresso. Se ficou alguma animosidade, não transparece.
“Para não me deixar perturbar pelo processo, foco-me todos os dias no essencial”, explica Gouveia e Melo. “A essência da minha missão é resolver um problema. E esse foco desliga-me muito das outras preocupações.” Não tem sido sempre fácil, por vezes faltam-lhe os meios para resolver os problemas. E concede ser “um bocado ansioso”. Tirando isso, dorme bem todos os dias: “Como adormeço muito cansado, adormeço imediatamente.” Mas se for preciso, mostra os dentes. Por “coisas que não aconteceram”, por “pessoas que dizem que fizeram uma coisa e não fizeram”, por quem “é muito inteligente em casa mas finge-se de parvo quando é para trabalhar para o Estado”. “Esse tipo de gente de vez em quando vê-me a mostrar os dentes”, atalha.
Foi sempre assim ao longo da sua carreira, garante, admitindo ter “muitos detratores” na Marinha. “Sempre fui muito exigente no meio português, que é pouco exigente por natureza e por cultura”, o que cria de imediato “uma singularidade”. Mesmo para o padrão das Forças Armadas diz-se “muito exigente” e, às vezes, as pessoas queixam-se, confundindo a sua exigência com falta de humanidade ou empatia. Estão erradas, assegura: “Tenho relações humanas muito fortes com os meus colaboradores.” O que não tem é empatia para malandros. “Aí sou mesmo mau. Quando um malandro começa a fazer malandrices, sou conhecido por não ser nada simpático.” E é então que mostra os dentes. Não precisa de uma “equipa de Ronaldos”, de “gente de primeiras águas”, trabalha com qualquer pessoa desde que esta dê “o máximo que pode dar”. Se for honesta, trabalhadora e dedicada, está “sempre de bem” consigo. Quem se deu mal na sua carreira foram mesmo os malandros, insiste, “esses deram-se francamente mal”. Quanto aos detratores, garante que não lhe ocupam o espírito. “Desde que não atrapalhem o percurso que tenho de fazer, passam a ser indiferentes. E, por isso, a minha ânsia reflete-se mais em mim e na necessidade de estar permanentemente a encontrar novas soluções. Isso também é o meu alimento.”
Quem trabalhar com ele corre o risco de chegar a casa de rastos. “O pessoal que andava com ele estava lixado. Exigia o máximo. Em missão não perdoava, mas não perdoava primeiro a ele próprio. Quem quisesse fazer o mínimo não se dava bem. Se fosse preciso não dormir, ficava sem dormir até cair para o lado”, lembra o vice-almirante Conde Baguinho, dos tempos em que o comandou. “Dedica a vida à missão que tiver em cada momento”, reforça o capitão-de-fragata Farinha Alves, atualmente comandante da esquadrilha de submarinos. Durante o processo de aquisição dos novos submarinos, lembra-se de o ver “começar às oito da manhã, trabalhar até às 20h, meter-se num avião para discutir coisas com os alemães, e regressar para a esquadrilha em vez de ir para casa”. Nas equipas que lidera, ele torna-se “a referência”, mas “nunca exige aos outros aquilo que ele não exige primeiro a si próprio”. O ex-CEMA Macieira Fragoso reconhece que o atual responsável pela vacinação “não é uma pessoa amada por todos, é muito exigente, mas toda a gente o respeita pelo que ele sempre conseguiu”.
Distingue entre o que gosta e o que tem de fazer. Neste momento o que tem de fazer é completar a vacinação dos portugueses. O que gosta — sempre — de fazer é ser marinheiro. Se for necessário, aceitará um eventual convite para revacinar o país? “Acho que alguém tem de continuar o meu trabalho. Nenhuma organização deve estar presa a um homem. Ao mesmo tempo que desenvolvo respostas e soluções, é uma obrigação minha ir preparando a organização para sobreviver sozinha. Não quero ser o tipo imprescindível. O cemitério está cheio de imprescindíveis.” Além disso, esta é uma missão de exceção e da área da saúde. Ainda que não pense “noutra coisa neste momento”, esta é uma missão para gente da saúde, insiste. E ele não foi para médico nem enfermeiro. É militar. Daí que anseie que, “mais tarde ou mais cedo”, este processo encontre resposta nas “estruturas normais do Ministério da Saúde”. Quanto ao seu futuro, gostaria de estar envolvido numa “missão difícil e interessante”, se possível ainda mais difícil e interessante do que as que já realizou. Andou em lanchas, comandou dois submarinos ao mesmo tempo — o “Barracuda” e o “Delfim” —, passou para os navios de superfície, os “alvos”, como lhes chamam os submarinistas, e comandou a fragata “Vasco da Gama”, chefiou a esquadrilha dos submarinos, foi comandante naval e chefe de gabinete do CEMA e foi adjunto para o Planeamento e Coordenação no Estado-Maior-General das Forças Armadas. Falta-lhe ser chefe do Estado-Maior da Armada, mas só poderá ser considerado como uma hipótese caso o atual CEMA não termine o mandato.
“Em terra somos mesmo pequenos”, declara. Um país pequeno, localizado no extremo sudoeste da Europa, que sofre de “um complexo de província”. No mar é o oposto: “Somos gigantes. É o que nos dá importância geoestratégica.” Mas Portugal insiste em olhar só para a terra, lamenta. Gouveia e Melo teme que o país perca o acervo estratégico e económico do mar. “No mar é que somos grandes”, insiste, algo que foi percebido rapidamente por D. João II. Aliás, para ele só houve dois reis em Portugal: “D. Afonso Henriques, que teve a ideia inicial, e D. João II, que deu uma nova ideia estratégica a este Portugal, que saiu da fronteira de Espanha.” Caso contrário, seríamos “um país encurralado”.
QUELIMANE, 25 DE NOVEMBRO E SÃO PAULO
Nasceu em Quelimane, capital da província moçambicana da Zambézia, virada para o oceano Índico, a 21 de novembro de 1960. É escorpião, signo de água, o elemento onde passou a vida, segundo filho do casal. “Em África trabalhava-se muito mas havia uma liberdade que não existia em Portugal”, conta. Não esconde que a sua família vivia numa situação de privilégio, mas também não era menos verdade que tinha de vencer constantes obstáculos. As distâncias eram muito grandes, e o sistema encarregava-se de puxar pelas pessoas e de as obrigar a ser desenrascadas. Como ele: “Era um miúdo muito desenrascado e fazia pela vida.” Caso contrário, não teria como resolver os problemas, era necessário fazer um mínimo de planeamento. “Não tínhamos coisas acessíveis ali ao lado.” O que não havia era preciso importar e, por vezes, tratava-se de uma importação específica de um determinado equipamento para uma função concreta. Ao conviver na escola com “miúdos muito mais velhos” e para “não sofrer bullying e essas coisas”, tinha de ser desenvencilhado. Nunca gostou muito de futebol por ser “muito comprido e desajeitado”, mas praticava natação e vela. Nadava muito bem de bruços e chegou a ganhar alguns prémios, na vela começou com oito anos. Também se destacou no ténis de mesa. Praticou estes desportos durante muitos anos, incluindo na Escola Naval. A natação até muito mais tarde. Depois a vida profissional acabou por se impor.
“Um submarinista é um gajo duro”, diz Gouveia e Melo. “Quando um malandro começa a fazer malandrices, sou conhecido por não ser nada simpático”
Gouveia e Melo
Não é pessoa de ter muitos hobbies — ou melhor, os que tem são “mais diferenciados” do que os da maioria das pessoas. “Quando estou stressado, leio matemática ou física. Gosto muito de computação e do movimento ‘do it yourself’, de construir coisas. Quando era pequeno já era um engenhocas”, explica. Sempre foi curioso. Quando tinha um problema, corria para os livros de matemática, física, computação, “o que fosse necessário” para o resolver. Assim foi ao longo de toda a vida. Aliás, os seus passatempos tiveram sempre alguma aplicação na profissão. Criou um centro de inovação e experimentação operacional quando foi comandante naval. Divertia-se com mais quatro pessoas a inventar traquitanas para derrubar navios a baixo custo. “Uma vez esteve cá um destroyer inglês de última geração, e provámos que as defesas aéreas eram vulneráveis a drones feitos por nós”, diz, entre risos.
O pai era advogado, tendo também sido temporariamente juiz. Quando saíram de África, tinha ele 14 anos, o pai estava “irritado com o sistema”. Na metrópole, eram vistos como “os colonialistas”. Acabaram por emigrar para o Brasil. “Já tínhamos sofrido bastante em África. Perdemos tudo, todas as propriedades.” A família receava que Portugal mudasse “para um sistema de Leste, para o comunismo duro”. “O meu pai achou que não queria viver num país assim”, recorda, mas acabaram por sair precisamente a 25 de novembro de 1975, o dia da contrarrevolução. O navio já ia a sair da barra quando o pai terá confessado à família: “Acho que me enganei e devia ter esperado mais dois ou três dias.” Como cidade, São Paulo, onde atracaram, era uma cidade gigantesca, assim como Quelimane era gigantesca na extensão territorial. Em África a natureza obrigava-os a serem próximos uns dos outros para se defenderem. O Brasil era um formigueiro humano, uma selva urbana, e viviam “em constante perigo do crime”. Acabaram por se habituar e ganhar defesas. Em São Paulo e em Quelimane “os sistemas de sobrevivência eram os mesmos”. “Nós, que vínhamos de África, tínhamos skills de sobrevivência tão apurados que depois nos ajudavam a sobreviver num outro ambiente”, resume.
Henrique era “um marrão”, mas o pai proibia-o de estudar tanto. Estudava de manhã num colégio, que era a escola oficial, e à tarde inscreveu-se num colégio particular “para ir avançando nos estudos”. Tinha 11 horas de aulas por dia e depois o resto do tempo ainda era para estudar. “O meu pai obrigava-me a apagar a luz à uma da manhã e não gostava que eu estudasse tanto”, recorda.
De regresso a Portugal, entrou na Marinha aos 19 anos. Sentiu que a sua maturidade era maior do que a dos seus camaradas de curso. “Era muito mais velho mentalmente do que os outros. Não tinha paciência para certas brincadeiras.” Mas a maturidade é muito acelerada na Escola Naval, porque o sistema militar pretende dar autonomia e capacidade de liderança na formação de oficiais.
GUERRA É GUERRA: “CUIDADO, O MELO ESTÁ NO MAR!”
É duro, sim, é um dos principais defeitos que lhe apontam, mas também uma das qualidades, depende do contexto. Traça um rumo, vê um objetivo e não se desvia, mesmo com um mar de circunstâncias alterado. “Vai sempre ao limite porque é extremamente determinado”, diz Silva Gouveia, que chegou a ser imediato do vice-almirante (um imediato é o segundo comandante de um navio). É inventivo, pensa “fora da caixa”, descrevem várias fontes ao Expresso. “Tem uma grande capacidade de inovar”, precisa Silva Gouveia. “Como é suposto um submarino estar debaixo de água para ninguém o ver, uma vez, num exercício internacional, fez superfície, pôs luzes de pesqueiro e aumentou a velocidade para apanhar um navio de guerra e eles não repararam.” José Conde Baguinho, vice-almirante submarinista na reforma, comandou Gouveia e Melo enquanto jovem, e lembra-o com “uma grande imaginação, uma capacidade imaginativa brutal”. Para ele, “não há impossíveis e assume qualquer tarefa por difícil que pareça, enfrenta aquilo como se tivesse a certeza que vai resolver”. Na década de 1980, recorda Baguinho, já sabia de informática mais do que todos os outros e quando ainda ninguém falava de internet já ele procurava informação sobre esse futuro que havia de revolucionar as nossas vidas.
“Parece que as coisas estão a correr muito bem e sinto orgulho em ter colaborado nos primeiros dois meses de trabalho”,
diz Francisco Ramos, o primeiro coordenador da task force
Sempre no limite, “explorou os submarinos ao máximo” e isso foi notado pelas outras Marinhas. “Se falar com oficiais mais antigos, franceses, espanhóis ou ingleses, todos sabem quem é o Melo”, conta Farinha Alves. “Na NATO ele era temido”, confirma ao Expresso o almirante Luís Macieira Fragoso, ex-chefe do Estado-Maior da Armada. “Só me apercebi disso quando ele era meu chefe de gabinete e um dia embarcámos num porta-aviões americano, e encontrámos um oficial francês, que nos disse: ‘Tu é que és o Melo? Então és aquele de quem se dizia: Beware, Melo is at sea!...’” (Cuidado, o Melo está no mar!). Levava a competição a sério, e se era para haver guerra, ele dava-lhes guerra, mesmo num calhambeque desatualizado dos anos 60: certa vez, num exercício onde estavam nove submarinos, dos 147 ataques realizados, o de Melo contabilizou 117. “Uma vez, os franceses julgavam que nos iam dar uma lição com os submarinos nucleares e levaram 6-0. Mais tarde, foram eles a planear o exercício, criaram-nos dificuldades, e mesmo assim ficou 3-3. Não compreendiam como eu fazia aquilo”, recorda o próprio.
Era combativo, não se limitava a fazer um ou dois ataques aos navios de superfície, como os comandantes dos países que operavam as plataformas mais modernas. Com submarinos obsoletos, ter bons resultados nos exercícios conjuntos “era uma forma de termos aceitação nos outros países da NATO quanto à nossa capacidade submarina”, contextualiza Silva Gouveia. “Na minha opinião, ele é o pai dos novos submarinos. Se não fosse ele, não haveria submarinos novos nem com a qualidade que têm.” Fez parte dos grupos de trabalho e discutia pormenores técnicos com os engenheiros dos fabricantes e arrasava os argumentos dos concorrentes alemães ou franceses se quisessem vender-lhe “peixe podre”.
Quando a Marinha recebeu os dois novos submarinos da classe “Tridente”, Gouveia e Melo era o comandante da esquadrilha, mas acabou por ter de acumular a liderança em terra com a chefia do novo navio. O oficial que estava a preparar-se há anos para comandar e testar o novíssimo “Tridente” teve o diagnóstico de um cancro galopante e morreu em dois meses. Terá sido um dos momentos que mais afetou emocionalmente a esquadrilha e também o próprio Gouveia e Melo. Na viagem para Portugal, quando foi buscar o submarino à Alemanha, o comandante percebeu que a torre do submarino vibrava. “Os alemães diziam que não havia problemas”, lembra. “Se continuam com isso, vou partir-vos a torre”, ameaçou. E assim fez: com o Atlântico a bater forte, levou a plataforma ao máximo, afinal estava em testes e o navio dentro da garantia, e passou o Bugio em direção ao Alfeite com a torre pendurada e o submarino aberto. “Não só o fabricante assumiu a reparação do ‘Tridente’ como modificou o ‘Arpão’”, a unidade que viria a seguir, e os submarinos que construíram depois. As alterações custaram milhões de euros aos alemães.
SEM OBSESSÃO DE MORRER VELHO
Além de determinado, confessa-se obcecado com o que tem de fazer. Trabalha o que tiver de trabalhar, fá-lo com prazer e sem denunciar cansaço. Isso já teve consequências na sua saúde. Mas também espera que ninguém deseje viver eternamente porque “ainda não houve ninguém que conseguisse provar isso”. O problema de saúde também esteve relacionado com o stresse, uma constante na sua carreira. A certa altura, depois de o “Barracuda” ter sofrido um acidente grave, foi apontado para acumular o comando dos dois submarinos em simultâneo. “Não foi fácil”, reconhece ao Expresso. Atracava de uma missão, a sua mulher de então levava-lhe roupa lavada, tomava banho, vestia uma roupa limpa “e ia para o mar outra vez”.
Em 2002, sofreu um choque elétrico e cinco anos depois teve de colocar um pacemaker (chegou a fazer de cobaia para ver como é que o aparelho reagia ao magnetismo da carga elétrica no submarino e mandou as conclusões para o fabricante). Não sabe se o acidente foi a causa principal, mas assegura que está “ rijo para as curvas”. Até diz aos camaradas que aconselha um pacemaker a toda a gente. O acidente aconteceu já no final da sua carreira nos submarinos ao cair numa operação com um helicóptero. Normalmente, o cabo elétrico pousa na água para fazer a descarga, que não terá sido bem sucedida, e ao agarrar o cabo apanhou um choque “fortíssimo”. Não chegou a perder os sentidos mas ficou paralisado.
E o acidente levou-o a reequacionar algo na vida? “Não faço reavaliações de coisas que não me resolvem nada. Não tenho a obsessão de morrer velho, de morrer a olhar para o sol e de ver os dias a passar. Isso até me deixa profundamente deprimido, portanto espero que me dê qualquer coisa ainda no vigor da minha idade, é mais fácil, e que seja rápida.” Diz não se preocupar com isso, até porque teve “uma vida tão plena, cheia de tantas coisas”. “Quando a vida me carimbar o passaporte, vou de certeza contente.”
“O pessoal que andava com ele estava lixado. Exigia o máximo”,
conta o vice-almirante Conde Baguinho, que o comandou
A sua referência é ele próprio no dia anterior. Só se compara consigo, só concorre consigo. É “muito autorreflexivo”, o que o ajuda a ter a capacidade de olhar de forma crítica para si e, por vezes, até de “gozar” com a sua posição, “como se saísse” do seu corpo e se visse de fora. “Nenhum de nós é importante. Somos uma função num determinado momento da história e num determinado local. As pessoas que se julgam importantes são naturalmente parvas”, sentencia. Ainda assim, a estrutura das Forças Armadas é muito hierarquizada, obedece a uma escala de importância. “Os títulos têm o poder e a responsabilidade associados. Ninguém tem poder nas Forças Armadas sem ter as responsabilidades” inerentes à função. E defende que o poder só deve ser exercido “no estrito senso necessário para cumprir com as responsabilidades, nunca para além dessa margem muito estrita”.
Uma das razões por que gosta de andar de camuflado é por ser prático. Mas também por considerar que a luta contra a covid-19 é “uma guerra” e por ser uma forma de os militares da task force, dos três ramos das Forças Armadas, terem todos o mesmo uniforme. Não gosta de andar sempre com as medalhas. Quando veste a camisa branca, de manga curta, da Marinha, usa uma fita só com quatro condecorações. E que quatro medalhas são essas? “Nem são as mais importantes na hierarquia das medalhas. Foram as que tiveram mais significado por causa das pessoas que mas deram e que tenho em elevada consideração.” Uma delas foi-lhe dada por Brites Nunes, que era o comandante da esquadrilha de submarinos quando Gouveia e Melo saiu. Diz-se o produto de mentores com que se foi cruzando. O vice-almirante Conde Baguinho é outro desses exemplos: uma medalha atribuída por este tinha “muito mais significado do que uma medalha dada pelo CEMA”.
NEM CÃO NEM RUM
E quando regressa a casa no fim de cada dia, o que encontra? Vive com a segunda mulher, uma diplomata, tem dois filhos adultos que já não estão em casa. Gouveia e Melo concede ser uma pessoa com a qual é muito difícil conviver. “A minha mulher diz que vivo numa bolha e que afasto os outros. Quem vive ao meu lado queixa-se muitas vezes de eu ser mais máquina do que humano. Estou tão obcecado com a bolha que me abstraio um bocado das relações que tenho”, reconhece. Passou a carreira num mundo à parte, o dos submarinos, que muitas vezes se definem assim: “Há o mundo dos vivos, dos mortos e o dos submarinistas.” Mesmo dentro da Marinha são gente diferente dos “fragateiros”, a expressão pejorativa com que se referem aos marinheiros de superfície. “É uma pessoa que, sendo muito profissional e exigente, cria uma bolha em que é difícil entrar”, confirma o comandante Paulo Vicente, um mergulhador que trabalhou de perto com a esquadrilha de submarinos e que foi relações públicas da Marinha quando Gouveia e Melo era chefe de gabinete do CEMA. “Se as pessoas passam a fronteira dessa bolha, da parte profissional, entram no lado humano.” E o próprio Gouveia e Melo reconhece que já foi mais duro, embora não se tenha tornado um “mole”.
Mas não é de esperar que se reflita nele o marinheiro rufia do rum ou que toma o seu gin tónico ao fim da tarde para o quinino ajudar a prevenir a malária. “Não bebe álcool”, diz o amigo Silva Gouveia. “Acho que nunca ninguém o conseguiu pôr a beber.” Só Coca-Cola: “O encarregado da cantina tinha de levar um carregamento só para ele.” E era dos poucos que não cumpria uma tradição: quando um submarino imergia até à cota máxima, para testar a estanquicidade do casco, o comandante dava ordem para se fumar um cigarro. Ele aguentava a nuvem de fumo dos outros dentro daquele aquário, mas também nunca fumou.
Não tem animais de estimação, mas já teve. “Neste momento, mal tenho tempo para a minha mulher, quanto mais para animais de estimação.” Mas durante 14 anos teve uma cão de fila de São Miguel, “uma cadela muito dedicada e muito protetora da família”. Chamava-se “Lucy”, e foi a sua primeira mulher, que era inglesa, quem escolheu o nome. “As mulheres é que decidem tudo em casa”, o que não mudou neste seu segundo casamento: “Ainda é assim agora, claro.” A “Lucy” era uma cadela abandonada, usada para lutas de cães, e “sempre demonstrou ao longo da sua vida um agradecimento eterno” por ter sido recolhida.
Gouveia e Melo não gosta de falar de si e tenta fugir dos holofotes, o que não tem sido fácil, tendo em conta as várias solicitações de entrevista que recebe. “Não gosto de heróis. Incomoda-me ser importante porque importante é o grupo. Tenho esperança de que em todos os sítios haja pessoas com o espírito parecido com o meu e que estejam animadas a fazer as coisas.” E diz que “este Portugal está órfão de um Sebastião, está sempre à procura de um novo”. “É um traço psicológico do povo português. Mas o Sebastião está dentro de nós, não temos de procurar por ele.” Que missão aceitará depois desta?
Não é pessoa de ter muitos hobbies — ou melhor, os que tem são “mais diferenciados” do que os da maioria das pessoas. “Quando estou stressado, leio matemática ou física. Gosto muito de computação e do movimento ‘do it yourself’, de construir coisas. Quando era pequeno já era um engenhocas”, explica. Sempre foi curioso. Quando tinha um problema, corria para os livros de matemática, física, computação, “o que fosse necessário” para o resolver. Assim foi ao longo de toda a vida. Aliás, os seus passatempos tiveram sempre alguma aplicação na profissão. Criou um centro de inovação e experimentação operacional quando foi comandante naval. Divertia-se com mais quatro pessoas a inventar traquitanas para derrubar navios a baixo custo. “Uma vez esteve cá um destroyer inglês de última geração, e provámos que as defesas aéreas eram vulneráveis a drones feitos por nós”, diz, entre risos.
O pai era advogado, tendo também sido temporariamente juiz. Quando saíram de África, tinha ele 14 anos, o pai estava “irritado com o sistema”. Na metrópole, eram vistos como “os colonialistas”. Acabaram por emigrar para o Brasil. “Já tínhamos sofrido bastante em África. Perdemos tudo, todas as propriedades.” A família receava que Portugal mudasse “para um sistema de Leste, para o comunismo duro”. “O meu pai achou que não queria viver num país assim”, recorda, mas acabaram por sair precisamente a 25 de novembro de 1975, o dia da contrarrevolução. O navio já ia a sair da barra quando o pai terá confessado à família: “Acho que me enganei e devia ter esperado mais dois ou três dias.” Como cidade, São Paulo, onde atracaram, era uma cidade gigantesca, assim como Quelimane era gigantesca na extensão territorial. Em África a natureza obrigava-os a serem próximos uns dos outros para se defenderem. O Brasil era um formigueiro humano, uma selva urbana, e viviam “em constante perigo do crime”. Acabaram por se habituar e ganhar defesas. Em São Paulo e em Quelimane “os sistemas de sobrevivência eram os mesmos”. “Nós, que vínhamos de África, tínhamos skills de sobrevivência tão apurados que depois nos ajudavam a sobreviver num outro ambiente”, resume.
Henrique era “um marrão”, mas o pai proibia-o de estudar tanto. Estudava de manhã num colégio, que era a escola oficial, e à tarde inscreveu-se num colégio particular “para ir avançando nos estudos”. Tinha 11 horas de aulas por dia e depois o resto do tempo ainda era para estudar. “O meu pai obrigava-me a apagar a luz à uma da manhã e não gostava que eu estudasse tanto”, recorda.
De regresso a Portugal, entrou na Marinha aos 19 anos. Sentiu que a sua maturidade era maior do que a dos seus camaradas de curso. “Era muito mais velho mentalmente do que os outros. Não tinha paciência para certas brincadeiras.” Mas a maturidade é muito acelerada na Escola Naval, porque o sistema militar pretende dar autonomia e capacidade de liderança na formação de oficiais.
GUERRA É GUERRA: “CUIDADO, O MELO ESTÁ NO MAR!”
É duro, sim, é um dos principais defeitos que lhe apontam, mas também uma das qualidades, depende do contexto. Traça um rumo, vê um objetivo e não se desvia, mesmo com um mar de circunstâncias alterado. “Vai sempre ao limite porque é extremamente determinado”, diz Silva Gouveia, que chegou a ser imediato do vice-almirante (um imediato é o segundo comandante de um navio). É inventivo, pensa “fora da caixa”, descrevem várias fontes ao Expresso. “Tem uma grande capacidade de inovar”, precisa Silva Gouveia. “Como é suposto um submarino estar debaixo de água para ninguém o ver, uma vez, num exercício internacional, fez superfície, pôs luzes de pesqueiro e aumentou a velocidade para apanhar um navio de guerra e eles não repararam.” José Conde Baguinho, vice-almirante submarinista na reforma, comandou Gouveia e Melo enquanto jovem, e lembra-o com “uma grande imaginação, uma capacidade imaginativa brutal”. Para ele, “não há impossíveis e assume qualquer tarefa por difícil que pareça, enfrenta aquilo como se tivesse a certeza que vai resolver”. Na década de 1980, recorda Baguinho, já sabia de informática mais do que todos os outros e quando ainda ninguém falava de internet já ele procurava informação sobre esse futuro que havia de revolucionar as nossas vidas.
“Parece que as coisas estão a correr muito bem e sinto orgulho em ter colaborado nos primeiros dois meses de trabalho”,
diz Francisco Ramos, o primeiro coordenador da task force
Sempre no limite, “explorou os submarinos ao máximo” e isso foi notado pelas outras Marinhas. “Se falar com oficiais mais antigos, franceses, espanhóis ou ingleses, todos sabem quem é o Melo”, conta Farinha Alves. “Na NATO ele era temido”, confirma ao Expresso o almirante Luís Macieira Fragoso, ex-chefe do Estado-Maior da Armada. “Só me apercebi disso quando ele era meu chefe de gabinete e um dia embarcámos num porta-aviões americano, e encontrámos um oficial francês, que nos disse: ‘Tu é que és o Melo? Então és aquele de quem se dizia: Beware, Melo is at sea!...’” (Cuidado, o Melo está no mar!). Levava a competição a sério, e se era para haver guerra, ele dava-lhes guerra, mesmo num calhambeque desatualizado dos anos 60: certa vez, num exercício onde estavam nove submarinos, dos 147 ataques realizados, o de Melo contabilizou 117. “Uma vez, os franceses julgavam que nos iam dar uma lição com os submarinos nucleares e levaram 6-0. Mais tarde, foram eles a planear o exercício, criaram-nos dificuldades, e mesmo assim ficou 3-3. Não compreendiam como eu fazia aquilo”, recorda o próprio.
Era combativo, não se limitava a fazer um ou dois ataques aos navios de superfície, como os comandantes dos países que operavam as plataformas mais modernas. Com submarinos obsoletos, ter bons resultados nos exercícios conjuntos “era uma forma de termos aceitação nos outros países da NATO quanto à nossa capacidade submarina”, contextualiza Silva Gouveia. “Na minha opinião, ele é o pai dos novos submarinos. Se não fosse ele, não haveria submarinos novos nem com a qualidade que têm.” Fez parte dos grupos de trabalho e discutia pormenores técnicos com os engenheiros dos fabricantes e arrasava os argumentos dos concorrentes alemães ou franceses se quisessem vender-lhe “peixe podre”.
Quando a Marinha recebeu os dois novos submarinos da classe “Tridente”, Gouveia e Melo era o comandante da esquadrilha, mas acabou por ter de acumular a liderança em terra com a chefia do novo navio. O oficial que estava a preparar-se há anos para comandar e testar o novíssimo “Tridente” teve o diagnóstico de um cancro galopante e morreu em dois meses. Terá sido um dos momentos que mais afetou emocionalmente a esquadrilha e também o próprio Gouveia e Melo. Na viagem para Portugal, quando foi buscar o submarino à Alemanha, o comandante percebeu que a torre do submarino vibrava. “Os alemães diziam que não havia problemas”, lembra. “Se continuam com isso, vou partir-vos a torre”, ameaçou. E assim fez: com o Atlântico a bater forte, levou a plataforma ao máximo, afinal estava em testes e o navio dentro da garantia, e passou o Bugio em direção ao Alfeite com a torre pendurada e o submarino aberto. “Não só o fabricante assumiu a reparação do ‘Tridente’ como modificou o ‘Arpão’”, a unidade que viria a seguir, e os submarinos que construíram depois. As alterações custaram milhões de euros aos alemães.
SEM OBSESSÃO DE MORRER VELHO
Além de determinado, confessa-se obcecado com o que tem de fazer. Trabalha o que tiver de trabalhar, fá-lo com prazer e sem denunciar cansaço. Isso já teve consequências na sua saúde. Mas também espera que ninguém deseje viver eternamente porque “ainda não houve ninguém que conseguisse provar isso”. O problema de saúde também esteve relacionado com o stresse, uma constante na sua carreira. A certa altura, depois de o “Barracuda” ter sofrido um acidente grave, foi apontado para acumular o comando dos dois submarinos em simultâneo. “Não foi fácil”, reconhece ao Expresso. Atracava de uma missão, a sua mulher de então levava-lhe roupa lavada, tomava banho, vestia uma roupa limpa “e ia para o mar outra vez”.
Em 2002, sofreu um choque elétrico e cinco anos depois teve de colocar um pacemaker (chegou a fazer de cobaia para ver como é que o aparelho reagia ao magnetismo da carga elétrica no submarino e mandou as conclusões para o fabricante). Não sabe se o acidente foi a causa principal, mas assegura que está “ rijo para as curvas”. Até diz aos camaradas que aconselha um pacemaker a toda a gente. O acidente aconteceu já no final da sua carreira nos submarinos ao cair numa operação com um helicóptero. Normalmente, o cabo elétrico pousa na água para fazer a descarga, que não terá sido bem sucedida, e ao agarrar o cabo apanhou um choque “fortíssimo”. Não chegou a perder os sentidos mas ficou paralisado.
E o acidente levou-o a reequacionar algo na vida? “Não faço reavaliações de coisas que não me resolvem nada. Não tenho a obsessão de morrer velho, de morrer a olhar para o sol e de ver os dias a passar. Isso até me deixa profundamente deprimido, portanto espero que me dê qualquer coisa ainda no vigor da minha idade, é mais fácil, e que seja rápida.” Diz não se preocupar com isso, até porque teve “uma vida tão plena, cheia de tantas coisas”. “Quando a vida me carimbar o passaporte, vou de certeza contente.”
“O pessoal que andava com ele estava lixado. Exigia o máximo”,
conta o vice-almirante Conde Baguinho, que o comandou
A sua referência é ele próprio no dia anterior. Só se compara consigo, só concorre consigo. É “muito autorreflexivo”, o que o ajuda a ter a capacidade de olhar de forma crítica para si e, por vezes, até de “gozar” com a sua posição, “como se saísse” do seu corpo e se visse de fora. “Nenhum de nós é importante. Somos uma função num determinado momento da história e num determinado local. As pessoas que se julgam importantes são naturalmente parvas”, sentencia. Ainda assim, a estrutura das Forças Armadas é muito hierarquizada, obedece a uma escala de importância. “Os títulos têm o poder e a responsabilidade associados. Ninguém tem poder nas Forças Armadas sem ter as responsabilidades” inerentes à função. E defende que o poder só deve ser exercido “no estrito senso necessário para cumprir com as responsabilidades, nunca para além dessa margem muito estrita”.
Uma das razões por que gosta de andar de camuflado é por ser prático. Mas também por considerar que a luta contra a covid-19 é “uma guerra” e por ser uma forma de os militares da task force, dos três ramos das Forças Armadas, terem todos o mesmo uniforme. Não gosta de andar sempre com as medalhas. Quando veste a camisa branca, de manga curta, da Marinha, usa uma fita só com quatro condecorações. E que quatro medalhas são essas? “Nem são as mais importantes na hierarquia das medalhas. Foram as que tiveram mais significado por causa das pessoas que mas deram e que tenho em elevada consideração.” Uma delas foi-lhe dada por Brites Nunes, que era o comandante da esquadrilha de submarinos quando Gouveia e Melo saiu. Diz-se o produto de mentores com que se foi cruzando. O vice-almirante Conde Baguinho é outro desses exemplos: uma medalha atribuída por este tinha “muito mais significado do que uma medalha dada pelo CEMA”.
NEM CÃO NEM RUM
E quando regressa a casa no fim de cada dia, o que encontra? Vive com a segunda mulher, uma diplomata, tem dois filhos adultos que já não estão em casa. Gouveia e Melo concede ser uma pessoa com a qual é muito difícil conviver. “A minha mulher diz que vivo numa bolha e que afasto os outros. Quem vive ao meu lado queixa-se muitas vezes de eu ser mais máquina do que humano. Estou tão obcecado com a bolha que me abstraio um bocado das relações que tenho”, reconhece. Passou a carreira num mundo à parte, o dos submarinos, que muitas vezes se definem assim: “Há o mundo dos vivos, dos mortos e o dos submarinistas.” Mesmo dentro da Marinha são gente diferente dos “fragateiros”, a expressão pejorativa com que se referem aos marinheiros de superfície. “É uma pessoa que, sendo muito profissional e exigente, cria uma bolha em que é difícil entrar”, confirma o comandante Paulo Vicente, um mergulhador que trabalhou de perto com a esquadrilha de submarinos e que foi relações públicas da Marinha quando Gouveia e Melo era chefe de gabinete do CEMA. “Se as pessoas passam a fronteira dessa bolha, da parte profissional, entram no lado humano.” E o próprio Gouveia e Melo reconhece que já foi mais duro, embora não se tenha tornado um “mole”.
Mas não é de esperar que se reflita nele o marinheiro rufia do rum ou que toma o seu gin tónico ao fim da tarde para o quinino ajudar a prevenir a malária. “Não bebe álcool”, diz o amigo Silva Gouveia. “Acho que nunca ninguém o conseguiu pôr a beber.” Só Coca-Cola: “O encarregado da cantina tinha de levar um carregamento só para ele.” E era dos poucos que não cumpria uma tradição: quando um submarino imergia até à cota máxima, para testar a estanquicidade do casco, o comandante dava ordem para se fumar um cigarro. Ele aguentava a nuvem de fumo dos outros dentro daquele aquário, mas também nunca fumou.
Não tem animais de estimação, mas já teve. “Neste momento, mal tenho tempo para a minha mulher, quanto mais para animais de estimação.” Mas durante 14 anos teve uma cão de fila de São Miguel, “uma cadela muito dedicada e muito protetora da família”. Chamava-se “Lucy”, e foi a sua primeira mulher, que era inglesa, quem escolheu o nome. “As mulheres é que decidem tudo em casa”, o que não mudou neste seu segundo casamento: “Ainda é assim agora, claro.” A “Lucy” era uma cadela abandonada, usada para lutas de cães, e “sempre demonstrou ao longo da sua vida um agradecimento eterno” por ter sido recolhida.
Gouveia e Melo não gosta de falar de si e tenta fugir dos holofotes, o que não tem sido fácil, tendo em conta as várias solicitações de entrevista que recebe. “Não gosto de heróis. Incomoda-me ser importante porque importante é o grupo. Tenho esperança de que em todos os sítios haja pessoas com o espírito parecido com o meu e que estejam animadas a fazer as coisas.” E diz que “este Portugal está órfão de um Sebastião, está sempre à procura de um novo”. “É um traço psicológico do povo português. Mas o Sebastião está dentro de nós, não temos de procurar por ele.” Que missão aceitará depois desta?
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