Zeferino Coelho
Quase a completar 50 anos de carreira, Zeferino Coelho é um editor tranquilo. Duas décadas depois de ter partilhado com Saramago a emoção do Nobel, conta histórias de cumplicidades com escritores, revela algumas mágoas e afirma que não escreverá memórias. Por preguiça.
ISABEL LUCAS 9 de Agosto de 2018
Não há um computador à vista no gabinete. Só papéis, muitos papéis, livros, uma voz calma e cava que conta histórias com muitos escritores. “Um editor é uma pessoa que está sentada numa cadeira a ler uns papéis”, diz Zeferino Coelho, e se é assim ali está um. Editor quase há 50 anos. Começou em 1969 e o seu nome está ligado a uma marca, a Caminho, que ajudou a criar e onde ainda está, agora sob o chapéu de um grande grupo. Seria assim ou teria fechado, admite numa conversa sobre a sua intimidade com os autores, a fuga da nuvem salazarista da terra onde nasceu e cresceu, o único a ter estudos na família. A alegria e a tristeza relacionadas com o nome Saramago, o Partido Comunista, o acaso de se ter especializado em autores de língua portuguesa, a admiração por Graciliano Ramos, as colecções e uma viagem de sonho para já: ir a S. Petersburgo. Será este mês de Agosto, ver o lugar onde se celebrou e se chorou por uma revolução. Saber mais acerca dos derrotados, porque dos vitoriosos já muito se escreveu. As histórias com Zeferino Coelho, o editor do único Nobel em língua portuguesa, de dois prémios Camões que se lhe dessem a escolher um autor estrangeiro para publicar ele diria um nome: W. G. Sebald.
O que mudou nestes 50 anos?
No fundo mudou tudo e não mudou nada. Já não se fabricam livros como se fabricavam, mas a essência das coisas continua a mesma. Mudou o processo. Os livros continuam a ser, do ponto de vista de cada um dos autores, a coisa mais importante para a vida deles. Do ponto de vista do editor, é mais um; o editor faz vários por ano.
Mas o editor faz uma escolha.
Sim, e depois dessa escolha é mais um. Não é "o" meu livro; é mais um livro do meu programa.
Como gere essa relação com o autor?
Com muita circunspecção, muita paciência e muito respeito pelo autor, seja ele quem for. Os autores, de um modo geral, põem-se inteiros no que escrevem; aquilo é essencial para eles e pode determinar o que vai ser a sua vida. Isso é importante e é preciso ter paciência.
É conhecido por ter relações próximas com os seus autores.
A relação do autor com o seu livro é uma relação muito particular, muito íntima, e nós, editores, entramos nela. Sei que estou a trabalhar com uma coisa a que aquele senhor ou aquela senhora dão imensa importância. Quando publico um autor falo muito com ele porque isso me dá imenso gozo. E nesse sentido, o livro é de alguma maneira também meu. Entusiasmo-me com ele, defendo-o. Sou editor, faço um trabalho prático, mas estou entusiasmado com aquilo e isso dá uma proximidade grande com o autor e abre porta para uma reacção mais íntima e menos distante.
Tornam-se amigos?
Sim. Cria-se uma relação de amizade que se constrói em cima da partilha desse universo íntimo: o livro que ele escreveu e que eu estou a publicar. São coisas de grande cumplicidade. Uma vez... Aconteceu com a Sophia, eu estava a fazer mais um livro dela, um dos últimos que ela escreveu. O livro já estava na tipografia, tudo pronto, e ela telefonou-me... "ai Zeferino, aquele poema das ondas; aquilo não está bem. Já está impresso?” Eu disse que não, que ia imprimir naquele dia. "Ai, mas não está bem." Mandei parar a impressão e fui lá a casa falar com ela. Cheguei depois de almoço e eram sete horas da tarde e ela ainda não tinha falado no poema, até que: "E o poema?" Ela continuava a dizer que não estava bem. Fui lá no dia seguinte e só à terceira vez ela fez o acerto que queria. Do meu ponto de vista, isto é uma chatice; o livro estava a imprimir e eu não via onde estava o problema. Para quem está de fora é difícil, mas acho que é preciso respeitar isso. Talvez seja preciso perder três ou quatro dias para que o autor se sinta bem e não sinta que foi empurrado; que as suas dúvidas, as suas interrogações não foram desprezadas por um tipo que está ali preocupado com coisas práticas. Estou a dar o exemplo da Sophia porque era uma pessoa que não tinha sentido prático, como sabem todos os que a conheceram. É um exemplo quase que pelo absurdo, mas como ela própria dizia, e escreveu, a poesia é uma forma de vida, não é uma habilidade que se tem.
Essa falta de sentido prático é comum a muitos autores?
O que é mais comum nos autores é eles porem nos livros esperanças excessivas; terem uma ansiedade excessiva em relação ao que fazem. Mas as pessoas são como são. Não tome isto como uma crítica ou alguma espécie de desconforto meu. Não se lhes exige que sejam simpáticas ou prestáveis. O que se lhes exige é que escrevam bons livros.
O que é um bom livro?
Ahah... Não sei. Vou-lhe dar a minha perspectiva muito pessoal. Um bom livro é um livro a que a gente adere. Tem-se a sensação de que se está perante um bom livro, não se sabe bem porquê.
É uma definição muito impressiva.
Sim. A gente entra no livro e adere. Quando o Saramago me trouxe o primeiro livro, aliás foi o segundo, porque o primeiro foi uma peça de teatro, e eu pus-me a ler aquilo e pensei: isto é uma coisa a sério; isto é um bom livro. Entrei imediatamente no livro. Às vezes pode ser um bom livro e a gente não entra. Um bom livro é uma coisa que nos conquista, não sei bem porquê, mas há coisas que têm esse condão.
Trabalha quase em exclusivo com originais de língua portuguesa, e por isso não tem o que pode funcionar como barómetro para muitos editores, ter alguma referência do comportamento desse livro no mercado exterior. É um trabalho solitário?
É, porque são coisas que não têm história, não vêm já com um dossier de imprensa.
Os jornais fazem vender livros?
Ajudam. Já ajudaram mais porque já dedicaram mais atenção aos livros e já se venderam mais jornais, mas continua a ser importante. No entanto, acho que a boa literatura acaba por se impor.
Ao contrário de José Saramago, Sophia de Mello Breyner chegou-lhe já era conhecida. Como é que isso aconteceu?
Muito por acaso. Havia uma recepção na Embaixada de França, e havia muita gente; também estava o Almeida Faria, ele apresentou-nos e de repente veio-me uma inspiração. A Sophia é uma grande poeta, mas obra dela estava muito espalhada, meio perdida e perguntei-lhe o que ela achava de organizar essa obra num livro, dois, três volumes. Ela não achou má ideia, disse-me para eu aparecer lá por casa, para lhe telefonar. E foi assim. Agora tenho muito mais conhecimento da obra da Sophia; é uma escritora importantíssima.
Acha que ainda está por descobrir?
Acho que sim. Toda a gente admira, toda a gente gosta muito dela, mas ainda está por surgir um estudo que revele a sua verdadeira importância. Há uma filosofia de vida por detrás da obra da Sophia e isso tem sido muito desprezado. Até me atrevo a dizer que se ela fosse homem se calhar esse lado já estava mais sublinhado. Mas uma mulher é suposto que tenha muita sensibilidade e poucas ideias! O modo como ela entende a poesia, a maneira como se insere em toda a história da poesia e as preocupações que estão por detrás da elaboração poética e da produção poética; e, sobretudo, uma tradição muito alemã, que arranca com o Novalis, e que é, no fundo, a morte de Deus depois do Iluminismo, a impossibilidade de acreditar em Deus, o sentimento de perda que isso acarreta a quem isso acontece e a tentativa de, através da poesia, restabelecer essa unidade com o mundo. Ela teoriza isso. Há quase toda uma teologia na obra da Sophia.
Sendo ela católica.
Exacto, com uma contradição enorme. Uma vez atrevi-me a dizer-lhe que havia uma contradição nela. Católica e seriamente católica, acredita num Deus católico que é um Deus transcendente, que cria o mundo mas está fora dele, e toda a sua poesia é a exaltação do divino como inerente ao mundo material; o divino é a perfeição da curva da onda, a elegância da haste do trigo. Na natureza e no construído pelo homem, como as colunas do templo de Sunion. Uma das filhas dela ouviu-me dizer isso e não gostou. Mas isto está muito por descobrir e a poesia dela não é valorizada.
O Zeferino nasceu num mundo conservador, em Paredes.
Muito conservador.
Como é que se dá a passagem desse mundo para o mundo oposto?
Naquela altura havia o manto do fascismo e ter uma ideia política era visto como uma coisa tenebrosa. Aprendi que de política não se fala e na minha casa não se falava. Era extremamente perigoso. E vinha logo a explicação de um médico de Espinho que era contra o Governo a quem meteram num avião e atiraram ao mar. Não foi assim, houve um médico em Espinho que foi morto, mas criou-se essa história e ela pairava na cabeça das pessoas. Havia muito medo. A partir de final dos anos 60 a coisa começou ligeiramente a mudar. Mas era pesado. A minha família era de gente modesta; o meu pai era camponês e eu vivia com o meu avô porque era o neto mais velho; fiz a quarta classe numa escola pública, estive até ao quinto ano num colégio que havia lá, e depois para Guimarães até que fui para o Porto, para a Faculdade de Letras.
Nada comum numa família dessas.
Muito raro, não havia dinheiro para isso. Mas foi no Porto que me livrei desse mundo.
E o que o atraiu no outro?
A ousadia. A Faculdade de Letras do Porto começou no ano em que entrei, 62-63, na ressaca da crise de 62. Havia duas turmas, para aí com 40 estudantes cada uma; um curso de História e outro de Filosofia. Fui para Filosofia e encontrei uma série de pessoas que já tinham actividade política antifascista. Para mim foi uma revelação. Andávamos muito pelos cafés, à tarde havia o grupo do café Piolho e à noite era o café Ceuta. A televisão tinha começado mas nem se via. Uma vez estava-se a discutir política em altos berros. Era sobre a Indonésia, e havia dois generais, o Sukarno e o Suharto, um deles tinha sido morto pelo outro, e um desses meus colegas às tantas exalta-se - e desculpe o palavrão, mas estávamos no Porto - e diz bem alto; "esse Suharto, esse filho da puta!". Achei aquela malta do caraças. Esta é a minha malta, pensei.
A sua educação política fez-se nos cafés?
Sim, ali uns com os outros.
Quem é que costumava estar nesses sítios?
Gente já bastante politizada. Estava um tipo mais velho chamado Mário Alves, casado e com filhos, já tinha estado preso; estava o Zé Bento, tinha estado em Coimbra e sido expulso por ter estado preso e era casado com a Marcela Torres, filha do Flauzino Torres do PCP; um outro chamado Teixeira Lopes, pai deste Teixeira Lopes do Bloco de Esquerda; a certa altura apareceu o César Oliveira, expulso de Coimbra, muito truculento. Era esta gente. Caí aqui por mero acaso. Os livros circulavam e passei a fazer parte do circuito.
O que é que se lia?
Acompanhava-se bastante a literatura portuguesa que se fazia. Na altura, praticamente todos os jornais tinham um caderno literário. Lia-se o Diário de Lisboa e o [Diário] Popular, o Primeiro de Janeiro. Lia-se Namora, Redol, Vergílio Ferreira; lia-se os brasileiros, Jorge Amado e Graciliano [Ramos]; esse grupo dividia-se entre os fãs de Jorge Amado e os do Graciliano. Eu fazia parte dos fãs do Graciliano.
Porquê?
Achava o Jorge Amado um romântico, e o Graciliano olhava a vida com certa displicência, era mais contido, um sentido crítico muito mais agudo. O Jorge Amado deixa-se entusiasmar muito, vai um bocado atrás das ideias. Um dia disseram ao Graciliano para fugir porque ia ser preso, e ele disse que não ia deixar as suas coisas, ia para o estrangeiro fazer o quê, e não fugiu. Quando a polícia foi lá a casa para o levar ele tinha a mala feita. Eu, com 19, 20 anos, achava isto o máximo. Líamos também muitos franceses, como o Louis Aragon, o Henri Lefebvre, os marxistas.
E vai parar à edição pelo interesse que tem pela literatura.
Sim, em 1969 houve umas eleições, daquelas que o regime fazia, eu fui candidato. Eu era o candidato jovem. Quando a oposição democrática precisava de demonstrar que a juventude estava com a oposição chamavam-me. Aderi ao PCP, não sei se em 64 se em 65, e desenvolvi a actividade política no quadro do PCP. Nessas eleições criou-se a comissão possível para convocar as eleições porque não havia partidos; foi quando houve a ruptura com os socialistas. Isso deu-me uma notoriedade grande. A minha fotografia apareceu nos jornais, numa ou outra notícia de um comício. Também acabei o curso [de Filosofia] nesse ano e o meu destino era ser professor do liceu. Mas havia uma espécie de estado civil suplementar nessa altura, para rapazes, que era "O que é que estás a fazer?", e a resposta inevitável era; "estou à espera de ser chamado". Ainda passei dois anos ali antes de ser chamado, e o Cruz Santos, homem de esquerda, criou a Inova, e como me tornei conhecido por essa via política, perguntou-me se eu queria fazer um part-time na editora. Comecei a assim. Trabalhava à tarde.
Foi uma escolha sua trabalhar com autores de língua portuguesa?
Acho que acabou por acontecer, como muitas coisas na minha vida. Uma vez recebemos um livro do Mia Couto, editado em Moçambique, o primeiro livro de prosa dele. Naquela altura Moçambique era o país mais pobre do mundo, a guerra civil mesmo perto de Maputo. Achei que aquilo merecia uma edição melhor e publicámos. Decidimos prestar atenção ao que se estava a passar lá. Chegámos ao Craveirinha, por exemplo e as coisas estenderam-se a Angola. Quando o Mia Couto começou a ter grande popularidade começou a aparecer muita gente.
Já está a falar da Caminho, a editora onde esteve desde o início, ligada ao PCP...
Sim. Em 1972 mudei de vida. Fui funcionário do PCP em 72 e mantive-me até ao fim de 76. Mas a uma dada altura fui fazer a tropa. Tinha sido chamado no início de 71 e fiquei numa situação de refractário. Depois do 25 de Abril as autoridades militares decidiram que essas pessoas como eu não podiam ficar assim, porque tinham violado a lei. Foram reinspeccionados e se fossem dados como aptos iriam para a tropa. Eu fui, em Setembro de 75, para os serviços psicotécnicos porque até aos anos 60 o único sítio onde se estudava psicologia era nas faculdades de letras e os licenciados em filosofia, como tinham alguma formação, eram chamados para os serviços psicotécnicos. Era na Avenida de Berna, onde é a Universidade Nova. Nessa altura, em 75, deu-se o 25 de Novembro, o PCP foi varrido dos jornais e decidiu criar um jornal chamado O Diário e criou uma empresa, chamada Editorial Caminho, para publicar o jornal. No início de 76 o jornal começou a sair; eu estava ali na tropa e já andavam a trabalhar na Caminho pessoas que eu conhecia do Porto e que tinham estado sempre ligados aos livros. Eles andavam a pensar que a Editorial Caminho também podia editar livros. Desafiaram-me a ir para lá porque eu tinha experiência de trabalho editorial. No princípio de 77 entrei para a Caminho e começaram a sair livros.
E durante anos tinha uma identidade colada à sua: era um editor comunista.
Não nego. Mas a ideia era criar uma editora independente que não deixasse condicionar a qualidade das suas publicações por questões partidárias. Não vamos deixar de publicar o escritor A porque ele não é comunista e não vamos publicar o autor A porque ele é comunista.
Toda a gente podia publicar na Caminho?
Evidentemente que se fosse uma coisa muito à direita iríamos perguntar, mas se fosse boa literatura não perguntaríamos. Essa marca causou-nos dificuldades. Não lhe vou dizer quem, mas houve uma vez um camarada meu, de quem eu tinha lá publicado um livro ou dois, um autor importante, disse-me que tinha outro livro, mas que iria publicar noutro sítio. Temia que o livro ficasse muito conotado.
Compreendeu?
Sim. O mundo é feito de pessoas reais e concretas; quem sou eu para dar lições de moralidade, aliás despropositadas? Se calhar ele não estava a ver mal as coisas. Mas continuámos a trabalhar. Ainda hoje o publico. Tivemos muita sorte.
Porquê sorte?
A editora, por vários motivos, começou a publicar coisas relevantes e liberta-se dessa marca. A primeira dessas autoras foi a Alice Vieira. A ONU declarou 1979 o Ano Internacional da Juventude, fizemos um concurso literário e ganhou a Alice Vieira com um livro chamado Rosa, Minha Irmã Rosa que teve um enorme êxito. E em 80 saiu o Levantado do Chão, do Saramago, que era então um escritor maldito, e que nem chegava a ser bem escritor porque tinha só dois ou três livros. O livro já tinha sido recusado por duas ou três editoras; a Caminho não foi a primeira escolha, embora tivéssemos publicado a peça de teatro A Noite com o raciocínio de que o tipo tinha escrito um bom livro, O Manual de Pintura e Caligrafia e que se calhar iria escrever outro. Se disséssemos não achámos que ele nunca mais voltaria. O Levantado do Chão teve um enorme êxito. Já não estou a falar de vendas, mas de êxito junto da crítica. Do ponto de vista comercial a editora começou a funcionar bem. Em 1972 começámos a publicar a colecção Uma Aventura de umas senhoras que praticamente não eram nada na altura e aquilo começou a ter sucesso.
E fundaram aí outra tradição da editora, o infanto-juvenil.
Sim, a partir da Alice Vieira. E a editora passou a ser um caso sério. Eles são comunistas, mas... A Sophia vem nesse quadro.
Ela não questionou a ideologia da editora?
Não. Nunca levantou qualquer espécie de problema, e ela andava por outras áreas, mais na área do Partido Socialista, com o marido, Francisco Sousa Tavares, e os católicos progressistas. Começámos também a publicar o Daniel Sampaio. Ele é muito amigo do António Lobo Antunes. Nós funcionávamos nos Capuchos e ele trabalhava ali no Hospital Miguel Bombarda e um dia vieram-me dizer que estava ali o António Lobo Antunes para falar comigo. Vinha apresentar-me a tese de doutoramento de um amigo. Li aquilo, era sobre suicídio juvenil e fiquei muito impressionado. Eu também tinha um filho adolescente, e, embora fosse uma tese de doutoramento, não tinha uma escrita fechada. Publicámos e também teve êxito. O Daniel Sampaio também era um homem do Partido Socialista. E aquilo de ser uma editora comunista já não marcava nada. Por outro lado, e isso não é visível, houve camaradas meus — não lhe vou também aqui dizer nomes — que quiseram publicar na Editorial Caminho e não publicaram porque nós achávamos que aquilo era uma porcaria.
Como é que se diz a alguém que um livro é uma porcaria?
Eu evito dizer e não digo. Digo que não posso publicar.
Porque é que não diz?
Porque haveria de dizer? Não vale a pena magoar a pessoa. E, por outro lado, arrasta para uma conversa e uma discussão sobre o livro que, se uma das partes é editor, é muito desagradável e mesmo perigosa. Uma vez fui discutir o livro, disse que ele tinha este e aquele defeitos e, passado um mês ou dois recebo um pacote a dizer que aquilo que eu tinha apontado como falhas já estava corrigido. Ali estava outra vez o livro mau, pior do que antes. Não vou discutir, até porque não tenho competência e autoridade para isso. Eu tenho de decidir “publico ou não publico?”, é uma decisão que o editor tem de tomar e que fica comigo.
Mas um editor sabe quando é que um livro pode ser trabalhado e melhorado.
Sabe, e há casos, mas é preciso que atinjam um patamar em que uma discussão e uma conversa sejam úteis e viáveis. E isso faz-se.
Há autores que não gostam?
Sim. Uma vez um disse-me: “se não quer publicar o meu livro não tem problema”. Mas esse também é o trabalho do editor. Uma coisa é um livro que já aparece como um grande livro, e está feito; outra é um livro que a gente acha péssimo e não publica, e outra é o que está no meio e essa é a parte mais delicada.
É comum haver o trabalho quase conjunto, de diálogo entre autor e editor como acontece em muitos países, ao longo do processo de escrita de um livro?
Não é muito comum. Há autores que se rebelam contra esse tipo de coisas.
Mas também há o que se chama de tendências de mercado, editores a encomendarem determinado tipo de receitas que parecem estar a funcionar, uma literatura à medida.
Nunca fiz isso. Pode haver um ensaio sobre um dado tema. Na ensaística, é outra coisa. Há temas que precisam de ser estudados. Na ficção não. Não fiz porque não sei nem me interessa. Estou na posição de quem recebe coisas e não de quem desencadeia coisas. Não sou indiferente ao volume das vendas porque tenho de prestar contas. Quando digo à tipografia faça mil ou dez mil tenho de ter uma ideia do que é que o livro vai vender. Há livros que publico e já sei que não vão vender mais de 200 ou 300 exemplares.
O que o leva a publicar sabendo isso?
Achar que são coisas relevantes e de muita qualidade do ponto de vista literário. Um dia aquilo vai vender. Os novos que eu publico e que vendem pouco, mas que me parecem coisas importantes, bem feitas, bem escritas. E acho que já existe uma geração com imensa piada.
Tem contado que uma das grandes alegrias da sua vida editorial foi quando Saramago ganhou o Nobel. Como olha esse momento a esta distância?
Como recordou há bocado, sou editor há quase 50 anos, esta é a minha profissão, e o facto de um autor meu ter ganhado o Prémio Nobel é uma coisa efectivamente relevante. O Saramago começou por ser muito importante aqui, internamente, e eu acompanho esse processo desde o início, desde que o Saramago passou a ser o Saramago que a gente conhece. Trabalhámos sempre muito intimamente, de uma maneira muito próxima, muito conversada. Depois ele começou a expandir-se para o exterior, sobretudo a partir de Itália, quando a Feltrinelli publicou o Memorial do Convento. Nessa altura, o Eduardo Prado Coelho disse uma coisa interessante: com este livro Saramago alargou a sua base social de apoio. É verdade. O Levantado do Chão interessou por razões estilísticas, mas ainda era um livro sobre a Reforma Agrária. O Memorial do Convento não. Do ponto de vista político parece mais inócuo e mais aceitável para pessoas que não estão naquela área; e o público do Saramago alarga-se, o nome foi crescendo nos anos seguintes com outros livros e começou-se a falar do Nobel. Ele era relevante no plano interno e no plano internacional. Quando o Nobel se concretiza é o culminar de uma expectativa. Foi em 1998, o país estava numa fase de euforia, e cheguei a ouvir dizer que a literatura portuguesa era a mais importante da Europa. Finalmente havia um escritor português e de língua portuguesa com o Nobel. Ninguém disse, mas muita gente por aqui pensou: “felizmente que não foi um brasileiro”.
Há algum brasileiro que achasse ou ache merecedor do Nobel?
Não sei, estou velho e sou dessa geração. Eu teria dado o Nobel ao Graciliano Ramos.
O Nobel de Saramago foi a sua maior alegria como editor?
Sim, foi. Foi o maior acontecimento e a maior alegria. Uma coisa destas é sempre uma surpresa. E não fui só eu que vibrei, foi o país inteiro.
Tem-se feito esta pergunta: o Nobel a Saramago ajudou a projectar a literatura portuguesa?
Acho que ajudou muito. Naquele momento, achei que ele iria vender um pouco mais, mas ele já vendia muito. Foi mais do que isso. Um autor que é conhecido, se tem um acontecimento destes na sua vida, a repercussão é muito maior e arrasta a literatura em que escreve. Os editores em todo o mundo vieram saber se havia mais coisas. É sempre assim. Perguntaram-me o que é que eu tinha mais.
E o que é que tinha mais nessa altura?
Tinha o Mário de Carvalho, a Sophia, o Mia Couto e comecei a vender toda essa gente. Havia curiosidade de muitos editores estrangeiros.
E se Saramago foi a grande alegria da sua carreira com o Nobel, a saída dele do seu catálogo foi a grande tristeza?
Sim, de alguma maneira foi. Foi um corte. Bom, o Saramago já não estava cá e, como disse na altura o Manuel Alberto Valente [responsável pela Porto Editora que ficou com os direitos de Saramago], o Saramago já tinha sido editado, era só reimprimir. Em todo o caso foi desagradável, não foi a coisa mais agradável que me aconteceu.
O que é que sentiu?
[Pausa] Sabe, eu fazia parte do grupo do Graciliano Ramos que quando foi preso e chegou à prisão de São Paulo viu escrito na parede uma frase: “Índios, revoltai-vos!” E a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi que em São Paulo não há índios. Eu, desde sempre, por causa da minha constituição cerebral e do meio onde fui ter, sempre olhei as coisas com uma espécie de “o que tem de ser é”.
Um comunista não se emociona?
Um comunista emociona-se, sim. Mas também olha para as coisas da vida como sendo bastante relativas. Fui editor do Saramago aqueles anos todos. Está feito. Agora vêm outros. Já me aconteceu outros autores mudarem, e eu percebia. Ao mudar os livros são geralmente reeditados logo e se ficar onde está só são reeditados se se esgotarem. É outra coisa, outra experiência, outra vida para os livros.
Outro momento da sua vida foi quando Luandino Vieira ganhou o Camões e recusou o prémio. Como é que se lida com um autor que nunca quer aparecer?
É uma chatice porque dificulta muito o trabalho. Não sei sequer as razões.
Ele nunca lhe disse porque é que não fala?
Nunca. Há um mistério ou simplesmente uma maneira de ser. Enfiou-se ali [em Vila Nova de Cerveira] e lá está. E falo com ele regularmente. Ou ele telefona ou eu. Mas nesse dia meti-me no carro e fui até lá. Não consegui encontrá-lo. Voltei ao carro e regressei a Lisboa.
Ia-lhe dizer o quê?
Ia dar-lhe um abraço. São momentos importantes nessa tal proximidade.
Um contraste com o que aconteceu este ano quando o Prémio Camões foi atribuído a Germano Almeida.
Exactamente. Eu achava que iria ser um brasileiro. Mas sai o nome do Germano que acompanho também desde sempre. E o prémio para ele foi muito importante, deu-lhe muita visibilidade. As vendas dispararam.
Há prémios que fazem vender mas depende dos autores?
Sim, e às vezes da circunstância.
Como define o mercado do livro actualmente?
As coisas estão difíceis. Houve uma queda motivada sobretudo por razões económicas. Acho. Tudo isto começou em 2002. Esse ano foi uma loucura de vendas de livros e a partir daí as coisas vieram sempre a piorar. Em 2017 houve um crescimento de dois por cento no volume global das vendas, ou seja, o fundo estagnou num patamar baixo. Em anos anteriores houve quebras de 15 e 16 por cento. É difícil sabermos o que é isto. Haverá certamente motivos económicos internos, nossos, mas eventualmente qualquer coisa está a acontecer num plano muito mais vasto, porque as quebras na venda de livros não são só aqui.
Noutro dia vi uma estatística que nos últimos 16 anos no Brasil, a queda foi de 21 por cento.
A Caminho teria sobrevivido se não estivesse sob o tecto de um grande grupo?
Acho que não. Quando decidimos vender a editora ela estava a passar por grandes dificuldades económicas.
Não basta ter um bom catálogo.
Não basta. É preciso ter um trabalho muito firme, muito atento e muito consistente todos os dias. As editoras são empresas comerciais. Estamos a tratar de literatura e não de outro negócio qualquer. Mas quando fazemos um livro e lhe pomos um preço ele é um produto como outro, que se vai sujeitar às leis do mercado. Apesar dos sucessos, a Caminho passou por várias crises. Passei um mau bocado. Tínhamos autores que vendiam muito e, sobretudo da primeira vez, tivemos de ir falar com eles e dizer-lhes que não tínhamos dinheiro para lhes pagar. Todos compreenderam. O Saramago estava a escrever nesse ano O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Não era preciso saber muito de livros para prever que um romance de Saramago com esse título iria vender imenso. Ele acabou de escrever o livro em Agosto. Dois meses antes tínhamos-lhe ido dizer que não tínhamos dinheiro e ele dissera que não havia problema, que acabaria o livro e que lhe pagássemos em Janeiro. Há que prestar-lhe essa homenagem. E nós utilizámos esse novo livro nas negociações com a banca.
O que o faz querer continuar a ser editor?
É uma questão de inércia. Aprendi na Física que há duas inércias: a do movimento e a do repouso. Um corpo em repouso precisa de um esforço suplementar para entrar em movimento e o que está em movimento também tem tendência para continuar. E eu é isso. Vou ter de pegar no telefone e ligar para fulano e para sicrano e dizer que para o mês que vem já cá não estou. É uma conversa difícil. É esta inércia do movimento.
Imagino que tenha muitas histórias para contar nestes quase 50 anos de edição. Não lhe apetece escrever umas memórias?
Algumas pessoas dizem-me para eu fazer isso, mas não me apetece. Não quero fazer.
Porquê?
Por preguiça. Dá imenso trabalho. Eu colecciono. Autobiografias e diários... Estou fascinado por algumas coisas e não tenho tempo para outras.
Qual é a sua relação hoje com o comunismo?
É boa, é pacífica. Continuo a pertencer ao PCP e acho que vou continuar a pertencer. Não ignoro todas essas questões que se levantam nem se podem ignorar, a queda do muro, a desintegração da União Soviética.
Não há uma desilusão?
Há, de alguma maneira. Mas apesar de tudo há um património ideológico, de esperança, que acho que vale a pena manter vivo. Não sei como vai ser o mundo, mas tenho a ideia de que assim como o Marx no tempo dele, olhando para os ideais da Revolução Francesa e o que lhes aconteceu, dizia que eles tinham razão. Liberdade, igualdade, fraternidade, mas não como achavam, seria de outra maneira. Acho que ao marxismo vai acontecer um pouco a mesma coisa. Pode-me dizer que isto é como quem vai a Fátima. É um pouco.
Quase a completar 50 anos de carreira, Zeferino Coelho é um editor tranquilo. Duas décadas depois de ter partilhado com Saramago a emoção do Nobel, conta histórias de cumplicidades com escritores, revela algumas mágoas e afirma que não escreverá memórias. Por preguiça.
ISABEL LUCAS 9 de Agosto de 2018
O que mudou nestes 50 anos?
No fundo mudou tudo e não mudou nada. Já não se fabricam livros como se fabricavam, mas a essência das coisas continua a mesma. Mudou o processo. Os livros continuam a ser, do ponto de vista de cada um dos autores, a coisa mais importante para a vida deles. Do ponto de vista do editor, é mais um; o editor faz vários por ano.
Mas o editor faz uma escolha.
Sim, e depois dessa escolha é mais um. Não é "o" meu livro; é mais um livro do meu programa.
Como gere essa relação com o autor?
Com muita circunspecção, muita paciência e muito respeito pelo autor, seja ele quem for. Os autores, de um modo geral, põem-se inteiros no que escrevem; aquilo é essencial para eles e pode determinar o que vai ser a sua vida. Isso é importante e é preciso ter paciência.
É conhecido por ter relações próximas com os seus autores.
A relação do autor com o seu livro é uma relação muito particular, muito íntima, e nós, editores, entramos nela. Sei que estou a trabalhar com uma coisa a que aquele senhor ou aquela senhora dão imensa importância. Quando publico um autor falo muito com ele porque isso me dá imenso gozo. E nesse sentido, o livro é de alguma maneira também meu. Entusiasmo-me com ele, defendo-o. Sou editor, faço um trabalho prático, mas estou entusiasmado com aquilo e isso dá uma proximidade grande com o autor e abre porta para uma reacção mais íntima e menos distante.
Tornam-se amigos?
Sim. Cria-se uma relação de amizade que se constrói em cima da partilha desse universo íntimo: o livro que ele escreveu e que eu estou a publicar. São coisas de grande cumplicidade. Uma vez... Aconteceu com a Sophia, eu estava a fazer mais um livro dela, um dos últimos que ela escreveu. O livro já estava na tipografia, tudo pronto, e ela telefonou-me... "ai Zeferino, aquele poema das ondas; aquilo não está bem. Já está impresso?” Eu disse que não, que ia imprimir naquele dia. "Ai, mas não está bem." Mandei parar a impressão e fui lá a casa falar com ela. Cheguei depois de almoço e eram sete horas da tarde e ela ainda não tinha falado no poema, até que: "E o poema?" Ela continuava a dizer que não estava bem. Fui lá no dia seguinte e só à terceira vez ela fez o acerto que queria. Do meu ponto de vista, isto é uma chatice; o livro estava a imprimir e eu não via onde estava o problema. Para quem está de fora é difícil, mas acho que é preciso respeitar isso. Talvez seja preciso perder três ou quatro dias para que o autor se sinta bem e não sinta que foi empurrado; que as suas dúvidas, as suas interrogações não foram desprezadas por um tipo que está ali preocupado com coisas práticas. Estou a dar o exemplo da Sophia porque era uma pessoa que não tinha sentido prático, como sabem todos os que a conheceram. É um exemplo quase que pelo absurdo, mas como ela própria dizia, e escreveu, a poesia é uma forma de vida, não é uma habilidade que se tem.
Essa falta de sentido prático é comum a muitos autores?
O que é mais comum nos autores é eles porem nos livros esperanças excessivas; terem uma ansiedade excessiva em relação ao que fazem. Mas as pessoas são como são. Não tome isto como uma crítica ou alguma espécie de desconforto meu. Não se lhes exige que sejam simpáticas ou prestáveis. O que se lhes exige é que escrevam bons livros.
O que é um bom livro?
Ahah... Não sei. Vou-lhe dar a minha perspectiva muito pessoal. Um bom livro é um livro a que a gente adere. Tem-se a sensação de que se está perante um bom livro, não se sabe bem porquê.
É uma definição muito impressiva.
Sim. A gente entra no livro e adere. Quando o Saramago me trouxe o primeiro livro, aliás foi o segundo, porque o primeiro foi uma peça de teatro, e eu pus-me a ler aquilo e pensei: isto é uma coisa a sério; isto é um bom livro. Entrei imediatamente no livro. Às vezes pode ser um bom livro e a gente não entra. Um bom livro é uma coisa que nos conquista, não sei bem porquê, mas há coisas que têm esse condão.
Trabalha quase em exclusivo com originais de língua portuguesa, e por isso não tem o que pode funcionar como barómetro para muitos editores, ter alguma referência do comportamento desse livro no mercado exterior. É um trabalho solitário?
É, porque são coisas que não têm história, não vêm já com um dossier de imprensa.
Os jornais fazem vender livros?
Ajudam. Já ajudaram mais porque já dedicaram mais atenção aos livros e já se venderam mais jornais, mas continua a ser importante. No entanto, acho que a boa literatura acaba por se impor.
Ao contrário de José Saramago, Sophia de Mello Breyner chegou-lhe já era conhecida. Como é que isso aconteceu?
Muito por acaso. Havia uma recepção na Embaixada de França, e havia muita gente; também estava o Almeida Faria, ele apresentou-nos e de repente veio-me uma inspiração. A Sophia é uma grande poeta, mas obra dela estava muito espalhada, meio perdida e perguntei-lhe o que ela achava de organizar essa obra num livro, dois, três volumes. Ela não achou má ideia, disse-me para eu aparecer lá por casa, para lhe telefonar. E foi assim. Agora tenho muito mais conhecimento da obra da Sophia; é uma escritora importantíssima.
Acha que ainda está por descobrir?
Acho que sim. Toda a gente admira, toda a gente gosta muito dela, mas ainda está por surgir um estudo que revele a sua verdadeira importância. Há uma filosofia de vida por detrás da obra da Sophia e isso tem sido muito desprezado. Até me atrevo a dizer que se ela fosse homem se calhar esse lado já estava mais sublinhado. Mas uma mulher é suposto que tenha muita sensibilidade e poucas ideias! O modo como ela entende a poesia, a maneira como se insere em toda a história da poesia e as preocupações que estão por detrás da elaboração poética e da produção poética; e, sobretudo, uma tradição muito alemã, que arranca com o Novalis, e que é, no fundo, a morte de Deus depois do Iluminismo, a impossibilidade de acreditar em Deus, o sentimento de perda que isso acarreta a quem isso acontece e a tentativa de, através da poesia, restabelecer essa unidade com o mundo. Ela teoriza isso. Há quase toda uma teologia na obra da Sophia.
Sendo ela católica.
Exacto, com uma contradição enorme. Uma vez atrevi-me a dizer-lhe que havia uma contradição nela. Católica e seriamente católica, acredita num Deus católico que é um Deus transcendente, que cria o mundo mas está fora dele, e toda a sua poesia é a exaltação do divino como inerente ao mundo material; o divino é a perfeição da curva da onda, a elegância da haste do trigo. Na natureza e no construído pelo homem, como as colunas do templo de Sunion. Uma das filhas dela ouviu-me dizer isso e não gostou. Mas isto está muito por descobrir e a poesia dela não é valorizada.
O Zeferino nasceu num mundo conservador, em Paredes.
Muito conservador.
Como é que se dá a passagem desse mundo para o mundo oposto?
Naquela altura havia o manto do fascismo e ter uma ideia política era visto como uma coisa tenebrosa. Aprendi que de política não se fala e na minha casa não se falava. Era extremamente perigoso. E vinha logo a explicação de um médico de Espinho que era contra o Governo a quem meteram num avião e atiraram ao mar. Não foi assim, houve um médico em Espinho que foi morto, mas criou-se essa história e ela pairava na cabeça das pessoas. Havia muito medo. A partir de final dos anos 60 a coisa começou ligeiramente a mudar. Mas era pesado. A minha família era de gente modesta; o meu pai era camponês e eu vivia com o meu avô porque era o neto mais velho; fiz a quarta classe numa escola pública, estive até ao quinto ano num colégio que havia lá, e depois para Guimarães até que fui para o Porto, para a Faculdade de Letras.
Nada comum numa família dessas.
Muito raro, não havia dinheiro para isso. Mas foi no Porto que me livrei desse mundo.
E o que o atraiu no outro?
A ousadia. A Faculdade de Letras do Porto começou no ano em que entrei, 62-63, na ressaca da crise de 62. Havia duas turmas, para aí com 40 estudantes cada uma; um curso de História e outro de Filosofia. Fui para Filosofia e encontrei uma série de pessoas que já tinham actividade política antifascista. Para mim foi uma revelação. Andávamos muito pelos cafés, à tarde havia o grupo do café Piolho e à noite era o café Ceuta. A televisão tinha começado mas nem se via. Uma vez estava-se a discutir política em altos berros. Era sobre a Indonésia, e havia dois generais, o Sukarno e o Suharto, um deles tinha sido morto pelo outro, e um desses meus colegas às tantas exalta-se - e desculpe o palavrão, mas estávamos no Porto - e diz bem alto; "esse Suharto, esse filho da puta!". Achei aquela malta do caraças. Esta é a minha malta, pensei.
A sua educação política fez-se nos cafés?
Sim, ali uns com os outros.
Quem é que costumava estar nesses sítios?
Gente já bastante politizada. Estava um tipo mais velho chamado Mário Alves, casado e com filhos, já tinha estado preso; estava o Zé Bento, tinha estado em Coimbra e sido expulso por ter estado preso e era casado com a Marcela Torres, filha do Flauzino Torres do PCP; um outro chamado Teixeira Lopes, pai deste Teixeira Lopes do Bloco de Esquerda; a certa altura apareceu o César Oliveira, expulso de Coimbra, muito truculento. Era esta gente. Caí aqui por mero acaso. Os livros circulavam e passei a fazer parte do circuito.
O que é que se lia?
Acompanhava-se bastante a literatura portuguesa que se fazia. Na altura, praticamente todos os jornais tinham um caderno literário. Lia-se o Diário de Lisboa e o [Diário] Popular, o Primeiro de Janeiro. Lia-se Namora, Redol, Vergílio Ferreira; lia-se os brasileiros, Jorge Amado e Graciliano [Ramos]; esse grupo dividia-se entre os fãs de Jorge Amado e os do Graciliano. Eu fazia parte dos fãs do Graciliano.
Porquê?
Achava o Jorge Amado um romântico, e o Graciliano olhava a vida com certa displicência, era mais contido, um sentido crítico muito mais agudo. O Jorge Amado deixa-se entusiasmar muito, vai um bocado atrás das ideias. Um dia disseram ao Graciliano para fugir porque ia ser preso, e ele disse que não ia deixar as suas coisas, ia para o estrangeiro fazer o quê, e não fugiu. Quando a polícia foi lá a casa para o levar ele tinha a mala feita. Eu, com 19, 20 anos, achava isto o máximo. Líamos também muitos franceses, como o Louis Aragon, o Henri Lefebvre, os marxistas.
E vai parar à edição pelo interesse que tem pela literatura.
Sim, em 1969 houve umas eleições, daquelas que o regime fazia, eu fui candidato. Eu era o candidato jovem. Quando a oposição democrática precisava de demonstrar que a juventude estava com a oposição chamavam-me. Aderi ao PCP, não sei se em 64 se em 65, e desenvolvi a actividade política no quadro do PCP. Nessas eleições criou-se a comissão possível para convocar as eleições porque não havia partidos; foi quando houve a ruptura com os socialistas. Isso deu-me uma notoriedade grande. A minha fotografia apareceu nos jornais, numa ou outra notícia de um comício. Também acabei o curso [de Filosofia] nesse ano e o meu destino era ser professor do liceu. Mas havia uma espécie de estado civil suplementar nessa altura, para rapazes, que era "O que é que estás a fazer?", e a resposta inevitável era; "estou à espera de ser chamado". Ainda passei dois anos ali antes de ser chamado, e o Cruz Santos, homem de esquerda, criou a Inova, e como me tornei conhecido por essa via política, perguntou-me se eu queria fazer um part-time na editora. Comecei a assim. Trabalhava à tarde.
Foi uma escolha sua trabalhar com autores de língua portuguesa?
Acho que acabou por acontecer, como muitas coisas na minha vida. Uma vez recebemos um livro do Mia Couto, editado em Moçambique, o primeiro livro de prosa dele. Naquela altura Moçambique era o país mais pobre do mundo, a guerra civil mesmo perto de Maputo. Achei que aquilo merecia uma edição melhor e publicámos. Decidimos prestar atenção ao que se estava a passar lá. Chegámos ao Craveirinha, por exemplo e as coisas estenderam-se a Angola. Quando o Mia Couto começou a ter grande popularidade começou a aparecer muita gente.
Já está a falar da Caminho, a editora onde esteve desde o início, ligada ao PCP...
Sim. Em 1972 mudei de vida. Fui funcionário do PCP em 72 e mantive-me até ao fim de 76. Mas a uma dada altura fui fazer a tropa. Tinha sido chamado no início de 71 e fiquei numa situação de refractário. Depois do 25 de Abril as autoridades militares decidiram que essas pessoas como eu não podiam ficar assim, porque tinham violado a lei. Foram reinspeccionados e se fossem dados como aptos iriam para a tropa. Eu fui, em Setembro de 75, para os serviços psicotécnicos porque até aos anos 60 o único sítio onde se estudava psicologia era nas faculdades de letras e os licenciados em filosofia, como tinham alguma formação, eram chamados para os serviços psicotécnicos. Era na Avenida de Berna, onde é a Universidade Nova. Nessa altura, em 75, deu-se o 25 de Novembro, o PCP foi varrido dos jornais e decidiu criar um jornal chamado O Diário e criou uma empresa, chamada Editorial Caminho, para publicar o jornal. No início de 76 o jornal começou a sair; eu estava ali na tropa e já andavam a trabalhar na Caminho pessoas que eu conhecia do Porto e que tinham estado sempre ligados aos livros. Eles andavam a pensar que a Editorial Caminho também podia editar livros. Desafiaram-me a ir para lá porque eu tinha experiência de trabalho editorial. No princípio de 77 entrei para a Caminho e começaram a sair livros.
E durante anos tinha uma identidade colada à sua: era um editor comunista.
Não nego. Mas a ideia era criar uma editora independente que não deixasse condicionar a qualidade das suas publicações por questões partidárias. Não vamos deixar de publicar o escritor A porque ele não é comunista e não vamos publicar o autor A porque ele é comunista.
Evidentemente que se fosse uma coisa muito à direita iríamos perguntar, mas se fosse boa literatura não perguntaríamos. Essa marca causou-nos dificuldades. Não lhe vou dizer quem, mas houve uma vez um camarada meu, de quem eu tinha lá publicado um livro ou dois, um autor importante, disse-me que tinha outro livro, mas que iria publicar noutro sítio. Temia que o livro ficasse muito conotado.
Compreendeu?
Sim. O mundo é feito de pessoas reais e concretas; quem sou eu para dar lições de moralidade, aliás despropositadas? Se calhar ele não estava a ver mal as coisas. Mas continuámos a trabalhar. Ainda hoje o publico. Tivemos muita sorte.
Porquê sorte?
A editora, por vários motivos, começou a publicar coisas relevantes e liberta-se dessa marca. A primeira dessas autoras foi a Alice Vieira. A ONU declarou 1979 o Ano Internacional da Juventude, fizemos um concurso literário e ganhou a Alice Vieira com um livro chamado Rosa, Minha Irmã Rosa que teve um enorme êxito. E em 80 saiu o Levantado do Chão, do Saramago, que era então um escritor maldito, e que nem chegava a ser bem escritor porque tinha só dois ou três livros. O livro já tinha sido recusado por duas ou três editoras; a Caminho não foi a primeira escolha, embora tivéssemos publicado a peça de teatro A Noite com o raciocínio de que o tipo tinha escrito um bom livro, O Manual de Pintura e Caligrafia e que se calhar iria escrever outro. Se disséssemos não achámos que ele nunca mais voltaria. O Levantado do Chão teve um enorme êxito. Já não estou a falar de vendas, mas de êxito junto da crítica. Do ponto de vista comercial a editora começou a funcionar bem. Em 1972 começámos a publicar a colecção Uma Aventura de umas senhoras que praticamente não eram nada na altura e aquilo começou a ter sucesso.
E fundaram aí outra tradição da editora, o infanto-juvenil.
Sim, a partir da Alice Vieira. E a editora passou a ser um caso sério. Eles são comunistas, mas... A Sophia vem nesse quadro.
Ela não questionou a ideologia da editora?
Não. Nunca levantou qualquer espécie de problema, e ela andava por outras áreas, mais na área do Partido Socialista, com o marido, Francisco Sousa Tavares, e os católicos progressistas. Começámos também a publicar o Daniel Sampaio. Ele é muito amigo do António Lobo Antunes. Nós funcionávamos nos Capuchos e ele trabalhava ali no Hospital Miguel Bombarda e um dia vieram-me dizer que estava ali o António Lobo Antunes para falar comigo. Vinha apresentar-me a tese de doutoramento de um amigo. Li aquilo, era sobre suicídio juvenil e fiquei muito impressionado. Eu também tinha um filho adolescente, e, embora fosse uma tese de doutoramento, não tinha uma escrita fechada. Publicámos e também teve êxito. O Daniel Sampaio também era um homem do Partido Socialista. E aquilo de ser uma editora comunista já não marcava nada. Por outro lado, e isso não é visível, houve camaradas meus — não lhe vou também aqui dizer nomes — que quiseram publicar na Editorial Caminho e não publicaram porque nós achávamos que aquilo era uma porcaria.
Como é que se diz a alguém que um livro é uma porcaria?
Eu evito dizer e não digo. Digo que não posso publicar.
Porque é que não diz?
Porque haveria de dizer? Não vale a pena magoar a pessoa. E, por outro lado, arrasta para uma conversa e uma discussão sobre o livro que, se uma das partes é editor, é muito desagradável e mesmo perigosa. Uma vez fui discutir o livro, disse que ele tinha este e aquele defeitos e, passado um mês ou dois recebo um pacote a dizer que aquilo que eu tinha apontado como falhas já estava corrigido. Ali estava outra vez o livro mau, pior do que antes. Não vou discutir, até porque não tenho competência e autoridade para isso. Eu tenho de decidir “publico ou não publico?”, é uma decisão que o editor tem de tomar e que fica comigo.
Mas um editor sabe quando é que um livro pode ser trabalhado e melhorado.
Sabe, e há casos, mas é preciso que atinjam um patamar em que uma discussão e uma conversa sejam úteis e viáveis. E isso faz-se.
Há autores que não gostam?
Sim. Uma vez um disse-me: “se não quer publicar o meu livro não tem problema”. Mas esse também é o trabalho do editor. Uma coisa é um livro que já aparece como um grande livro, e está feito; outra é um livro que a gente acha péssimo e não publica, e outra é o que está no meio e essa é a parte mais delicada.
É comum haver o trabalho quase conjunto, de diálogo entre autor e editor como acontece em muitos países, ao longo do processo de escrita de um livro?
Não é muito comum. Há autores que se rebelam contra esse tipo de coisas.
Mas também há o que se chama de tendências de mercado, editores a encomendarem determinado tipo de receitas que parecem estar a funcionar, uma literatura à medida.
Nunca fiz isso. Pode haver um ensaio sobre um dado tema. Na ensaística, é outra coisa. Há temas que precisam de ser estudados. Na ficção não. Não fiz porque não sei nem me interessa. Estou na posição de quem recebe coisas e não de quem desencadeia coisas. Não sou indiferente ao volume das vendas porque tenho de prestar contas. Quando digo à tipografia faça mil ou dez mil tenho de ter uma ideia do que é que o livro vai vender. Há livros que publico e já sei que não vão vender mais de 200 ou 300 exemplares.
O que o leva a publicar sabendo isso?
Achar que são coisas relevantes e de muita qualidade do ponto de vista literário. Um dia aquilo vai vender. Os novos que eu publico e que vendem pouco, mas que me parecem coisas importantes, bem feitas, bem escritas. E acho que já existe uma geração com imensa piada.
Tem contado que uma das grandes alegrias da sua vida editorial foi quando Saramago ganhou o Nobel. Como olha esse momento a esta distância?
Como recordou há bocado, sou editor há quase 50 anos, esta é a minha profissão, e o facto de um autor meu ter ganhado o Prémio Nobel é uma coisa efectivamente relevante. O Saramago começou por ser muito importante aqui, internamente, e eu acompanho esse processo desde o início, desde que o Saramago passou a ser o Saramago que a gente conhece. Trabalhámos sempre muito intimamente, de uma maneira muito próxima, muito conversada. Depois ele começou a expandir-se para o exterior, sobretudo a partir de Itália, quando a Feltrinelli publicou o Memorial do Convento. Nessa altura, o Eduardo Prado Coelho disse uma coisa interessante: com este livro Saramago alargou a sua base social de apoio. É verdade. O Levantado do Chão interessou por razões estilísticas, mas ainda era um livro sobre a Reforma Agrária. O Memorial do Convento não. Do ponto de vista político parece mais inócuo e mais aceitável para pessoas que não estão naquela área; e o público do Saramago alarga-se, o nome foi crescendo nos anos seguintes com outros livros e começou-se a falar do Nobel. Ele era relevante no plano interno e no plano internacional. Quando o Nobel se concretiza é o culminar de uma expectativa. Foi em 1998, o país estava numa fase de euforia, e cheguei a ouvir dizer que a literatura portuguesa era a mais importante da Europa. Finalmente havia um escritor português e de língua portuguesa com o Nobel. Ninguém disse, mas muita gente por aqui pensou: “felizmente que não foi um brasileiro”.
Há algum brasileiro que achasse ou ache merecedor do Nobel?
Não sei, estou velho e sou dessa geração. Eu teria dado o Nobel ao Graciliano Ramos.
O Nobel de Saramago foi a sua maior alegria como editor?
Sim, foi. Foi o maior acontecimento e a maior alegria. Uma coisa destas é sempre uma surpresa. E não fui só eu que vibrei, foi o país inteiro.
Tem-se feito esta pergunta: o Nobel a Saramago ajudou a projectar a literatura portuguesa?
Acho que ajudou muito. Naquele momento, achei que ele iria vender um pouco mais, mas ele já vendia muito. Foi mais do que isso. Um autor que é conhecido, se tem um acontecimento destes na sua vida, a repercussão é muito maior e arrasta a literatura em que escreve. Os editores em todo o mundo vieram saber se havia mais coisas. É sempre assim. Perguntaram-me o que é que eu tinha mais.
E o que é que tinha mais nessa altura?
Tinha o Mário de Carvalho, a Sophia, o Mia Couto e comecei a vender toda essa gente. Havia curiosidade de muitos editores estrangeiros.
E se Saramago foi a grande alegria da sua carreira com o Nobel, a saída dele do seu catálogo foi a grande tristeza?
Sim, de alguma maneira foi. Foi um corte. Bom, o Saramago já não estava cá e, como disse na altura o Manuel Alberto Valente [responsável pela Porto Editora que ficou com os direitos de Saramago], o Saramago já tinha sido editado, era só reimprimir. Em todo o caso foi desagradável, não foi a coisa mais agradável que me aconteceu.
O que é que sentiu?
[Pausa] Sabe, eu fazia parte do grupo do Graciliano Ramos que quando foi preso e chegou à prisão de São Paulo viu escrito na parede uma frase: “Índios, revoltai-vos!” E a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi que em São Paulo não há índios. Eu, desde sempre, por causa da minha constituição cerebral e do meio onde fui ter, sempre olhei as coisas com uma espécie de “o que tem de ser é”.
Um comunista não se emociona?
Um comunista emociona-se, sim. Mas também olha para as coisas da vida como sendo bastante relativas. Fui editor do Saramago aqueles anos todos. Está feito. Agora vêm outros. Já me aconteceu outros autores mudarem, e eu percebia. Ao mudar os livros são geralmente reeditados logo e se ficar onde está só são reeditados se se esgotarem. É outra coisa, outra experiência, outra vida para os livros.
Outro momento da sua vida foi quando Luandino Vieira ganhou o Camões e recusou o prémio. Como é que se lida com um autor que nunca quer aparecer?
É uma chatice porque dificulta muito o trabalho. Não sei sequer as razões.
Ele nunca lhe disse porque é que não fala?
Nunca. Há um mistério ou simplesmente uma maneira de ser. Enfiou-se ali [em Vila Nova de Cerveira] e lá está. E falo com ele regularmente. Ou ele telefona ou eu. Mas nesse dia meti-me no carro e fui até lá. Não consegui encontrá-lo. Voltei ao carro e regressei a Lisboa.
Ia-lhe dizer o quê?
Ia dar-lhe um abraço. São momentos importantes nessa tal proximidade.
Um contraste com o que aconteceu este ano quando o Prémio Camões foi atribuído a Germano Almeida.
Exactamente. Eu achava que iria ser um brasileiro. Mas sai o nome do Germano que acompanho também desde sempre. E o prémio para ele foi muito importante, deu-lhe muita visibilidade. As vendas dispararam.
Há prémios que fazem vender mas depende dos autores?
Sim, e às vezes da circunstância.
Como define o mercado do livro actualmente?
As coisas estão difíceis. Houve uma queda motivada sobretudo por razões económicas. Acho. Tudo isto começou em 2002. Esse ano foi uma loucura de vendas de livros e a partir daí as coisas vieram sempre a piorar. Em 2017 houve um crescimento de dois por cento no volume global das vendas, ou seja, o fundo estagnou num patamar baixo. Em anos anteriores houve quebras de 15 e 16 por cento. É difícil sabermos o que é isto. Haverá certamente motivos económicos internos, nossos, mas eventualmente qualquer coisa está a acontecer num plano muito mais vasto, porque as quebras na venda de livros não são só aqui.
Noutro dia vi uma estatística que nos últimos 16 anos no Brasil, a queda foi de 21 por cento.
A Caminho teria sobrevivido se não estivesse sob o tecto de um grande grupo?
Acho que não. Quando decidimos vender a editora ela estava a passar por grandes dificuldades económicas.
Não basta ter um bom catálogo.
Não basta. É preciso ter um trabalho muito firme, muito atento e muito consistente todos os dias. As editoras são empresas comerciais. Estamos a tratar de literatura e não de outro negócio qualquer. Mas quando fazemos um livro e lhe pomos um preço ele é um produto como outro, que se vai sujeitar às leis do mercado. Apesar dos sucessos, a Caminho passou por várias crises. Passei um mau bocado. Tínhamos autores que vendiam muito e, sobretudo da primeira vez, tivemos de ir falar com eles e dizer-lhes que não tínhamos dinheiro para lhes pagar. Todos compreenderam. O Saramago estava a escrever nesse ano O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Não era preciso saber muito de livros para prever que um romance de Saramago com esse título iria vender imenso. Ele acabou de escrever o livro em Agosto. Dois meses antes tínhamos-lhe ido dizer que não tínhamos dinheiro e ele dissera que não havia problema, que acabaria o livro e que lhe pagássemos em Janeiro. Há que prestar-lhe essa homenagem. E nós utilizámos esse novo livro nas negociações com a banca.
O que o faz querer continuar a ser editor?
É uma questão de inércia. Aprendi na Física que há duas inércias: a do movimento e a do repouso. Um corpo em repouso precisa de um esforço suplementar para entrar em movimento e o que está em movimento também tem tendência para continuar. E eu é isso. Vou ter de pegar no telefone e ligar para fulano e para sicrano e dizer que para o mês que vem já cá não estou. É uma conversa difícil. É esta inércia do movimento.
Imagino que tenha muitas histórias para contar nestes quase 50 anos de edição. Não lhe apetece escrever umas memórias?
Algumas pessoas dizem-me para eu fazer isso, mas não me apetece. Não quero fazer.
Porquê?
Por preguiça. Dá imenso trabalho. Eu colecciono. Autobiografias e diários... Estou fascinado por algumas coisas e não tenho tempo para outras.
Qual é a sua relação hoje com o comunismo?
É boa, é pacífica. Continuo a pertencer ao PCP e acho que vou continuar a pertencer. Não ignoro todas essas questões que se levantam nem se podem ignorar, a queda do muro, a desintegração da União Soviética.
Não há uma desilusão?
Há, de alguma maneira. Mas apesar de tudo há um património ideológico, de esperança, que acho que vale a pena manter vivo. Não sei como vai ser o mundo, mas tenho a ideia de que assim como o Marx no tempo dele, olhando para os ideais da Revolução Francesa e o que lhes aconteceu, dizia que eles tinham razão. Liberdade, igualdade, fraternidade, mas não como achavam, seria de outra maneira. Acho que ao marxismo vai acontecer um pouco a mesma coisa. Pode-me dizer que isto é como quem vai a Fátima. É um pouco.
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