sábado, 2 de outubro de 2021

Abimael Guzmán (1934-2021), o professor de Filosofia que aterrorizou o Peru

Morreu aos 86 anos o líder do Sendero Luminoso, a organização terrorista de inspiração maoísta responsável por centenas de atentados e por deflagrar um conflito que em pouco mais de uma década causou 70 mil mortos.


João Ruela Ribeiro 19 de Setembro de 2021


Abimael Guzmán na prisão de Ancon, em Callao, Peru, em Junho de 2017 MARIANA BAZO/REUTERS

Durante mais de uma década, Abimael Guzmán foi o cérebro de uma das insurreições mais irracionais, destrutivas e sangrentas da História da América Latina. O culto que construiu em torno do Sendero Luminoso foi responsável por um conflito que tirou a vida a 70 mil peruanos e do qual o país ainda se ressente. Morreu, aos 86 anos, na prisão militar de alta segurança onde cumpria uma pena perpétua. O seu corpo será cremado.

A imprensa peruana celebrou enfaticamente a morte de um “genocida”, o “pior terrorista” da história do país, um homem “sanguinário”. O destino a dar ao corpo do antigo líder do Sendero Luminoso tornou-se objecto de disputa, entre os que defendiam a cremação e os que desejavam que os seus restos físicos desaparecessem. Mais do que o fim definitivo de um capítulo negro, a maioria dos peruanos parece querer fazer da morte de Abimael Guzmán um “exorcismo”, diz ao PÚBLICO o jornalista Gustavo Gorriti, estudioso da insurreição maoísta no Peru.

Guzmán na base naval de Callao, em Novembro de 2012 - as causas da morte do antigo líder terrorista não foram divulgadas Paolo Aguilar/EPA

Manuel Rubén Abimael Guzmán Reinoso nasceu a 3 de Dezembro de 1934 na cidade costeira de Mollendo, na província de Arequipa, no Sudoeste do Peru. Frequentou uma escola católica, entrou na Universidade de Arequipa para estudar Filosofia e aos 27 anos iniciava uma carreira académica. Vai dar aulas na Universidade Nacional San Cristóbal de Huamanga, em Ayacucho, onde rapidamente se torna um professor muito popular entre os alunos.

Por esta altura, influenciado pelo êxito da Revolução Cubana de 1959, Guzmán era já um marxista. “Ao contrário de outros, que mantiveram flexibilidade e tolerância, ele era disciplinado, literal, ultra-ortodoxo e plenamente dedicado a impor uma revolução comunista no país através da violência”, escreve Gorriti num ensaio publicado a propósito da morte de Guzmán.

Guzmán visita a China em duas ocasiões, a última das quais em 1967, quando a Revolução Cultural lançada por Mao Tsetung atravessa um período de intensa violência. O contacto próximo com o ambiente fervilhante das purgas, perseguições e, sobretudo, o culto a Mao, causam uma forte impressão junto do professor de Filosofia.

A partir da década de 1970 Guzmán dedica-se quase em exclusivo a doutrinar e recrutar estudantes universitários para a organização que tinha fundado: o Partido Comunista do Peru — Sendero Luminoso. O carisma e a capacidade para influenciar quem o ouvia são qualidades omnipresentes nas descrições feitas a seu propósito. Em 1980, numa altura em que a ditadura militar dava lugar a um processo de democratização no Peru, o Sendero Luminoso dá início à sua fase de violência. Imbuído de toda a prática maoísta, Guzmán — que os seus seguidores tratavam como “presidente Gonzalo” — lança a insurreição a partir dos campos e só depois avança rumo às cidades.

Seguem-se anos de inúmeros atentados contra instituições públicas, assembleias de voto, esquadras e instalações militares. No seu auge, o Sendero Luminoso chegou a contar com dez mil militantes e ameaçou tomar conta do Peru. Guzmán não era um operacional; actuava como pólo ideológico, com a função de manter vivo o fanatismo dos recrutas. Nem sempre os alvos do fanatismo senderista eram governamentais. Os militantes maoístas foram responsáveis por um massacre em que seis mil ashaninkas, um povo indígena amazónico, foram mortos, e muitos outros sujeitos a abusos sexuais e trabalho escravo.


Guzmán visita a China em duas ocasiões, a última das quais em 1967, quando a Revolução Cultural lançada por Mao Tsetung atravessa um período de intensa violência

Os ensinamentos do professor, explica Gorriti, forneciam “uma ideologia completa, uma interpretação redonda do mundo, que ia desde a Física até à Psicologia, que falava de leis históricas inelutáveis, que falava do desenvolvimento da humanidade, que dizia que o caminho para o socialismo e depois para o comunismo era difícil, que exigia bastantes sacrifícios, que exigia um rio de sangue, mas que por fim iria permitir alcançar a sociedade da harmonia plena e da justiça social”.

Mais do que uma luta em nome dos peruanos oprimidos, frequentemente era o fanatismo ideológico inculcado por Guzmán aos seus seguidores o que mais importava. Em Lima, chegaram a aparecer cães mortos com cartazes que diziam “Deng Xiaoping, filho de uma cadela”, ou então murais com lemas maoístas que deixavam os habitantes locais perplexos. “Por trás disso estavam os quadros ultra-ideologizados, levados a um frenesim, sentindo que estavam a levar em frente a verdade histórica, a necessidade dialéctica, segundo o comando daquele que consideravam o maior filósofo ao cimo da terra”, diz Gorriti.

Os peruanos passaram os anos 1980 sem conhecerem a fonte do seu terror. Pouco se sabia sobre o obscuro líder do Sendero Luminoso, e nem fotografias suas existiam. A sua captura parecia uma miragem e essa aura da invencibilidade ajudava a atrair mais poder para a organização.

Até que em 1991, numa audaciosa operação da unidade antiterrorismo da polícia é encontrado um vídeo em que Guzmán e outros membros do comité central do Sendero aparecem a dançar a música de Zorba, o Grego, pondo fim ao manto de secretismo que cobria o “presidente Gonzalo”.

Depois de meses de uma minuciosa preparação, Guzmán é capturado vivo e sem qualquer ferimento numa casa em Lima, a 12 de Setembro de 1992. A prisão e o julgamento de Abimael Guzmán transformaram-se numa manobra de propaganda para o Presidente Alberto Fujimori, que acabava de orquestrar um golpe parlamentar para se manter no poder.

O homem que aterrorizou o Peru durante mais de uma década foi presente a um tribunal militar vestido com um uniforme prisional às riscas e óculos de sol. Declarou-se culpado de todos os crimes e foi condenado a prisão perpétua. Formalmente, o Sendero Luminoso manteve-se em actividade, mas, com Guzmán atrás das grades e a aparecer na televisão a pedir a rendição dos restantes elementos, a organização rapidamente soçobrou.


A imprensa peruana celebrou enfaticamente a morte de um “genocida”, o “pior terrorista” da história do país, um homem “sanguinário”

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