segunda-feira, 2 de agosto de 2021

AS ORIGENS DE EÇA DE QUEIRÓS



Por António Coutinho Coelho


Ao aceder recentemente a um programa no Porto Canal sobre Eça de Queirós, constatei que mais uma vez as suas origens continuam a ser tabu mesmo para aqueles que se consideram seus especialistas, isto no ano de 2021!

Recorro, pois, a uma bela biografia escrita por Maria Filomena Mónica (Ed. Quetzal, 2001), de que transcrevo o que se lhe ofereceu escrever sobre o assunto, ao que acrescento os originais
do seu assento de baptismo e carta de seu pai, que um amigo, simpaticamente me fez chegar:

 Era o Outono de 1845. Os dias andavam cheios de grandes chuvas. Uma rapariga, envergando roupas de viagem, saía de uma carruagem na Póvoa de Varzim. Tinha dezanove anos, estava grávida e era solteira. Chegara de Viana do Castelo. Quando as contracções começaram, Carolina Augusta, assim se chamava, fora despachada pela mãe, Ana Clementina de Abreu e Castro Pereira d’Eça, para o domicílio de uma tia-avó. Convinha que o parto se realizasse fora do local de residência da família, onde toda a gente gostava de inquirir da vida dos outros. A 25 de Novembro, entre casas brancas e barcos de pesca, nascia José Maria Eça de Queirós.

A criança poderia ter sido entregue na Roda, a vetusta instituição gerida pela Misericórdia, onde eram depositados os filhos indesejados. Por coincidência, a da Póvoa de Varzim ficava situada
 mesmo em frente da casa onde o menino viria a nascer, mas Carolina Augusta e o pai da criança, o Dr. José Maria Teixeira de Queirós, quiseram manter o filho. Não era possível, sabiam-no,
trazê-lo de volta com eles: nem para Viana, onde vivia Carolina Augusta, nem para Ponte de Lima, onde o Dr. Teixeira de Queirós era delegado do procurador régio.

Nenhuma mãe abandona, de ânimo leve, a criança que acaba de dar à luz. Mas Carolina Augusta conhecia de antemão o seu destino. Resignada, regressou ao lar materno (o pai, o coronel José
António Pereira d’Eça, já tinha morrido). O menino ficou em Vila do Conde, entregue a uma ama.

Esta, oriunda de Pernambuco, era filha natural de uma criada que estivera ao serviço do avô paterno da criança, aquando da estada deste no Brasil. Antes de José Maria nascer, já este avô desempenhava um papel crucial na sua vida. A 18 de Novembro de 1845, ou seja, uma semana antes do parto, José Maria Teixeira de Queirós escrevia a Carolina Augusta, dizendo ter recebido instruções do seu pai, no sentido de ser este a orientar “a criação de meu filho”, oferecendo-se “para o mandar criar no Porto, em companhia de minha família, quando a senhora nisto convenha”. Informava-a do facto de o desembargador Queirós ter recomendado que, no assento do baptismo, se declarasse ser a criança filha de pai conhecido, “sem todavia se enunciar o nome
da mãe”. Acrescentava: “Isto é essencial para o destino futuro do meu filho, e para que, no caso de se verificar o meu casamento consigo – o que talvez haja de acontecer brevemente – não seja preciso em tempo algum justificação de filiação”. No final, exprimia um desejo: “Espero que se ponha ao nosso filho o meu, ou o seu nome, conforme deve ser. Adeus. Acredite sempre nas
minhas sinceras tenções e agora mais do que nunca”. O tom não é sentimental: nem a ocasião, nem os costumes o permitiam.

No primeiro dia de Dezembro, a criança era baptizada na igreja matriz de Vila do Conde. Nenhum membro da família esteve presente. Os padrinhos foram o Senhor dos aflitos e a ama, Ana
Joaquina Leal de Barros. O assento de baptismo registava: “José Maria, filho natural de José Maria de Almeida de Teixeira de Queirós e de mãe incógnita; neto paterno de Joaquim José de
Queirós e de sua mulher, D. Teodora Joaquina de Almeida Queirós, nasceu aos (...)”. O prior, Domingos da Soledade Silos, continuava: “Declaro que fiz este assento sem assinatura do pai,
por este estar ausente em Ponte de Lima e me ser apresentada uma carta, que fica em meu poder, escrita pelo mesmo, datada daquela vila, com data de dezoito de Novembro, na qual expressamente recomenda o que acima fica escrito e por isso fiz este assento, que assino”. A 
carta era uma cópia da que o pai da criança escrevera a Carolina Augusta.
Que se teria passado para que esta jovem, oriunda de uma das mais conhecidas famílias de
Viana do Castelo, não pudesse, ou não quisesse, casar com o homem que a engravidara?
(...)
Certezas sobre estes amores provavelmente nunca as teremos. No entanto, parte do mistério tem de residir na figura da mãe de Carolina. Apenas seis dias tinham passado após a morte
daquela, quando, a 3 de Setembro de 1849, se realizou o casamento entre os jovens. (...) Devido ao casamento, Eça ficou automaticamente legitimado. Mas continuou a viver em Vila do Conde, em casa da ama, casada com um alfaiate. Carolina Augusta poderia ter ido busca-lo. Optou, contudo, por não o fazer.
(...)
Em 1850 a ama morria. Nem assim os pais o levaram para junto deles. O menino foi viver para Verdemilho, uma aldeia perto de Aveiro, onde os avós paternos tinham feito construir uma casa.
Foi aqui que José Maria cresceu. A criança formou o seu carácter ao colo de uma velha avó, que lhe lia versos de Mendes Leal, e de um casal de criados negros, que lhe contavam histórias
fantásticas. Mas o neto do senhor desembargador Queirós não podia brincar com os rapazes de pé descalço que rodeavam a casa brasonada que habitava. Foi entre muros, sem ninguém da
sua idade, que cresceu.
Eça tinha conhecimento que, além da ama, que o amamentara, e dos avós, a quem fora entregue, tinha pai e mãe. No Porto, ouvira dizer, viviam irmãos seus. Só ele, por razões que lhe escapavam, ficara em Verdemilho. Como todas as crianças que têm diante de si um mistério a que os adultos não querem dar resposta, terá procurado esquecer o facto. (...)
José Maria ia crescendo. Era agora necessário ensiná-lo a ler e escrever. O criado negro e a sua mulher, que o adoravam, não se podiam ocupar da tarefa. Tão-pouco o podia fazer a avó, uma
antiga camponesa que poucas letras possuía. A única pessoa habilitada na família fora o avô.
Mas este morrera pouco tempo depois de o menino ter ido viver para Verdemilho. Seria o padre António Gonçalves Bartolomeu a ensinar-lhe, através da tradução do romance francês Simão de
Nântua, as primeiras letras. Em 1855, a avó paterna morria. Aproveitando-se da faculdade legal de poder dispor da terça da fortuna, esta fizera-o em favor de José Maria. “Este legado será
aplicado”, especificava o testamento, “para completar a educação do meu dito neto, e administrado por seu pai, com aquela aplicação. O que existir deste legado ao tempo em que o dito meu neto se emancipar, lhe será entregue para ele se governar e administrar como seu”. O menino ficava sozinho.
Desta vez, foi para o Porto. Os pais, que nessa altura ali viviam, decidiram inscrevê-lo como aluno semi-interno, no Colégio da Lapa. (...) No Porto, a situação de Eça tornou-se incómoda. Talvez por o Dr. Teixeira de Queirós prever uma próxima colocação no Sul do país, Eça ficou a residir em casa dos tios Albuquerque, na Rua de Cedofeita. Aos fins de semana, em vez de ir para casa dos pais, ficava na residência dos tios.
Foi Afonso Tavares de Albuquerque, casado com uma irmã de sua mãe, quem se tornouresponsável pela sua educação.
(...)
Quando o editor Chardron lhe comunicou que ia encomendar, a um literato de Lisboa, a história da sua vida, de tal forma se afligiu que, em desespero de causa, pediu a Ramalho paraser ele a
encarregar-se do trabalho. Em carta de 10 de Novembro de 1878, dizia-lhe: “Dados para a minha biografia, não lhos sei dar. Eu não tenho história, sou como a República do Vale de Andorra”.

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