O ICIJ, o consórcio que revelou os Luanda Leaks e os Panama Papers, está de volta, numa investigação feita a partir de 12 milhões de ficheiros com origem nalguns dos maiores paraísos fiscais do planeta. Entre os nomes descobertos estão entre outros, o atual primeiro-ministro da República Checa, o rei da Jordânia e o antigo chefe de governo britânico Tony Blair
Cinco anos depois dos Panama Papers, e apesar do impacto que essas revelações tiveram, o mundo dos negócios offshore parece estar ainda em grande forma. Pouco mudou desde então. Muitos dos que usavam os serviços da Mossack Fonseca, o escritório de advogados que foi a origem da fuga de informação dos Panama Papers, simplesmente passaram a recorrer a outros escritórios do género e continuaram com as suas vidas. Pelo meio, e durante este tempo, houve uma série de políticos que foram mantendo as suas fortunas em segredo atrás das suas companhias offshore. Até agora.
O Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ), de que o Expresso é parceiro em Portugal, teve acesso a uma nova coleção de 11,9 milhões de ficheiros confidenciais que permitiram descobrir informações sobre companhias offshore ligadas a um total de 35 atuais e antigos Presidentes e primeiro-ministros, além de mais de 330 funcionários públicos em mais de 90 países. E também gente fugida à Justiça ou condenada por burla, fraude ou mesmo homicídio.
A lista de poderosos que aparecem nos Pandora Papers, o nome com que foi batizado este projeto de investigação jornalística do ICIJ, inclui o primeiro-ministro checo. Andrej Babis, que usou uma estrutura offshore para comprar um castelo de 19 milhões de euros em França; o rei da Jordânia, Abdullah II, que adquiriu três propriedades em Malibu, na Califórnia, por 59 milhões de euros, através da Ilhas Virgens Britânicas quando o seu país estava em profunda crise social e económica; o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair e a sua mulher, que compraram um edifício por 7,6 milhões de euros a uma companhia offshore da família do ministro da Indústria do Bahrain, Zayed bin Rashid al-Zayani.
Os exemplos encontrados nos Pandora Papers de políticos que recorrem a paraísos fiscais para ocultar os seus ativos é extensa.
Faz o que eu digo, não o que eu faço
No Equador, o presidente Guillermo Lasso teve contas bancárias nos bancos Morgan Santley e no JP Morgan Chase tituladas por uma fundação registada no Panamá, acabando por transferir em 2017 essa titularidade para trusts confidenciais incorporados no Dakota do Sul, um estado norte-americano que se tornou entretanto num importante centro offshore nos Estados Unidos. Os ficheiros encontrados nos Pandora Papers mostram como nos formulários das contas bancárias, em vez de dar como morada o Equador, indicou como residência um escritório na Flórida.
No Líbano, onde há uma escassez crónica de eletricidade, água e bens alimentares, o atual primeiro-ministro, Najib Mikati, e o seu antecessor, Hassan Diab, o governador do banco central, Riad Salameh, bem como o antigo responsável pelo combate à corrupção no país, aparecem nos ficheiros. E um ex-ministro, Marwan Kheireddine, atual chairman de um banco, que chegou a dizer em 2019, quando as padarias e as mercearias já tinham as prateleiras vazias, que havia “evasão fiscal" e o Governo precisava "de resolver isso”, nesse mesmo ano usou uma companhia offshore para ser dono de um iate de quase dois milhões de euros.
No Quénia, o presidente Uhuru Kenyatta e a sua mãe foram identificados como sendo os beneficiários de uma fundação secreta no Panamá — isto é, sem que os nomes dos beneficiários sejam de acesso público. Outros elementos da sua família, incluindo três irmãos, são donos de cinco companhias offshore com quase 30 milhões de euros em ativos. Uma descoberta que contrasta com o que o próprio Kenyatta disse em 2018 à BBC. “Os bens de cada funcionário público devem ser declarados publicamente para que as pessoas possam questionar e perguntar — o que é que legítimo?” — E até foi mais longe nessa entrevista: “Se não conseguimos explicar [os bens que temos], incluindo eu próprio, então temos um caso que precisa de respostas.”
Essa falta de transparência também existiu no caso da República Checa. Apesar de estar obrigado a declarar o seu património, o media checo parceiro do ICIJ Investigace.cz constatou que o primeiro-ministro, Andrej Babis, deixou de fora do seu registo de interesses o que foi descoberto nos Pandora Papers.
Depois de ter comprado por 19 milhões de euros o Chateau Bigaud, perto de Cannes, no ano seguinte adquiriu mais sete propriedades nas redondezas desse castelo, com recurso a uma outra empresa de fachada. Em 2018 todos esses imóveis passaram a ser detidos através de uma companhia no Mónaco, controlada pelo primeiro-ministro — o mesmo que há dez anos, quando era ainda um homem de negócios a dar os primeiros passos na política, dizia aos eleitores que queria transformar a República Checa num lugar onde os empresários “ficarão felizes por pagar impostos”.
Um representante da empresa no Mónaco garantiu ao ICIJ que está tudo dentro da lei e, recusando-se a responder a perguntas sobre o chefe de governo checo, argumentou: “Como qualquer outra entidade empresarial, temos o direito de proteger os nossos segredos comerciais”. Quanto ao próprio Babis, optou por ficar em silêncio.
A mulher de Tony Blair diz que o ex-primeiro-ministro não esteve envolvido na compra de um imóvel ao ministro da Indústria do Bahrain e que não foi possível evitar comprá-lo através de uma companhia offshore
keld navntoft/afp/getty images
No Reino Unido, Tony e Cherie Blair preferiram falar — ainda que o que esteja em causa não seja o facto de terem omitido património numa declaração de interesses. A mulher do ex-primeiro-ministro britânico esteve disponível para contar o que aconteceu. Segundo explicou, o vendedor a quem compraram um edifício por 7,6 milhões de euros só estava disponível para vender a companhia offshore detentora do imóvel — e não o próprio imóvel. Isso teve consequências claras.
Como não houve escritura, não houve pagamento ao equivalente no Reino Unido do IMT e do imposto do selo, o que significou uma poupança de 345 mil euros em impostos.
Por outro lado, os Blair admitiram que não sabiam que o verdadeiro dono do edifício era um ministro do Bahrain — e Cherie assegurou que não só o marido não esteve envolvido na transação como, depois de a compra estar concluída, a companhia das Ilhas Virgens Britânicas que detinha a propriedade foi encerrada.
50 vezes Portugal !
Além de políticos, há mais de 130 milionários de dezenas de países identificados nos ficheiros como beneficiários de estruturas offshore, bem como algumas das estrelas mais conhecidas do planeta, como a cantora Shakira ou a ex-modelo Claudia Schiffer. Da lista consta também um empresário e produtor de televisão russo, que chegou a ver o seu nome nomeado para um Óscar, Konstantin Ernst, que é considerado como o diretor criativo do Kremlin e o maior responsável pela construção da imagem do presidente Vladimir Putin. E que foi beneficiado pelo Estado, de forma secreta, num negócio de privatização de dezenas de cinemas em Moscovo.
Ao todo, os Pandora Papers permitiram identificar os donos de 29 mil companhias offshore. Há beneficiários de mais de 200 países — sendo a Rússia, o Reino Unido, a China e o Brasil os que possuem mais.
Os documentos têm origem em 14 empresas que fornecem serviços para este sector — são, na realidade, fornecedores de companhias offshore. Registam-nas, para depois serem geridas por intermediários e serem detidas por terceiros. Fazem na verdade aquilo que o escritório de advogados Mossack Fonseca fazia nos Panama Papers. Incorporam empresas nos registos comerciais de paraísos fiscais e tratam de todas as questões administrativas que são necessárias para manter essas empresas a funcionar. Invariavelmente as moradas são meras caixas postais, não há funcionários nem é realizado qualquer tipo de atividade económica ou industrial por essas companhias nos países onde estão registadas. Daí serem conhecidas como empresas de fachada. Existem apenas no papel. E servem, na maioria das vezes, para deter riqueza.
Aviões, iates, herdades, obras de arte, dividendos. Há mais de 10 biliões de euros — 10.000.000.000.000, um número com 13 zeros e que corresponde a 50 vezes o tamanho da economia portuguesa — de património e dinheiro que são detidos através de jurisdições offshore no mundo inteiro, de acordo com um estudo feito pela OCDE em 2020. Quanto dessa riqueza paga os impostos que são devidos pelos seus beneficiários nos países onde vivem? Ou quanto é que tem origem em crimes? Não é possível saber, por causa da forma opaca como este sistema funciona.
Ter companhias offshore e utilizá-las para fazer negócios ou para deter património não é ilegal na maioria dos países, incluindo Portugal, mas as jurisdições onde estas empresas são registadas, como as Ilhas Virgens Britânicas, o Panamá ou a Samoa, promovem a falta de transparência e facilitam a evasão fiscal, a fraude e a lavagem de dinheiro, alimentando um sector de atividade especializado que fornece todo o tipo de serviços de ocultação. Pessoas que passam por administradores mas que não fazem mais nada a não ser assinar papéis; companhias cuja única função é serem acionistas de fachada de outras empresas; contratos de consultoria que são usados apenas para justificar junto dos bancos a transferência de dinheiro.
Não se trata de um submundo frequentado apenas por criminosos que precisam de apagar o rasto dos seus crimes. Os maiores e mais reputados bancos da Europa e dos Estados Unidos aceitam este tipo de instrumentos. O uso errado ou não dessas estruturas offshore depende sempre da liberdade de escolha dos seus beneficiários.
Road Town, nas Ilhas Virgens Britânicas
foto linda whitwam/corbis
Os Pandora Papers mostram como o maior escritório de advogados dos Estados Unidos, o Baker McKenzie, teve um papel importante na criação do sistema offshore mundial, com as suas filiais a contribuírem para fomentar a aprovação de legislação favorável ao estabelecimento ou reforço de regimes offshore em vários cantos do mundo e em fornecer, entretanto, o melhor aconselhamento jurídico a quem queira tirar partido desses regimes.
Entre os clientes da Baker McKenzie estava Jho Low, um gestor financeiro que desviou quase quatro mil milhões de dólares de um fundo de desenvolvimento económico na Malásia e que é atualmente procurado pela Justiça. Um porta-voz do escritório de advogados sublinhou ao ICIJ que é feito um esforço para assegurar que os clientes “cumprem a lei e aderem às melhores práticas”, mas o certo é que algumas das empresas que faziam parte da complexa estrutura offshore aconselhada pela McKenzie acabaram por ser usadas por Jho Low para desviar o dinheiro do fundo público malaio.
Os Estados Unidos estão muito presentes nos Pandora Papers. Embora as autoridades norte-americanas obriguem outros países a fornecer informações sobre as atividades de bancos e cidadãos americanos no estrangeiro, essa atitude não tem sido recíproca. A Casa Branca optou por não aderir a um acordo em 2014, a que aderiram jurisdições como as Ilhas Caimão, que exigia que o sector financeiro americano fornecesse informação sobre o património e o dinheiro detidos nos Estados Unidos por empresas e cidadãos não americanos.
Isso faz com que alguns Estados norte-americanos prosperem como paraísos fiscais. Não é só em Nevada (Delaware), o mais conhecido desses Estados, que o sector financeiro offshore tem crescido muito. No Dakota do Sul, a riqueza detida por estrangeiros por trás de companhias sedeadas naquele Estado aumentou quatro vezes nos últimos dez anos e representa atualmente 310 mil milhões de euros. Uma antiga deputada local, Susan Wismer, lamentou ao ICIJ o exemplo dado pela Dakota do Sul ao resto do mundo. “Como cidadã, fico muito triste que o meu Estado tenha sido o Estado que abriu a caixa de Pandora”.
Este artigo foi escrito com base nas investigações realizadas por muitos jornalistas do ICIJ e dos seus media parceiros.
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